Debaixo do Mesmo Céu

'To every thing there is a season, and time to every purpose under the heaven".

Eclesiastes 3:1

Plataforma de Nothinhg Hill (linha para o Aeroporto de Heathrow).Ponto de chegada.Ponto de partida.Um lugar por onde muitos passam, num corre-corre.Mas ela destacava-se das demais: com aquela grande mala marrom desbotada que mal podia carregar.Havia excesso de peso, com certeza.Dentro da mala, eu fantasiei:"-ali está a vida dela.E à respeito eu nada sei".Por dentro da mala, já meio sofrida, poderiam muito bem existir compartimentos que não combinassem com sua figura meiga, quase inocente e vulnerável. Poderiam estar ali guardados em um cantinho lateral com zíper sonhos imperfeitos , vontades impossíveis, e mágoas do que se foi.E o que existisse de muito "sujo" deveria estar bem ao fundo,talvez numa bolsinha cinza, havendo a necessidade de que você analisasse peça por peça de candura antes até chegar ao poço de água turva do interior.

Tudo o que ela foi como pessoa estava lá?Suas roupas denunciariam com quem se encontrou, por onde andou e o que fez?E talvez o que não fez?...Seu namorado ou marido não estava ali, nem aliança existia em sua mão.Eu olhei para aquela mala pesada, mas muito pesada para uma mulher para uma mulher carregar e talvez eu pudesse ajudá-la.Eu queria carregar a mala dela.Abri um sorriso e disse:"-Vamos pra longe daqui?!"Eu queria carregar ela no colo também.

-"Você é doido ou mafioso?Com essa cara, deve ser mafioso...E pra longe onde?Toscana?!Montreal?!"E eu perguntei p´raonde ela gostaria de ir...Respondeu:-"Eu iria para..."(e não completou a frase).Ficou desconcertada.Tentada?Não sabia p´raonde.Qual lugar?

-"Se você deixar tudo para trás, eu deixo tudo também","Vamos desistir dos nossos passados, e olha que eu só suponho o seu".E ela olhou para a mala como se fizesse um raio-x no que havia dentro dela, e a expressão foi meio franzida.Eu citei:-"Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo desse céu/Eclesiastes".Por instantes, ela ficou meio animada, meio pensativa, talvez enumerando o significado de cada coisa que ainda carregava consigo.

-"We wear the same clolthes ´cause we feel the same"/Nós vestimos as mesmas roupas porque nós sentimos os mesmos", parafraseei o grupo inglês Blur.-"Eu compro roupas novas, livros, com sonetos de amor e um gatinho persa".E ela me olhou como se afastasse-se de sua mala.-"Nós podemos alugar um apartamento e escolhermos a cor dos sofás.Se quiseres, a gente põe a cama na varanda quando for verão".Ela olhou para a minha pequena mala.De couro preto.

-"Faremos novos amigos e os menos simpáticos a gente trata como conhecidos".-"I will begin again"/"Eu começarei de novo",do U2, ela leu tatoado no meu braço.Quase sorriu.-"O apartamento pode ser com vista para um jardim florido de gardênias, ou se não der e for muito caro, a gente mora perto de uma estufa artificial, onde no inverno faz frio, mas lá dentro é primavera sempre".Ela afrouxou a mão com que apertava a alça da mala.

-"Na sacada, a gente bebe suco de limão com açúcar, trocamos beijos e deciframos palavras-cruzadas.-"Se morarmos perto do rio, seremos "ondulantes" como os peixes.A gente pode nadar junto".Ela deixou a mala solta sozinha no chão.

Então, ouvimos um chamado na Estação.O trem estava vindo da Plataforma 8, que era a penúltima antes de chegar aonde nos encontrávamos.Ela dividida entre ir ou não ir.Eu decidido a fugir.

Ela curvou seu corpo para a mala pegar.E a pegou.

Quando o trem chegou, ela entrou e sentou-se frente a um garoto lendo o tablóide fofoqueiro THE SUN, mas com os fones de seu I-Pod nos ouvidos.Pés no chão e cabeça nas estrelas?E se todos fossem assim...?Eu não me espantaria, pensei,... iria até gostar.Um pouco da crueza da terra e um pouco da leveza do céu...Mas como ela poderia dizer sim se tudo ao redor a deixava na dúvida?Aquele vai- e-vem, aquelas pessoas, aquelas bagagens, aqueles beijos de partida, tantos "adeus".-"Mas o que as pessoas precisam nessa vida a não ser um teto, alimentos, trabalho e amor?"Eu resumi pra ela.

-"Você é quem eu amarei.Eu posso trabalhar em qualquer coisa.Onde estiver nossa casa, não haverá mosquitos nem problemas por perto".

O trem, a Estação, o barulho, a atordoavam, ela quase não me podia me escutar.-"Sua partida é inaceitável.Você não pode."...

Entramos no vagão.Eu sentei ao lado dela. Peguei na sua mão.-"Desce comigo baby, vem agora", eu propus.

Três minutos para partir.O garoto tira os fones do ouvido.Concentra-se na realidade.O trem está de partida.-"Eu não posso ir com você;você parece não querer "ir" comigo", eu disse.Então eu pedi para o trem parar.Eu pulei para a plataforma,e começei a correr bem rápido à medida que ele pega velocidade, fazendo um gesto para ela puxar o cordão de alarme,o PARE e o rosto dela foi se desaparecendo como num flash.-"Apenas puxe!Puxe!Você pode saltar e deixar sua mala, tempo ainda há".O relógio da Estação badala, é meia-noite, eu estou sem você.O trem segue pra sempre com ela.

Três minutos para partir.O garoto continua com os fones no ouvido.Fecha seu jornal e o larga na poltrona vazia ao lado.Estende as pernas, apoiando os pés na poltrona da frente.Como se estivesse " de papo para o ar".O trem está de partida.Eu pego nas mãos dela e digo:-"Baby, arrisque tudo.Deixa a mala e vem comigo.Não há outra maneira, pense bem".A sirene de "PARE" foi disparada por um de nós.Pulamos pro lado de fora.As pessoas que lá dentro ficaram pareciam nervosas por termos abandonados nossas malas.O trem está pegando velocidade agora.Levando um tempo com ele. Levando o que a gente foi.Deixou segundos onde um ímpeto uniu minha vida com a dela.O relógio da Estação badala, é meia-noite, mas nós estamos juntos.O trem segue pra sempre sem nós.

Gabriel Colombo
Enviado por Gabriel Colombo em 09/11/2009
Código do texto: T1913263
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