O PÁSSARO ENCANTADO

Linda manhã de sexta-feira Santa, festa cristã de muita importância. Dia que Nosso Senhor morreu para resgatar a humanidade pecadora. Dia de ficar em casa, de ir à Igreja, à procissão, dia de rezar.

O céu, azul de brigadeiro, riscado vez ou outra pelas frenéticas andorinhas, em contraste (ou em complemento?) com o verde azulado do morro do Pitione, resumiam em grande estilo o cenário paradisíaco.

Como sempre fazia em dias desse tipo, Nelson, abrindo a janela de seus aposentos no velho sobrado da Tia Eunice, de fronte ao rio Ribeira, diz para si: - Que dia para uma boa caçada!

A caminho da padaria do Seu Romeu, a barriga rosnando feito um cachorro de agosto, encontra o amigo Zeca, companheiro de pescarias e caçadas: - Dia, Zeca. Vamos pro Pitione caçar uns macucos? Que o que! Zeca, católico fervoroso, balançando a cabeça para ressaltar a importância de suas palavras: - De jeito maneira! Hoje é sexta-feira santa. Nada se pode matar. É pecado grave... Anos de purgatório...

Nelson, que nunca fora tão temente das normas religiosas, nem insistiu. Já na padaria, a fome lhe incomodando as entranhas, fez seu pedido: - Dia, Seu Romeu. Me veja um pingado, um bolo de roda pra agora e mais dois pro almoço. Também metade de uma coruja, uma bengala e duzentas gramas de mortadela da boa. Hoje vou almoçar no mato, entre um tirinho e outro. Pelo menos na janta, como melhor. Hoje, tá com jeito da caçada ser das boas...

Seu Romeu, arregalando os olhos: - Caçada? Hoje? Dia da morte de Cristo, nosso Senhor? Não pode, seu Nerso. É contra as leis da Santa Igreja. Dá um azar danado!

Nelson, já meio cabreiro, mas com muito mais teimosia do que ponderação, tomou de suas coisas e partiu de volta à pensão.

Conferindo a munição, a Winchester 22 desmontada na mochila de lona verde, da cor do mato, os pios de madeira pra chamar a bicharada, o cantil de alumínio que conservava a água fresca por horas, o limão vermelho pra gotejar na água e matar a sede de verdade... tudo em ordem.

Na saída, Dona Eunice, vendo o soldado partindo para a guerra tão disposto, indagou: - Isso não é roupa de ir à Casa de Deus, Nelson. O Senhor Jesus merece mais respeito. Se arrume direito, homem. Ponha o terno que passei ontem à noite e a calça de linho cinza. E engraxe os sapatos também. Tire essas botas fedorentas... - Não vou pra igreja, Dona Eunice, cortou o Nelson já impaciente. Vou pro mato buscar um bom nambu ou macuco pra comermos na janta. Quando tinha fome, o senhor Jesus também comia. E só não ia caçar macuco porque não tinha uma Winchester igual a minha... E lá se foi, o caçador, pros rumos da ponte para atravessar o Ribeira e se embrenhar na mataria. Dona Eunice nem disse palavra, apenas benzeu-se com o sinal da cruz três vezes o voltou-se para seus afazeres, indignada.

O cheiro do mato fazia bem. Era como um perfume para Nelson. Quanto mais se distanciava da cidade mais em casa se sentia. Na estradinha da antiga usina, a caminhada rendia. Passo a passo a montanha azulada passava a um verde profundo, vez ou outra, salpicado de outros tons, revelando a diversidade de árvores da floresta. Com a distância cada vez maior da cidade um silêncio incomum foi cercando o caçador que estava acostumado a trocar os barulhos urbanos pelos sons da natureza.

No interior da mata, à sombra fechada dos garacuís, das perobas, dos arapassus, das imensas figueiras, andava camuflado, sem produzir ruído algum. Os pés, protegidos pelas insubstituíveis Verlon, como os de um felino, acariciavam o chão de folhas e gravetos secos. Nada se ouvia. Nada mesmo. Cadê a bicharada? Nem borboleta voava. Nem pernilongo, mutuca ou borrachudo. Atravessando um riachinho pedregoso, onde aproveitou para banhar o rosto e a cabeça e abastecer o velho cantil, também não viu nada. É comum nesses riachinhos achar pitus, barrigudinhos ou girinos. Mas, estranhamente nada se movia nem na água, nem na terra e nem no céu.

Por vários quilômetros de silenciosa caminhada, nada se viu. Em toda sua vida de mil e uma caçadas, jamais o Pitione, com sua mata exuberante, deixou que voltasse pra casa sem um inhambu, alguns macucos, urus ou jacus. Até bichos de porte eram abundantes como macacos, veados, antas, jaguatiricas e toda a rica fauna da mata atlântica.

Já se ia pelas tantas da tarde. Os bolos de roda e a coruja, ingeridos e digeridos, não mais ocupavam espaço na mochila que permanecia vazia.

Em outro córrego, agachado a espremer o último limão no cantil, o silêncio é enfim quebrado. Um alvoroço de asas no topo de uma guaricica bem copada lhe chamou a atenção. Lentamente virou-se a buscar com os olhos atentos a posição do bicho. Que maravilha! Mas, que pássaro é aquele?! - pensou consigo. Em tantos anos de mato nunca havia visto nada parecido. Do porte de um gavião-índio, mas de plumagem branca, imaculada. Pousado na galharia, como a se mostrar de propósito, com o peito estufado e a cabeça bem erguida.

Nelson, por instantes, ficou a admirar a ave rara que mais parecia a visagem de um anjo de tão grande brancura e tamanho. Não voltaria de mãos abanando, de mochila murcha, de Winchester fria. Posicionou-se para o disparo, disfarçado de folhagem a menos de quinze metros; os olhos fixos, a mão esquerda firme a sustentar a arma; a mira no peito desafiante, o dedo no gatilho esperando a ordem superior... Paaaahhh! Em meio à fumaça os olhos surpresos ainda fitavam o animal que fez um leve movimento de cabeça, parecido com um "não". E não mesmo; não errava um tiro daquele. Impossível. E por que o bicho não voou? Por que ainda estava lá a lhe provocar a ira? Manejou com destreza a arma e engatilhou outra bala... Paaaahhh! Inacreditável. Agora a ave, a lhe zombar, abre as asas, esticando ao extremo uma e depois a outra, a espreguiçar-se. Mais uma manobra e... Paaaahhh!

A ave então, para provar-lhe ser de verdade, lança de vôo, despencando em sua direção e, como um caça (e não uma caça), quase lhe toca o chapéu numa rasante, pousando em seguida num imenso jataizeiro. Agora de costas, o pássaro abre novamente as asas e assim permanece formando, contra a luz, o desenho de uma cruz, como a que sustentou nosso Senhor Jesus Cristo na sexta-feira da paixão. Seu Mido, de vidro riscado por tantas quedas, e pulseira vermelha para nunca ser perdido, avisou-lhe às horas: três da tarde, pontualmente.

Jogando a mochila nas costas com a espingarda já desmontada a preencher-lhe o farto espaço, Nelson garrou o rumo da cidade...

- Ainda dá tempo de pegar a Missa das seis!

Fim.

Lélis Ribeiro
Enviado por Lélis Ribeiro em 18/11/2009
Reeditado em 18/11/2009
Código do texto: T1930841
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