ROTA NEGREIRA
Alta levantou mais cedo que o normal. Em verdade pouco descansara. Teve aquele mesmo pressentimento quando perdera seu esposo e seu primogênito... tempo inacabado onde revoltas assolavam todo o território. A poeira que as sapatas dos tanques fizeram na vila marcaram a alma de Alta com sulcos dolorosos e profundos. Sentia agora que Kizzó estaria fora do alcance dos seus olhos. Longe também estaria do alcance dos gritos e tiros. Temia, entretanto, ser por um longo período, logo, como um pé-de-vento eleva-se antes das chuvas, ela saiu do seu canto de dormir para verificar o que havia preparado para a viagem de seu filho adotivo. Ele levaria mais que um adorno ou lembrança em seu peito. Não era a primeira vez que partiria, mas das outras duas tentativas anteriores ele não conseguira sequer a cruzar a fronteira. O instinto da fera mãe ditava agora outro destino.
Adicionando-se à esta guerra local o chamado tempo global, ora tropeçariamos nas próprias pernas, ora entraríamos em colisão. Tentemos a segunda opção. Assim, acertados os ponteiros dos relógios, neste quase ínterin, o avião estava aquecendo sua lataria ao sol da manhã enquanto seus mantenedores chegavam com suas listas de afazeres. Consideravam-se do lado certo e em júbilo brincavam com suas diferenças. Testavam em identificar quem tinha um pé em África atachando ao cabelo do outro o velcro de suas insígnias. Projetavam o futuro racial espacial no seriado Guerra nas Estrelas, onde os mecânicos seriam negros.
Neste ínterin o avião estava aquecendo sua lataria ao sol da manhã enquanto seus mantenedores chegavam com suas listas de afazeres, logo depois seus operadores. Preparada para mais uma missão de treinamento a aeronave demorou em estar disponível, caprichos da idade. Dizia-se entre as equipes, para delimitar as fronteiras que haviam entre as varias áreas do corpo de especialistas, que algo que não se podia ser concertado com um martelo era problema do pessoal de elétrica. Mais temperamental que os êmbolos e os pistões eram os rádios… outro um ditado do dia-a-dia. Isto fora na semana anterior a tarefa de várias pesquisas imersas em toda uma complexa estrutura de logística.
- “Mecânico, selecione e arranque o motor número um”.
À esta ordem do piloto seguiam-se mais três neste quilate. Entre as vozes de comando os movimentos de braços e olhares na cabina faziam-se perceber ativos. Sob o ruído dos motores, tão equivalentes e simétricos em seus ponteiros, previa-se que seria um vôo normal tal e qual o seu anterior. Rompidas as barreiras dos calços de roda e da inércia o sopro das hélices deixariam no ar um hálito de gases quentes. Quebrada a lei da gravidade, subiriam aos céus os paladinos da próxima guerra.
Carlos entrara a bordo anteriormente aos outros operadores. Seguira-o toda uma lista de verificações como manda a doutrina da instrução, tanto por estar sendo observado quanto pela sua própria sobrevivência. Os riscos inerentes à atividade aérea tornara-o atento; não era tão novato assim. A mecânica do vôo era sua arte preferida.
-“Verificado. Normal!”
Era esta sua resposta contumaz.
·
Do outro lado do mar que separava nossos dois países e mundos, em um fuso tão inexato quanto aquele necessário ao nosso encontro, um barco ardia sob as folhas de sol, camuflado em uma cova de sargaços, entre esqueletos de sonhos. Correram-lhe mãos desesperadas e decididas, com movimentos de fuga. Braços de uma busca riscaram na areia a primeira derrota. A voz de um capitão tornava a todos em marinheiros de primeira viagem. Já em alto mar a náusea e o grito intercalavam-se desordenadamente ante as ondulações da água, sinal de que tudo estava indo certo. A voz do mar tornaria para alguns sua passagem derradeira.
Kizzó olhava e se detinha. Deteve-se novamente. Parecia querer avançar. Olhava novamente mas só as retinas estavam ativas, como uma bóia na linha da luz refletida. Tudo atrás era uma âncora, um pesadelo de um sonho mágico destroçado... A sombra da casa, seus animais domésticos, a deliciosa comida que Alta preparava sorrindo... Se acaso vinha a lembrança de seus pais e irmãs, seus músculos contraiam-se com as misturas de dor, saudade, ódio, lágrimas. Fuga maior era de dentro de si para o exterior. Por isso olhava. Seu poder de correr não estava nas pernas, dormentes de agora.
Estavam no local exato chamado ponto sem mais retorno. Na noite ouviu-se o barulho em espuma mergulhada de corpo abraçado a outro mais tenro. Desistida de sofrer e passar sua herança subsaariana, uma mulher lançou-se e ao filho. O choro da criança silenciou-se no barco mas despertou nas baleias a sina de Jonas. Quando os navegadores deram-se conta, só o espanto serviria de bóia ao resgate.
O longo dia fora produtivo em deslocamento sobre a água sob a influência da maré. Entravam sem saber na elipse das probabilidades. Deste instante até o cone de confusão restariam, em milhas náuticas, o alcance do horizonte aos olhos. Este sim seria o prenúncio de que seriam resgatados, para o bem ou mal dos destinos projetados. Pairaria assim a média certeza da transposição do pesadelo perseguidor.
··
Carlos apontou acudindo o indicador na direção do pára-brisas central.
“- Barco à vista! Posição onze horas!”
A disposição das cadeiras na cabine do avião centralizava a visão facilitando a observação da abóbada marinha ao mecânico. Uma vez que a atenção dos pilotos estava concentrada nos múltiplos instrumentos de navegação, sobrou-lhe tempo para acudir com os olhos na primeira varredura. Apesar de não ser uma operação de busca pré-determinada nas ordens do dia, era um vôo de instrução, a situação mudaria ante a diplomacia estratégica e política regente entre as duas margens.
- Atenção tripulação, Condição V.
À esta ordem do capitão-do-ar cada um dos tripulantes que se encontrava fora da sua posição ajustou seus cintos em seu postos originais. Sintonizaram-se também os canais de comunicação previstos e necessários para a passagem de verificação que seria feita sobre o barco alvo, inimigo, intruso, pirata ou simplesmente, à deriva.
Kizzó levantou-se bruscamente das dormentes pernas com o olhar fixo na direção oposta em que se desenvolvia o aeroplano. Quase caiu tremendo caso não apoiasse as mãos nos estais da proa da patera. Surpresos, os outros olhavam esperando uma indicação, um esboço, uma reação indicadora do que iria acontecer. Era ele, por alguns segundos, o astrolábio, a bússola para aquelas mentes compatriotas da esperança, antes compatriotas do desespero.
Seguiram-se murmúrios, gritos de comando, ordens para assentar. Kizzó permaceu em pé, acompanhando a órbita de aproximação, o ponto no céu crescendo, soprando chumbo e estrondo sobre suas cabeças. A onda quase o laça para jogar-lhe ao mar. O braço portanto estava desperto. Sentiu-se intrinsicamente salvo e conteve em seu recôndito a sua alegria. Aos que dividiam o olhar entre o avião e a estátua, esculpida em carranca de um rio inavegável, figura de Kizzó, restaram-lhes muito mais dúvidas dispersas em um quilombo de incertezas.
Em “El Puro” os giroscópios anotavam as atualizações de atitude, de posição, de rumo. Todos os tripulantes observavam na riqueza de dados coletados com a ajuda dos seus sensores específicos. A velocidade de projeção de duzentas milhas náuticas por hora impediu que Carlos fotografasse em sua mente, na proa da nau, o amuleto que trazia Kizzó no busto esculturado. Somente um movimento do pulso pendente correndo ao peito foi filmado. Também desapercebida passou a estampa amalgamada ao alumínio; figurado em dragão um deus africano tingido ao atrito com o vento.
Os sinais tangíveis e calculáveis foram fotografados e criptografados por todos os demais sensores. Seriam emitidos pelas vias satelitais, pelo espaço até as plataformas de alerta, de proteção e de resgate. Para uma máquina de guerra com muitos pontos duros e recursos para a guerra moderna antisubmarina, aquela simples operação de encontrar um barco inofensivo no oceano aberto era talvez sua mais simples submissão.
Carlos entrara no centro de lojas duas horas antes na busca de um filme em particular. Não o encontrara nas diversas prateleiras da cinemateca. Os perfumes que não procurava já os tinha à mão.
O choque deu-se na Avenida Dois, bem em frente ao centro comercial. Após uma carreira abrupta, surgida não se sabe de onde, autoridades, transeuntes e trabalhadores, ditos ilegais, travavam seus esforços específicos. Carlos viu-se neste redemoinho na porta de saída, na condição de inocente. Quando virou a última esquina, indo ao ponto de ônibus, perdeu seu equilíbrio ao ser atropelado pelo jovem em fuga com uma bagagem amarrada às costas. No impacto os dois foram ao solo. Espalhou-se pelo solo as mercadorias compostas de discos regravados de filmes recém lançados, atividade alternativa, alvo do policiamento local.
Colheu o que pode rapidamente, aquele em fuga. Abrindo seu tapete, jogou nele a juntada de capas, puxou pelo centro as amarras estrategicamente cruzadas em diagonal, fechando a tela, abraçou a trouxa e arrastou-se sumindo do alcance da visão de Carlos. Escapou também da patrulha, enroscada na avalanche de expectadores que assomou da calçada após o sinal de trânsito ter dado passagem ao outro lado da rua.
Ainda atordoado, Carlos foi acudido. Recolheram do solo seus pertences espalhados. Cataram o que restava no solo pondo dentro de sacolas tudo o que julgavam lhe pertencer. Respirou, retrucou, limpou a poeira e corrigiu o alinhamento da camisa, sob olhares de curiosos. Escondeu-se dois passos atrás, buscando no anonimato recompor sua estampa. O fluxo de pessoas ajudou a escamotear-se, desfocando-lhe das lupas e sombreando-lhe dos holofotes. Não lhe quebraram nenhum dos ossos nem dos seus frascos o perfume.
A surpresa acudiu ao orgulhoso perscrutador dos oceanos quando este chegou à sua casa. Ao selecionar dentre as chaves, documentos e presentes revoltos no plástico do centro comercial, saltou-lhe aos olhos a capa do filme que havia procurado em vão nas estantes da tarde. O filme tratava durante a Segunda Guerra da real história de um esquadrão aéreo composto por militares negros. O filme protagonizado por Laurence Fishburne chamava-se Tuskegee Airmen. Caído ao solo das mercadorias de Kizzó veio parar em suas mãos o seu desejo atropelado. Correu ao vídeo para assisti-lo imediatamente, ávido pelo combate. A emoção lhe era tão original quanto a sua cópia pirata. Os direitos autorais e patentes de todos os sentidos alguém um dia nos cobrará.
Tivéssemos olhado mais atentamente observaríamos, ainda sobre a mesa, embalsamado nos plásticos, um cordão em fibra, emoldurando um pendão de fina semente vegetal. Como um desejo reciclado dormia o amuleto que Alta costurara na noite antes da partida de Kizzó. Era o mesmo presente -passaporte que Kizzó prendera em sua mão ao peito no exato instante que fora sobrevoado pelo avião, um P-17 Zumbi, que o havia encontrado no mar. Era o mesmo adorno que perdera quando colidira com um transeunte, quando dava-se fuga da polícia comercial.
**
Em cada esquina de Sevilha-Espanha, está plantado um negro. O ente social concede-lhes vender lenços de papel como meio de subvivência...
"- Dais a Zumbi o que é de César?!"
Alta levantou mais cedo que o normal. Em verdade pouco descansara. Teve aquele mesmo pressentimento quando perdera seu esposo e seu primogênito... tempo inacabado onde revoltas assolavam todo o território. A poeira que as sapatas dos tanques fizeram na vila marcaram a alma de Alta com sulcos dolorosos e profundos. Sentia agora que Kizzó estaria fora do alcance dos seus olhos. Longe também estaria do alcance dos gritos e tiros. Temia, entretanto, ser por um longo período, logo, como um pé-de-vento eleva-se antes das chuvas, ela saiu do seu canto de dormir para verificar o que havia preparado para a viagem de seu filho adotivo. Ele levaria mais que um adorno ou lembrança em seu peito. Não era a primeira vez que partiria, mas das outras duas tentativas anteriores ele não conseguira sequer a cruzar a fronteira. O instinto da fera mãe ditava agora outro destino.
Adicionando-se à esta guerra local o chamado tempo global, ora tropeçariamos nas próprias pernas, ora entraríamos em colisão. Tentemos a segunda opção. Assim, acertados os ponteiros dos relógios, neste quase ínterin, o avião estava aquecendo sua lataria ao sol da manhã enquanto seus mantenedores chegavam com suas listas de afazeres. Consideravam-se do lado certo e em júbilo brincavam com suas diferenças. Testavam em identificar quem tinha um pé em África atachando ao cabelo do outro o velcro de suas insígnias. Projetavam o futuro racial espacial no seriado Guerra nas Estrelas, onde os mecânicos seriam negros.
Neste ínterin o avião estava aquecendo sua lataria ao sol da manhã enquanto seus mantenedores chegavam com suas listas de afazeres, logo depois seus operadores. Preparada para mais uma missão de treinamento a aeronave demorou em estar disponível, caprichos da idade. Dizia-se entre as equipes, para delimitar as fronteiras que haviam entre as varias áreas do corpo de especialistas, que algo que não se podia ser concertado com um martelo era problema do pessoal de elétrica. Mais temperamental que os êmbolos e os pistões eram os rádios… outro um ditado do dia-a-dia. Isto fora na semana anterior a tarefa de várias pesquisas imersas em toda uma complexa estrutura de logística.
- “Mecânico, selecione e arranque o motor número um”.
À esta ordem do piloto seguiam-se mais três neste quilate. Entre as vozes de comando os movimentos de braços e olhares na cabina faziam-se perceber ativos. Sob o ruído dos motores, tão equivalentes e simétricos em seus ponteiros, previa-se que seria um vôo normal tal e qual o seu anterior. Rompidas as barreiras dos calços de roda e da inércia o sopro das hélices deixariam no ar um hálito de gases quentes. Quebrada a lei da gravidade, subiriam aos céus os paladinos da próxima guerra.
Carlos entrara a bordo anteriormente aos outros operadores. Seguira-o toda uma lista de verificações como manda a doutrina da instrução, tanto por estar sendo observado quanto pela sua própria sobrevivência. Os riscos inerentes à atividade aérea tornara-o atento; não era tão novato assim. A mecânica do vôo era sua arte preferida.
-“Verificado. Normal!”
Era esta sua resposta contumaz.
·
Do outro lado do mar que separava nossos dois países e mundos, em um fuso tão inexato quanto aquele necessário ao nosso encontro, um barco ardia sob as folhas de sol, camuflado em uma cova de sargaços, entre esqueletos de sonhos. Correram-lhe mãos desesperadas e decididas, com movimentos de fuga. Braços de uma busca riscaram na areia a primeira derrota. A voz de um capitão tornava a todos em marinheiros de primeira viagem. Já em alto mar a náusea e o grito intercalavam-se desordenadamente ante as ondulações da água, sinal de que tudo estava indo certo. A voz do mar tornaria para alguns sua passagem derradeira.
Kizzó olhava e se detinha. Deteve-se novamente. Parecia querer avançar. Olhava novamente mas só as retinas estavam ativas, como uma bóia na linha da luz refletida. Tudo atrás era uma âncora, um pesadelo de um sonho mágico destroçado... A sombra da casa, seus animais domésticos, a deliciosa comida que Alta preparava sorrindo... Se acaso vinha a lembrança de seus pais e irmãs, seus músculos contraiam-se com as misturas de dor, saudade, ódio, lágrimas. Fuga maior era de dentro de si para o exterior. Por isso olhava. Seu poder de correr não estava nas pernas, dormentes de agora.
Estavam no local exato chamado ponto sem mais retorno. Na noite ouviu-se o barulho em espuma mergulhada de corpo abraçado a outro mais tenro. Desistida de sofrer e passar sua herança subsaariana, uma mulher lançou-se e ao filho. O choro da criança silenciou-se no barco mas despertou nas baleias a sina de Jonas. Quando os navegadores deram-se conta, só o espanto serviria de bóia ao resgate.
O longo dia fora produtivo em deslocamento sobre a água sob a influência da maré. Entravam sem saber na elipse das probabilidades. Deste instante até o cone de confusão restariam, em milhas náuticas, o alcance do horizonte aos olhos. Este sim seria o prenúncio de que seriam resgatados, para o bem ou mal dos destinos projetados. Pairaria assim a média certeza da transposição do pesadelo perseguidor.
··
Carlos apontou acudindo o indicador na direção do pára-brisas central.
“- Barco à vista! Posição onze horas!”
A disposição das cadeiras na cabine do avião centralizava a visão facilitando a observação da abóbada marinha ao mecânico. Uma vez que a atenção dos pilotos estava concentrada nos múltiplos instrumentos de navegação, sobrou-lhe tempo para acudir com os olhos na primeira varredura. Apesar de não ser uma operação de busca pré-determinada nas ordens do dia, era um vôo de instrução, a situação mudaria ante a diplomacia estratégica e política regente entre as duas margens.
- Atenção tripulação, Condição V.
À esta ordem do capitão-do-ar cada um dos tripulantes que se encontrava fora da sua posição ajustou seus cintos em seu postos originais. Sintonizaram-se também os canais de comunicação previstos e necessários para a passagem de verificação que seria feita sobre o barco alvo, inimigo, intruso, pirata ou simplesmente, à deriva.
Kizzó levantou-se bruscamente das dormentes pernas com o olhar fixo na direção oposta em que se desenvolvia o aeroplano. Quase caiu tremendo caso não apoiasse as mãos nos estais da proa da patera. Surpresos, os outros olhavam esperando uma indicação, um esboço, uma reação indicadora do que iria acontecer. Era ele, por alguns segundos, o astrolábio, a bússola para aquelas mentes compatriotas da esperança, antes compatriotas do desespero.
Seguiram-se murmúrios, gritos de comando, ordens para assentar. Kizzó permaceu em pé, acompanhando a órbita de aproximação, o ponto no céu crescendo, soprando chumbo e estrondo sobre suas cabeças. A onda quase o laça para jogar-lhe ao mar. O braço portanto estava desperto. Sentiu-se intrinsicamente salvo e conteve em seu recôndito a sua alegria. Aos que dividiam o olhar entre o avião e a estátua, esculpida em carranca de um rio inavegável, figura de Kizzó, restaram-lhes muito mais dúvidas dispersas em um quilombo de incertezas.
Em “El Puro” os giroscópios anotavam as atualizações de atitude, de posição, de rumo. Todos os tripulantes observavam na riqueza de dados coletados com a ajuda dos seus sensores específicos. A velocidade de projeção de duzentas milhas náuticas por hora impediu que Carlos fotografasse em sua mente, na proa da nau, o amuleto que trazia Kizzó no busto esculturado. Somente um movimento do pulso pendente correndo ao peito foi filmado. Também desapercebida passou a estampa amalgamada ao alumínio; figurado em dragão um deus africano tingido ao atrito com o vento.
Os sinais tangíveis e calculáveis foram fotografados e criptografados por todos os demais sensores. Seriam emitidos pelas vias satelitais, pelo espaço até as plataformas de alerta, de proteção e de resgate. Para uma máquina de guerra com muitos pontos duros e recursos para a guerra moderna antisubmarina, aquela simples operação de encontrar um barco inofensivo no oceano aberto era talvez sua mais simples submissão.
Carlos entrara no centro de lojas duas horas antes na busca de um filme em particular. Não o encontrara nas diversas prateleiras da cinemateca. Os perfumes que não procurava já os tinha à mão.
O choque deu-se na Avenida Dois, bem em frente ao centro comercial. Após uma carreira abrupta, surgida não se sabe de onde, autoridades, transeuntes e trabalhadores, ditos ilegais, travavam seus esforços específicos. Carlos viu-se neste redemoinho na porta de saída, na condição de inocente. Quando virou a última esquina, indo ao ponto de ônibus, perdeu seu equilíbrio ao ser atropelado pelo jovem em fuga com uma bagagem amarrada às costas. No impacto os dois foram ao solo. Espalhou-se pelo solo as mercadorias compostas de discos regravados de filmes recém lançados, atividade alternativa, alvo do policiamento local.
Colheu o que pode rapidamente, aquele em fuga. Abrindo seu tapete, jogou nele a juntada de capas, puxou pelo centro as amarras estrategicamente cruzadas em diagonal, fechando a tela, abraçou a trouxa e arrastou-se sumindo do alcance da visão de Carlos. Escapou também da patrulha, enroscada na avalanche de expectadores que assomou da calçada após o sinal de trânsito ter dado passagem ao outro lado da rua.
Ainda atordoado, Carlos foi acudido. Recolheram do solo seus pertences espalhados. Cataram o que restava no solo pondo dentro de sacolas tudo o que julgavam lhe pertencer. Respirou, retrucou, limpou a poeira e corrigiu o alinhamento da camisa, sob olhares de curiosos. Escondeu-se dois passos atrás, buscando no anonimato recompor sua estampa. O fluxo de pessoas ajudou a escamotear-se, desfocando-lhe das lupas e sombreando-lhe dos holofotes. Não lhe quebraram nenhum dos ossos nem dos seus frascos o perfume.
A surpresa acudiu ao orgulhoso perscrutador dos oceanos quando este chegou à sua casa. Ao selecionar dentre as chaves, documentos e presentes revoltos no plástico do centro comercial, saltou-lhe aos olhos a capa do filme que havia procurado em vão nas estantes da tarde. O filme tratava durante a Segunda Guerra da real história de um esquadrão aéreo composto por militares negros. O filme protagonizado por Laurence Fishburne chamava-se Tuskegee Airmen. Caído ao solo das mercadorias de Kizzó veio parar em suas mãos o seu desejo atropelado. Correu ao vídeo para assisti-lo imediatamente, ávido pelo combate. A emoção lhe era tão original quanto a sua cópia pirata. Os direitos autorais e patentes de todos os sentidos alguém um dia nos cobrará.
Tivéssemos olhado mais atentamente observaríamos, ainda sobre a mesa, embalsamado nos plásticos, um cordão em fibra, emoldurando um pendão de fina semente vegetal. Como um desejo reciclado dormia o amuleto que Alta costurara na noite antes da partida de Kizzó. Era o mesmo presente -passaporte que Kizzó prendera em sua mão ao peito no exato instante que fora sobrevoado pelo avião, um P-17 Zumbi, que o havia encontrado no mar. Era o mesmo adorno que perdera quando colidira com um transeunte, quando dava-se fuga da polícia comercial.
**
Em cada esquina de Sevilha-Espanha, está plantado um negro. O ente social concede-lhes vender lenços de papel como meio de subvivência...
"- Dais a Zumbi o que é de César?!"