UMA VEZ UMA FONTE

Terezinha Pereira

Uma água límpida. De um azul claro cristalino. As esculturas, de onde jorram bicas de água prateada, olham para a multidão com frieza de mármore branco de séculos de existência. A água das esculturas mistura-se com a do lago de um azul cristalino e claro. O fundo do lago cheio de moedas lançadas por gente de todo o mundo, brilha com os últimos reflexos de sol daquela tarde que passam através de espaços deixados entre os edifícios que circundam a fonte. Moedas prateadas, douradas, das duas cores. Sentadas no beiral do lago, de costas para a fonte, pessoas de diferentes nacionalidades atiram moedas na água de azul claro cristalino. Por pura brincadeira ou por acreditar na simpatia, não importa o motivo, as pessoas de todas as pátrias atiram moedas enquanto expressam um desejo. Outras edificações de séculos passados compõem o cenário , como que cercando o lago formado pelas águas brotadas das diversas aberturas das estátuas de mármore branco. O sol vai se escondendo e mais pessoas vão chegando. Um vento frio faz voar chapéus, cabelos e cachecóis. Crianças, jovens, meia idade e idosos. Não importa a idade. Apesar do frio, sorvete colorido nas mãos, todos parecem se curvarem ao feitiço da fonte apelidada por muitos de Fonte dos Desejos.

Ele também está lá. Boina de feltro cinza com bandeira do Brasil no centro cobre em sua cabeça o espaço deixado pelos cabelos que se foram. Não contava com o vento. Precisa ficar segurando a boina para não voar. A senha é a boina.

Tinha dezenove anos quando estivera pela primeira vez naquela cidade de muita história e, também pela primeira vez, havia se apaixonado. Era tempo de fim de guerra . No meio de estrondos e outros infortúnios havia encontrado uma mulher que acabou fazendo parte de seus sonhos e alimentado a fonte de seus irreveláveis desejos durante todos aqueles cinqüenta anos. Estiveram juntos no tempo de apenas uma semana. Haviam se conhecido naquela fonte.

Acabada a guerra, mão na frente outra atrás, teve de voltar para o Brasil. Casou-se. Teve três filhos, hoje casados e também com filhos. A mulher havia morrido há dez anos. Após a morte da mulher passou a economizar uma parte de tudo o que ganhava com o objetivo de fazer aquela viagem. Quando os filhos o viam de roupas surradas e quase sem momentos de lazer e o aconselhavam a gastar de suas economias para ter um pouco de diversão, ele dizia estar poupando para a velhice, para o caso de alguma necessidade maior. Nenhum deles teria sido capaz de imaginar que em uma cidade do outro lado do mar, cenário de muitas guerras e também de muitas histórias de amor, estaria guardado um sonho acalentado quase vida inteira.

Em segredo preparou a viagem com ajuda de uma agência. Arrumou passaporte e bagagens sem levantar desconfiança. Só avisou que estava partindo para Roma na véspera da partida. Os parentes ficaram assustados. Pai, o senhor vai para aquela cidade tão distante! Vai gastar muito dinheiro. Com bagagem, passagens e passaporte nas mãos, saiu firme, sem olhar para trás. A boina cinza com a bandeira do Brasil no centro, com o maior cuidado, levou no bolso interno do paletó.

Ele olha as estátuas de mármore branco que jorram água para o lago de águas azul claro cristalino e fica a imaginar, no meio daquelas construções centenárias, que nos cinqüenta anos passados desde que ali estivera não havia ocorrido nenhuma modificação significativa naquele local. Parecia mais limpo, mais conservado e mais cheio de vida. Olhando para o próprio corpo verifica que com ele o tempo não havia sido bastante pródigo.

A grande quantidade de pessoas na fonte o deixa assustado. Ela havia prometido chegar às nove horas. Estaria usando uma boina branca com a bandeira da Itália no centro. Quando se conheceram a moça era baixinha, magrinha, de olhos de um azul muito claro, cabelos escuros, pele clara. Nas faces tinha umas covinhas que o deixavam encantado. Um sorriso que o tornavam maravilhado perfeito. No momento da despedida prometeram se encontrar naquele mesmo lugar, com a permissão dos percalços da vida, cinqüenta anos depois, às nove horas da noite, quando o local costumava estar vazio. Encontro esse marcado e selado com o único beijo que deram na boca. A senha seria a boina com a bandeira do país.

Assim como não contava com o vento que ameaçava levar a boina, aquele homem não contava com a presença daquelas tantas pessoas de roupas coloridas e

diferentes se curvando à magia daquele lugar.

Faltando um minuto para as nove horas da noite o brasileiro entrou numa das muitas sorveterias localizadas nas proximidades e pediu dois sorvetes grandes e bastante coloridos. Saiu com os dois sorvetes nas mãos e, meio a multidão que crescia, conseguiu avistar bem junto a uma entrada da fonte uma cabeça branca com uma bandeira da Itália no centro. Viu que pertencia a uma mulher um pouco gordinha. Quando ficou mais próximo, notou que ela estava sentada numa cadeira de rodas. Uma garota aparentando quinze anos, baixa, magra, olhos de um azul transparente de contas de rosário, cabelos negros, pele clara e lindas covinhas no rosto a acompanhava. Tocou no ombro da mulher de boina branca com bandeira da Itália no meio e ofereceu-lhe um sorvete colorido. A mulher aceitou o sorvete com um sorriso que prometia cinqüenta anos de histórias para contar.

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 23/05/2005
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