Noites no Cais

Na neblina densa que envolvia a baía, eu via, ao longe, um monstro de aço flutuante rasgando o silêncio da noite fria. O brilho distante da ponte Rio-Niterói mal iluminava a escuridão que se adensava ao redor daquele imenso navio que se aproximava, como uma sombra fantasmagórica. Ao meu lado, Zé, o velho vagabundo de sempre, tragava sua maconha com calma assustadora, o cheiro acre misturado ao odor de álcool e peixe frito corroía meus sentidos, trazendo uma náusea crescente.

Aquela noite era diferente. Algo sinistro pairava no ar.

Os homens do cais, acostumados com os perigos do mar, estavam mais silenciosos do que o habitual. Seus olhares se voltavam ao horizonte, inquietos. Todos aguardavam a chegada do Criptonita – ou, como eles sussurravam com superstição mal disfarçada, o Navio da Morte.

FOOOOMMMMMMMMM!!!!

O som da sirene ecoou como o bramido de uma criatura saindo das profundezas, cortando o ar gelado da madrugada.

— De longe se ouve o grito dessa besta... — murmurei, tentando afastar a sensação de que algo ruim estava prestes a acontecer.

— E chato que só! — grunhiu Zé, mal se importando. Seu olhar, no entanto, traía a calma forçada. — Lata, por que vocês chamam essa porra de Navio da Morte?

O velho, que até então estava quieto, me lançou um olhar cheio de desprezo. Seus olhos, cansados e cheios de segredos, brilharam com um toque de malícia. Ele não respondeu, apenas soltou uma risada curta e sombria, voltando-se para Zé, murmurando algo que eu não consegui ouvir.

Fui ignorado, mas sabia que aquele silêncio falava mais do que qualquer explicação.

Peguei meu caderno de anotações, sentando-me no chão frio do cais. Minha mente fervilhava, mas o sentimento de perigo só aumentava. O Criptonita se aproximava, puxado pelos rebocadores, suas luzes espectrais perfurando a neblina, revelando sua estrutura titânica. Os marinheiros que trabalhavam no cais começaram a se mover, ansiosos, mas havia uma tensão no ar que era impossível de ignorar.

Cinco porões... quatro com paus de carga na frente, o último na ré... Mas isso não era o que importava. O que me preocupava era a história não contada daquele navio. Algo estava errado, profundamente errado.

Quando subi o portaló, uma sensação gélida percorreu minha espinha. O convés era um cemitério de sucata, pedaços de metal enferrujados espalhados por todo lado, como se o próprio navio estivesse se decompondo. A tripulação, com rostos pálidos e olhares vazios, mal parecia viva. Pareciam sombras de homens, presos em uma existência miserável, arrastando-se como espectros pelo navio.

Havia algo de errado com eles. Com tudo.

O cheiro. Um fedor indescritível, algo entre peixe podre e carne em decomposição, impregnava o ar. Era como entrar em uma câmara mortuária esquecida, onde os corpos ainda estavam lá, apodrecendo.

Desci aos porões, contra o meu próprio instinto de sobrevivência. Cada passo ecoava como um martelo na minha cabeça. O ar ali embaixo era ainda pior, espesso como fumaça, me sufocando com sua podridão. Enquanto investigava o local, algo começou a tomar forma em minha mente: esse navio não era apenas uma embarcação velha. Ele carregava algo... algo que não deveria estar aqui.

Foi quando um velho apareceu das sombras, sua figura deformada pelo tempo e pela escuridão. Seus olhos estavam fundos, quase perdidos no crânio.

— No meu tempo — disse ele com uma voz que parecia vir do fundo da terra —, navios como este chegavam sem qualquer fiscalização. Traziam a morte com eles... Epidemias, doenças que ninguém conhecia, homens que nunca voltavam... 1920 foi o pior ano. Uma praga se espalhou pelo cais. Mas ninguém ligou. Ninguém quis saber.

Ele tossiu, e por um instante, tive a impressão de ver algo escorrer da sua boca, algo escuro, quase negro. Ele me olhou com um sorriso torto.

— É como um vírus, sabe? — continuou, agora com um brilho insano nos olhos. — Começa no navio, espalha-se pelos homens. Primeiro, é um corte. Depois, febre, alucinações... até que eles enlouquecem.

Minha respiração ficou pesada, e meu coração batia acelerado. Tudo naquele navio parecia infectado por algo invisível, mas mortal.

Subi às pressas, o suor escorrendo pelas costas, enquanto o fedor de bacalhau podre se intensificava, como se o próprio navio quisesse me devorar. Cada sombra parecia se mover, cada som era amplificado, cada respiração era mais pesada que a anterior. Lá em cima, os homens do cais trabalhavam em silêncio, sem perceber o horror que haviam trazido à terra.

O Criptonita havia chegado. E com ele, a morte voltava para o cais.

Arthur Marchesini
Enviado por Arthur Marchesini em 15/11/2009
Reeditado em 09/11/2024
Código do texto: T1925040
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