O SANTO DA CASA
ufa!...
O calor estava abrasador. Tanto que a face alva do padre Zeca estava bastante avermelhada, mesmo protegida pelas largas abas do chapéu de palha.
Ultimamente os dias andavam assim quentes. Mais tarde, como se com hora marcada, o céu se cobriria de nuvens escuras. O aguaceiro desabaria com amedrontadores trovões e ráios ameaçadores, dando a impressão de que a terra, transbordante da imundície do pecado, seria novamente castigada por um dilúvio. Repentinamente a chuva cessaria e, no céu, o arco-íris traria o reconfortante sinal de Deus de que tal fato não haveria de se repetir. Por fim a temperatura amenizada, o cheiro de mato e de terra molhada, o verde revigorado poriam uma trégüa ao incômodo quenturão.
Agora, antes da chuva, o jeito era, de um ou de outro modo, proteger-se. Padre Zeca supôs não haver melhor lugar que à beira do riacho, à sombra do arvoredo. Portanto a pescaria era só pretexto. Afinal se considerava mal pescador, tanto de peixes como de almas.
Os tempos eram difíceis. As novas gerações, preocupadas em busca de prazeres ilimitados, não queriam saber de igreja, mal ouviam falar sobre o Criador. Além do mais a igreja do pastor João de Deus crescia a olhos vistos. Enquanto eram escassos os cofres da sua capela, a igreja dos crentes prosperava, e com ela, alvo de muitas críticas, o pr. enriquecia a olhos vistos, exibindo o seu carro do ano e sua mansão de ostensivo luxo, contrastando com o estilo de vida humilde da maioria dos crentes dos quais provinha o seu sustento.
Era proveitosa, além da fuga à alta temperatura, aquela pescaria para que o pe. Zeca se relaxasse, esquecendo esses desencantos da vida clerical.
Tirando os sapatos arregaçou as barras da calça acima da altura dos joelhos entrando no raso da beira do riacho. Ah, delícia! O frio das águas pareceu invadir-lhe todo o corpo. Não fora ele um sacerdote e não houvera o perigo de repentinamente aparecer alguém, bem poderia se despir e dar um mergulho, como desejava. Aliás bastava um xereta fraglar-lhe, como estava, de pernas descobertas, para ser alvo dos mais estranhos julgamentos , como se não fosse ele um ser humano.
Estava assim nestes pensamentos, quando sentiu a linha retesar. Haveria de ser um peixão!... Desajeitado puxou a vara com exagerada força, lançando a pesca sobre a margem atrás de si. Ao constatar , vociferou um palavrão nada condicente com sua reputação; Era apenas um velho sapato.
Felizmente não havia testemunhas para o seu fiasco e para a sua reação indevida. Pescar não era mesmo a sua habilidade. "Fosse ao menos o sapato de um santo!" - pensou sonhador. - "De um santo?... e por que não?..."
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Hoje poucos desconhecem a história do Bispo Joseph Kross.
Fora revelação. Um sonho nítido no qual um santo, vestes alvas, rosto luminoso atravessava o Rio Escarpim, na época conhecido pelo nome de Riacho das pedras brancas. Embora no centro o seu leito estivesse a mais de metro e meio de profundidade, o santo passava sobre ele em nível reto à fundura dos pés imersos. Ao alcançar a outra márgem tinha um dos pés descalços.
Despertara atônito. Oque significaria aquilo? Não demorou a decifrar. Era como uma voz audivel lhe ordenando: "Vai! Resgata o sapato que ele há de trazer bênçãos à tua paróquia!
Dia seguinte, munido de vara-de-pesca, anzol sem isca e de inabalável fé dirigiu-se ao riacho onde, após içar o santo calçado,prostara-se em terra em resignação, reverência e agradecimento.
Como mudou a cidade! Do pacato povoado de outrora nada resta. Nem o antigo nome Graçolandia ficou. Sem espaço para mais crescimento horizontal, altos prédios mesclam-se à paisagem urbana.
O comércio é intenso. Nos finais de semana e feriados, hotéis, pensões e pousadas ficam lotados. Fiéis chegam de todas as regiões. Muitos em busca de bênçãos. outros em pagamentos de promessas por milagres alcançados. Uns chegam esbaforidos, carregando pesadas cruzes. Outros as trazem mais leves e com rodinhas na base . Não poucos chegam de joelhos esfolados, sangrando após longa caminhada ajoelhados.
Ao lado da antiga e símples capela foi construída a Catedral do Calçado do Bom Senhor. Nela o calçado que ,segundo a escarpomancia, um dia calçara os pés de um santo, fica exposto em uma redoma de vidro blindado que os fieis, em intermináveis filas, fazem questão de tocar.
Em qualquer loja, ou nas inúmeras barracas espalhadas na cidade encontram-se réplicas miniaturizadas do santo calçado em redomas acrílicas. Há também miniaturas em forma de chaveiros e relógios. Sua figura aparece estampada em camisetas, capas de caderno, quadros ,calendários e outros, todos com a a legenda "LEMBRANÇA DE BOM SENHOR DOS CALÇADOS". O livro do bispo Joseph Kross em que ele narra a história do santo calçado´ultrapassa a centésima edição.
Todos os que conheceram o genioso, irritadiço e áustero padre não podem negar a sua transformação. Bispo Joseph Kross tornou-se bondoso, pacato. está mais gordo com rosto bonachão.
Nada resta daquele inclemente religioso que impedira um dia a entrada de Zé-Crina na Igreja, julgando-o indigno de assentar-se naquele santo lugar.
Zé-Crina era um indigente que distribuia drogas entre jovens da cidade. Apropriava-se de valores alheios. Não respeitava autoridades, fora várias vezes preso por porte de drogas, roubos, brigas e arruaças. Quantas vezes, todo arrebentado por surras, fora levado às pressas e internado em hospitais da redondeza,
Recebera a acunha por causa de seu longo cabelo que ele amarrava em estilo "rabo-de-cavalo.
Agora Bispo Joseph, em sua metanóia, recebera-o de braços abertos. Dando-lhe roupas boas, moradia, excelente salário em troca de alguns pequenos trabalhos. Zé-Crina também está mudado. Nunca mais foi flagrado com drogas. Raramente se mete em alguma briga .
Embora muitos vejam um milagre na transformação do padre, não faltam hereges, inimigos da fé, línguas ferinas insinuando que couberam a Zé-Crina tamanhos benefícios, por ter este reconhecido ter sido seu o sapato do altar.