___SOFRIMENTO___

- Morávamos com o Coronel Izabelito, na época da dominação espanhola ele veio para a Colônia e a custas de maldades explorava seus escravos, trabalhávamos sem descanso, éramos vigiados pelo feitor o dia todo.

Ele era conhecido pela desumanidade no trato com os escravos. A fazenda era na margem do rio Pará. A vida de seus cativos clamava aos céus.

Em suas terras plantavam-se arroz, cana e algodão além de pecuária desenvolvida nos pastos nativos.

Essas terras eram submetidas a muitas enchentes que alagavam varjões intermináveis, onde a água represada nas vazantes se aquecia. Era ali que morava a malária, arrepiavam de calafrios e que devastara a negrada na destoca para o plantio de arroz. Os negros andavam nus, compostos apenas por uma tanga estreita e assim, curvados sobre a enxada, resistiam ao ardor do sol. Só mastigavam pela manhã uma espiga de milho crua e a noite, outra. Nada mais. E assim viviam ou morriam aos poucos, fracos e humildemente revoltados.

Sempre se ouvia o clamor:

- Pai do céu, tira nóis!...

No mês das febres adoeciam as dezenas. No leito, sentiam as pernas bambearem, a cabeça crescer e os olhos arderem. No auge do dia começavam a tremer, com a aflição dos acessos. Nus, tremiam todo o corpo; os dentes chocalhavam como dos catetos; as mãos deixavam cair as enxadas. Negros descorados ficavam baios, emagreciam de mostrar os ossos.

Não adiantava os berros nem o açoite, experimentados muitas vezes, como remédio. Caiam, vomitando verde. O feitor ficava a espera do mal súbito passar. Mal ia abrandando, arrepiava o lombo:

- Eh, diabo, pega o cabo da enxada!

O infeliz se erguia, tonto, vacilante, recomeçando a tarefa interrompida. Quando a hora da febre chegava, para muitos pretos era forçoso deitar ali mesmo, morrendo de frio. Mesmo deitados na terra a tremura não lhes permitia repouso.

Quando o primeiro negro começava a tremer, o feitor gritava:

- É hora de corpo mole! O que cura isso é chicote.

Mal os coitados melhoravam do carrasco se ouvia:

- No eito, raça ruim!

Quase ao escurecer regressavam, arrastando os pés, trôpegos, vagos, para a casa grande. Para espertá-los, o maníaco assoviava, estalando o relho.

Certa vez um preto velho, maleitoso, recebendo uma chibatada do monstro, numa explosão de revolta instintiva, na dor, parou para encará-lo e gemeu:

- Ah!

O boi daria como reflexo a dor, uma chifrada, o burro um coice, a onça um bote de garras. Aquele ah foi um reflexo nervoso. Pois a exclamação custou caro ao veterano sofredor.

Ao chegar ao terreiro, o bárbaro mandou amarrá-lo na mesa de um carro de bois. Ficou deitado de bruços, com pernas e braços, presos por cordas grossas aos buracos dos fueiros.

- Vai aprender agora a dizer bem ah!

E mandou aplicar na costa nua, do ancião, 200 chicotadas. Relho feito de couro cru. Viu o sangue marejar, espirrar, correr. Presenciou as convulsões do sofredor, ouviram-lhe com cabeça fria os gritos, os pedidos de misericórdia. O chicote abria a carne em tiras fundas na pele, levantava vergões, bolhas de sangue pisado. O castigo se interrompia quando o escravo desmaiava, silenciado.

Por várias vezes o feitor jogou cuias de água na cabeça do preto para despertá-lo. Ao recobrar os sentidos, o carrasco berrava:

- Aperta a corda! De novo com força!...

E recomeçava a contar atento:

- 195! 196! 197!

Mas o espancado perdia de novo os sentidos. Ao se recuperar, se ouvia a voz brutal:

- 198! 199! 200!

Deu ordem, parecendo em paz com Deus. Veio uma gamela com vinagre.

- Esfregue por aí tudo, com um sabugo de milho!

Depois do banho ralado com sabugo, chegando perto dos olhos para ver bem, tirou uma faca de ponta e, calmo, começou a furar as grandes bolhas de sangue.

- É para não apodrecer.

Mandou desamarrar o preto, humilde lutador de sessenta anos de cativeiro. Ele se mexia. Empurrou-o com o cabo do chicote. O corpo mole, não reagiu. Mandou virar o velho de barriga para cima. Os presentes viam a agonia, estavam aflitos.

- Jogue água fria na cara do cachorro!

Jogaram a água. Os olhos entreabertos do cativo estavam perdendo o brilho.

O Cativo morrera.

Daí a instante era jogada, ainda quente, na cova sempre aberta no cemitério dos escravos.

O cemitério enchia-se, cada vez mais depressa, dos defuntos da fazenda.

Na beira dos ribeirões, no mês do frio, o orvalho congelado queimava quase tudo. Era frio de matar peixes nas lagoas das várzeas.

Em junho começavam as moagens de cana. Os negros saiam para o corte das canas pela madrugada, quando os ventos gelados da serra cortavam as carnes, ardendo os olhos.

Os negros saiam nus, tremendo de frio. Todos conheciam, nos caminhos, que por ali passaram os escravos da fazenda, porque o ar fedia, corpos sujos. Esse bando de almas cabeludas, impregnadas de ar azedo, fervilhava de piolhos. Quase todos tinham nas virilhas abertas em crateras cheias de pus ínguas abomináveis e os lombos cheios de feridas escancaradas pelo chicote.

Muitos não andavam, arrastavam-se, esgotados pelo marchar que os obrigava a parar repetidas vezes para se agacharem na beira dos trilhos, exonerando os intestinos que deixavam escorrer pelas pernas diarréias fétidas, podres, incontidas.

Saíam para o corte da cana, mastigando sua espiga de milho seco.

Quando o frio aumentava ao vir da noite, o grupo regressava lambuzado de caldo dos gomos cortados e cheios de borbulhas da espinheira fina das folhas de cana. Eram então trancafiados na senzala para dormir. Ali não havia camas nem redes. Estiravam-se nas palhas de milho, que forravam as grandes lajes úmidas, geladas pelos ventos noturnos.

Fracos, famintos, tolhidos de frios pelas geadas e ardendo com febre lançando pus, alguns cativos enlouqueciam. Gritavam alucinados, até rachar a cabeça nas paredes. O remédio era o tronco de pés e mãos, amordaçados nas fendas.

O negro Filismino, que morrera ao lado da esposa, arrebentando a cabeça num portal, teve uma despedida heróica.

- Graças a Deus Pai do céu, Filismino morreu! Me busca Filismino!

É corajosa. De mãos postas para cima, não chorava, agradecia a Deus a esmola de lhe levado o marido sofredor.

Começavam a morrer mais negros, sem que os senhores soubessem o porquê. Ficavam tristes, de olhos parados, não falavam, não comiam mais as espigas de milho.

Mesmo assim trabalhavam autômatos, sonâmbulos. De lábios inchados, secos, febris.

Não houve surra que curasse esses doentes. A epidemia se estendeu as outras fazendas e o único medicamento era um purgante de azeite.

- É a friagem...

Não era a friagem: era a melancolia, o banzo, doença dos sofredores e que devastou grande parte da escravidão de muitas fazendas.

Mas os escravos de Izabelito, quase todos tuberculosos, iam caindo nas covas como terras. Alguns mais altivos se matavam, enforcando-se ou engolindo a língua.

Era tão arrepiante a vida desses miseráveis que, na opinião unânime, os que fechavam para sempre os olhos, faziam milagres.

Seus senhores que passavam temporadas na vila, recebiam sempre visita do feitor, para dar notícias e receber ordens.

- Como vãos os serviços?

- Bem, Coronel. Já plantei o arroz. O algodão então está ficando gracioso.

- E os negros?

- Tudo bem. Deu lá um desande que tem matado alguns, aqueles mais bichados...

O rosto do flagelador estava tranqüilo, resplandecia bem-aventurança. O Coronel, afogado na gola alta de tecido encorpado de seda, mostrou-lhe a maneira de advertência:

- Olho vivo com eles! Aquela canalha é um vulcão de ruindade. É como um tumor que dentro só tem pus.

O feitor saiu prestigiado, feliz de sua excessiva arrogância incisiva.

O tempo mudara. A neblina envolvia, apagava os morros como um esquecimento.

Os negros açoitados caso tentassem roubar algum alimento para sustentar-se; castigados caso experimentassem fugir, porém alguns conseguiam escapar para os quilombos. Izabelito levava seus escravos para grandes plantações e trabalhávamos de manhã à noite, só tendo direito há folga nas tardes de domingo, e assim mesmo nem sempre; éramos constantemente submetidos a castigos corporais no tronco e tinha ainda o ferro em brasa, reservado aos mais revoltados.

Trêmula e com os olhos rasos de lágrimas a negra escrava continua:

- Izabelito não tinha valores morais, utilizava a situação de levar os homens escravos ao campo para dar vazão a sua atividade sexual subjugando as escravas para seu desejo.

- Ele cumpria com sua mulher branca as obrigações de procriador e marido, mas se voltava às escravas para satisfazer sua luxúria.

Luisa filha mais velha da escrava sente um calafrio e, pálida fala:

- Eu e Alice somos mulatas, quase brancas!

Adelina aos prantos abraça suas filhas e com a voz embargada:

- Fui obrigada, não podia fazer nada me perdoem.

Abraçadas choram copiosamente:

- Se não submetesse aos caprichos daquele monstro não sei o que me poderia acontecer.

Depois de um longo silêncio, continuam abraçadas, mas Luisa com generosidade:

- Amada mãezinha, não há o que perdoar!

Nisso começa a afagar os cabelos brancos da mãe e com o olhar de intensa e meiga ternura tenta acalmá-la, Alice beija-a no rosto e suas mãos enxugam as lagrimas que teimam em brotar dos olhos de Adelina.

- Mãe, sempre quis saber o porquê de eu e Luisa termos a pele morena e nosso irmão ser negro!

Luisa pede:

- Continua.

Todas se sentam e Adelina retoma:

- Seu pai com o passar dos anos e vendo a minha tristeza percebeu e me pediu para que confirmasse suas suspeitas. Ele era um escravo bondoso e admirado por todos.

As lágrimas no rosto de Luisa retornam:

- Foi tirar satisfação com o Coronel Izabelito, mas este o prendeu e com ferro em brasa marcou-lhe o rosto com o seu sinal, queimando-lhe a carne.

Alice desesperada e revoltada com a crueldade e o destino de seu pai, pergunta:

- Mas daí por diante que fim teve nosso pai.

- De madrugada conseguiu fugir do calabouço, foi até a senzala, tomou seu irmão no colo, beijou-o e colocou-o novamente na esteira, foi até vocês duas, pegou-as nos braços e pediu que o perdoassem como se entendessem! Abraçou-me, beijou-me e disse adeus.

Luisa pergunta:

- E daí, o que se deu?

- Fiquei aflita, o que conseguia fazer era chorar e rezar, até que ouvi um grito estridente na casa grande – seu pai o matara e em seguida fugira.

Luisa trêmula mal tem forças para falar:

- Mãe querida!

Coma voz embargada nada mais disse. Ouve-se somente o soluço incontrolado, novamente abraçam-se e o silêncio toma conta.

Depois de algum tempo, tentando se refazer da emoção as filhas de Adelina que pensam terem sido separadas do pai por divisões de escravos, jamais imaginaram passado tão cruel.

Luisa retoma o diálogo:

- Nunca mais teve notícias de nosso pai?

- Imagino filha, que fugiu para algum quilombo, foi procurado, pois queriam vingar a morte do Coronel, mas nunca mais tive notícias. Passados alguns dias os herdeiros do Coronel Izabelito chegaram à fazenda, juntaram todos os escravos e em exposição em praça pública, levou-nos a leilão.

E continua a explicar a saga pelo que passará:

- Expondo-nos como mercadorias, seminus e amarrados como porcos, pais e filhos eram separados, sem o menor problema por compradores de escravos que não tinham, eventualmente, interesse na família toda.

Uma lágrima lenta desce pela face de Luisa, que também lentamente a enxuga.

- Filhas. Jamais esqueci seu pai, espero um dia reencontrá-lo e viver com ele novamente ainda o amo.

Luisa generosamente ensina:

- A prova de que alguém ama de verdade, é quando sofre pela pessoa ou pelo ideal que ama, pois o sofrimento purifica o amor e o torna mais puro e generoso. Nunca devemos queixar-nos de que devemos sacrificar-nos por aquelas coisas que amamos.

E continua:

- Se não quer sofrer desista de amar.

E finaliza:

- Temos três realidades que são mais que uma só: sofrer, amar, viver. Mãezinha nós continuaremos lutando até encontrar nosso pai.