O funeral
Ainda não tinha preocupações nem responsabilidades demais com a vida quando fui carregado para este funeral. Quantos anos contava? Talvez algo que ainda dava para contar nos dedos das mãos, talvez não, mas parece ser correta a primeira opção.
Minha mãe era alguém que não perdia um único funeral de conhecido, mesmo que fosse apenas conhecido de vista, de ver passar, ou mesmo de boca de outros. Ela ia porque gostava. Não é atoa que quando morreu o velório mais parecia uma festa super lotada do que realmente um funeral. Creio eu, que ela deve ter ficado muito feliz, onde quer que estivesse naquele momento, tendo visto tanta gente a comparecer em seu funeral.
Como era muito novo para ficar sozinho em casa eu sempre tinha de a acompanhar. Depois que aprendi que velório não era lugar para crianças, sempre levava algo para ajudar a passar o tempo. Então ficava eu em algum canto matando meu tempo de criança, enquanto minha mãe fazia um social com a família do morto.
Era muito chato tudo aquilo, o morto paralisado, os parentes chorando, alguns desesperados, outros nem tanto, as muitas rodas de pessoas batendo papo, rindo, quem sabe até contando piadas, o cheiro peculiar, sempre ficava com aquele cheiro impregnado em minhas roupas. Mas eu não reclamava, não tinha porque reclamar, era como mais uma festa, só que esta não tinha música.
O funeral em questão seguia o roteiro como qualquer um outro, todas as personagens estavam ali desempenhando suas árduas funções, até que uma inusitada personagem apareceu e ousou bagunçar o roteiro.
Os sapatos enormes, a calça e camisa brancas cheia de bolas coloridas, a peruca rosa choque, o rosto coberto pela maquiagem branca, vermelha e preta e o inconfundível nariz de palhaço.
Todos olharam pasmos para aquela nova personagem. Um verdadeiro erro de script que fez com que as piadas, os risos e as conversas cessassem. Os olhos de todos se voltavam para aquele engano e o seguiram silenciosamente.
O palhaço, indiferente de toda a situação, se encaminhou até o lado do caixão que naquele momento se encontrava solitário entre grandes arranjos e coroas de flores. Tocou o morto, se benzeu e deixou-se ficar ali, apenas parado como mais uma peça de enfeite pertencente a cena, mas que realmente não fazia o menor sentido nesta peça. Olhava o morto e mexia os lábios num sussurro inaudível.
Está rezando, disse alguém. Não, ele está cantando, disse outro alguém. Acredito que é alguém que não gostava do morto e está fazendo brincadeira de mal gosto, falou alguém do fundo. Outros começaram a murmurar coisas sobre a cena, e logo o assunto era somente o palhaço ao lado do caixão, havia muitos risos e algumas suposições de quem estava por baixo do palhaço.
Logo, uma mulher com passo firme se aproximou do palhaço. Pouco dava para ver de seu rosto, mas via-se muita seriedade no pouco que se conseguia ver. Os lábios tremiam enquanto ela dizia algo, mas o que ela disse foi tão baixo que mesmo o palhaço deve ter tido dificuldade em ouvir. O palhaço tentou dizer algo depois que mulher parou e no mesmo instante os dedos da mulher subiram até a boca dele selando assim seus lábios. Ela balançou a cabeça em negativa.
Com a cabeça baixa e os grandes sapatos se arrastando pelo chão o palhaço caminhou para a porta. Levantou o olhar por alguns instantes e aqueles que o olhavam viraram seus rostos para o outro lado, menos uma pessoa, eu. Ele me fitou de volta e então veio em minha direção. Uma de suas mãos sumiu dentro de um grande bolso que ele tinha na frente da roupa, e quando se agachou na minha frente me ofertava um pirulito multicolorido. Sem hesitar, sem nem mesmo procurar o olhar de minha mãe para saber se eu tinha permissão de aceitar tal presente, eu peguei o pirulito. Mas meus olhos nunca vão esquecer o rosto do palhaço. Por debaixo da tinta vermelha havia o sorriso mais triste que eu já vi na vida, enquanto uma lágrima verdadeira borrava a lágrima feita de maquiagem. Ele afagou-me a cabeça bagunçando ainda mais meus cabelos e foi embora com todos os olhares na sua costa.