O MENINO VOADOR
Depois do almoço, como dizem os antigos, “dá uma lombêra”! Mas, aquele dia, o sol, querendo aparecer mais do que de costume, como se já não bastasse iluminar as doze horas do dia e ser o único no céu nesse momento, resolveu judiar dos viventes da terra.
O calor era insuportável. Mesmo à sombra, beirava os 40 graus. E a noite, ainda longe de começar.
O velho relógio de parede, sem o cuco, (nem o pobre pássaro de madeira escapou da mão do homem) quebrado a mais de 10 anos, talvez até pelo aquecimento exagerado, parecia sentir também os efeitos do astro rei, e movia seus ponteiros preguiçosamente, fadando a todos, o martírio de suar por longas horas ainda.
Mas, como nada é para sempre, apesar de muitas vezes parecer, lá pelas três da tarde, um ventinho “fria”, anunciava o fim de uma desgraça e o início de outra. Junto com ele, nuvens brancas, depois acinzentadas, então plúmbeas e, mais tarde, de uma negritude de dar medo, se achegavam, se espremendo, como se quisessem ficar todas no mesmo lugar do céu, sobre a pequena Eldorado. E o calor, foi se abrandando e dando lugar e uma friagem úmida.
Logo, a noite parecia pregar uma peça no relógio preguiçoso e antecipava sua chegada triunfante. O Sol, destronado, desapareceu sem deixar rastro e as trevas iniciaram mais cedo o seu reinado.
Como soldados tentando reaver o poder ao seu senhor, os relâmpagos faiscavam, vez ou outra, clareando momentaneamente as ruas já desertas pela ausência do povo que se abrigava em seu casario, clamando por Santa Bárbara a cada flash dos “fuzilos”.
Era regra: não se podia ficar descalço, nem sem camisa, nem lidar com facas ou tesouras e todos os espelhos eram cobertos com toalhas para não deixar o curisco entrar.
Mas, como toda regra tem suas exceções, lá pelos lados da Raia, bairro da periferia eldoradense, a criançada não estava nem aí; brincava na chuva, que agora caia torrencialmente, fazendo barragens de areia nas canaletas do meio fio, ou guerrinha de toletes de barro bem amassados com as mãos e jogados certeiros nas costas, no peito, no pé do ouvido, onde quer que fosse que acertasse. O que valia era a liberdade, o refresco que a tormenta trazia e que muitos nem percebiam enclausurados em suas masmorras, rezando terços e pedindo proteção divina para que nenhuma tragédia acontecesse, conseqüência da maldita tempestade.
O vento assoviava sua sinistra canção, ora aumentando ritmo e tom, fazendo a copa das árvores balançarem ao seu gosto, criando um balé sem sincronia, mas de grande beleza plástica, ora se interrompendo para ganhar fôlego e começar tudo de novo.
Paquinha era neto de dona Gertrudes e, como seus amigos, brincava nas ruas da Raia, correndo atrás das folhas que eram arrancadas sem piedade dos chapéus-de-sol e, à guisa de passarinhos, davam rasantes e voltavam a subir, voando pelo ar, provocando os meninos que corriam para apanhá-las. Quem juntasse mais folhas antes delas tocarem o chão ganhava a competição.
E Paquinha era bom nisso! Franzino, magricela, mas muito ágil, pulava, rodopiava no ar, agachava, se contorcia e se atirava no chão, sem medo dos pedregulhos que outrora compunham o leito do Ribeira e, agora, pavimentavam as ruas da cidade, e que quando se batia um joelho ou cotovelo, eram impiedosos em ralar a pele expondo a carne viva ensangüentada. Dificilmente outro menino ganhava dele. Mas, aquela tarde guardava uma surpresa para o serelepe garoto.
Sua avó já o havia chamado várias vezes para deixar as traquinagens e “entrar pra dentro” para se proteger, pois aquela tempestade não era como as outras. Parecia mais feroz. O vento estava mais forte do que de costume. No entanto, Paquinha não dava ouvidos e desdenhava dos chamados de dona Gertrudes, cada vez mais aflita.
Súbito, uma rajada de vento, canalizada pelo casario, fez de rodamoinho e, sem tempo para reagir, Paquinha foi arrastado e, quando se deu conta, era como uma folha de chapéu-de-sol. Sem tocar o chão com os pés o garoto deu de gritar:
_ Vovó! Vovó! Acuda! O vento tá me levando imbora. Eu tô avuando, eu tô indo imbora co vento!
Dona Gertrudes, justificando a agilidade do moleque, transmitida geneticamente, pelo visto, correu atrás do menino, deu um pulo e, com o braço direito esticado ao máximo, grudou com a mão rachada e áspera, judiada pelos fardos de roupa que lavava todos os dias, em seu tornozelo trazendo-o de volta ao chão.
_ Num te disse, menino danado! Cum tempestade num se brinca. O vento ia te leva lá pros lado da Bulha.
Netinho pálido, sem voz e sem respiração, com os olhos arregalados, grudou-se na saia da sua avó e tentou dizer algo, mas não saía...
Nas redondezas já não havia uma viva alma mirim. Todos os meninos, depois dessa, apavorados, sumiram das ruas e puseram-se a se aquietar dentro das casas.
E, por um bom tempo, durante as tempestades, as ruas de Eldorado ficaram ainda mais desertas...
Fim.