Nosso amor agora existe

Cissa de Oliveira

De tanto que gosto do frio, nem parece que moro num país tropical. Talvez seja porque, durante o sufocante calor do verão, todas as coisas me surjam ampliadas, inclusive minhas alergias. Certa vez, a dermatologista disse que essa é uma doença de fundo emocional. Em se tratando da respiratória, que é a pedra na minha sandália de verão, lembrou que estaria relacionada às coisas que deixamos de expressar.

Por isso, nas férias de Julho, valorizo a estação do ano e subo a serra. Vou a Campos do Jordão. Lá, o vinho é mais gostoso. Até o geladinho do vento nas faces é apreciável. Caminhar até a Doceria Fantasia que fica a poucas quadras do hotel predileto, é um passeio imperdível nessas ocasiões.

Com delicadeza, o vento frio insistia em desajeitar meu cabelo que escapava do gorro vermelho que eu usava naquela noite, enquanto me dirigia à doceria. Usava luvas da mesma cor, e com elas reconfortava meu nariz gelado e incomodado pelas cócegas, provocadas pelos fios soltos a deslizarem em meu rosto.

Ouvi quando ele disse: - Esse seu estilo eu ainda não conhecia. Não precisei me esforçar para encontrá-lo, mesmo estando a rua repleta, nesse momento. Aliás, ele estava tão perto, que tive de afastar-me um pouco para visualizá-lo direito. Senti-me corar ante o efeito surpresa e a emoção. O que estava fazendo ali? Foi o que perguntei. - Compromisso profissional - disse, completando: - Não sou como certas pessoas que tiram férias programadas, sabe? Óbvio que brincava comigo, coisa mais do que comum no seu jeito habitual de tratar.

Mais reconfortante que o toque da luva quentinha ao nariz; mais a tempo que vinho quente em noites de inverno; mais benéfico do que o sono pesado nas noites frias que sempre adorei; mais alentador que descontraídas conversas ao redor de uma lareira; mais, mais, mais e mais. Assim sempre fora ele, pra mim, embora eu não soubesse se ele sabia disso.

Quantos sonhos e – por que não dizer também - quanta poesia, por causa dele, viviam em minh’alma? Seria mesmo ele quem, agora, tão naturalmente caminhava ao meu lado?

__Está indo pra onde?

__ Doceria Fantasia, conhece?

__ Ainda não, mas pressinto que estou para conhecer.

O movimento dos carros era grande e o barulho confundia-se com a música de alguns lugares por onde passávamos. Praticamente, precisávamos falar aos gritos. Mas isso não quebrou a magia daquela hora. Ao contrário, serviu para descontrair e suavizar o impacto da surpresa de nos encontrarmos ali.

Ao atravessarmos a rua ele segurou minha mão mas o fez de maneira natural. Uma vez do outro lado, disse:

__ Por que não paramos aqui e tomamos vinho quente?

Era um dos locais com música e eu pensei: Por que não?

E a música descia tão bem quanto o vinho. A conversa fluía, embora não tão bem quanto seus olhos bailando nos meus. Dia-a-dia, tempo, trabalho, correria. Coisas que verbalizamos. Sóis, luas, lilases, azuis, poesias. Coisas que nosso olhar repetia.

__ Sua boca é a trilha onde quero me perder.

__ E seu beijo é o caminho onde quero me achar.

E assim, para todo o sempre, nos tornamos primavera.

Ta vendo? Nosso amor agora existe!

Cissa de Oliveira

in: Com Licença da Palavra - Antologia

do Grupo Pax Poesis.

Ed. Scortecci - 2003.

Cissa de Oliveira
Enviado por Cissa de Oliveira em 23/05/2005
Código do texto: T19085