O fim do mundo (em 3 partes)
O fim da esperança
Acordou e já era noite. Sentia-se enjoada. Sua menstruação estava atrasada e isso a perturbava constantemente. Sonhava com bebês e sua própria morte todas as noites há quase duas semanas e cada vez dormia mais e mais. Simplesmente não conseguia mais acordar na hora. Tomou um banho apressado para ir à aula. Sonhos com bebês e menstruação atrasada, que bela combinação. Mas não tinha namorado e nem uma vida sexual realmente ativa. Não tinha medo de gravidez então, mas sentia-se mal, sentia-se inchada, gorda, mesmo sendo magra. Olhou-se no espelho. Branca, magra, olhos fundos e cansados. Vestiu-se com pressa e saiu do apartamento para ir à faculdade. Sua casa ficava do outro lado da rua na lateral da faculdade, mas sempre chegava atrasada. Nas escadas do prédio (que não tinha elevador) cruzou com uma mãe e seu bebê. Na sua pressa, quase esbarrou na senhora. O bebê sorriu-lhe, mas ela desviou o olhar, desconfiada, sem saber direito por que. A sensação de enjôo crescia em seu estômago, como nas manhãs em que bebia leite e saía apressada de casa. Queria vomitar, mas sabia que não conseguiria. Pediu um copo de água na portaria do prédio e andou até a rua. Esperando os carros passarem, um ônibus cruzou seu caminho e dentro dele viu um segundo bebê que olhava para ela com o olhar estático, preguiçoso. O ônibus parou à sua frente e o bebê não tirava os olhos dela. Desviou o olhar, olhou para os lados, mas não resistiu e olhou novamente para o bebê. Ele continuava a encará-la. Fez uma careta pra ver se assustava essa criança, mas ela pareceu não se importar muito. O ônibus começou a andar e ela atravessou a rua considerando a possibilidade de estar enlouquecendo. Chegou á universidade e, no hall de entrada, havia uma exposição de fotografias antigas de pessoas mortas, como era costume na época antes do enterro. Chamaram-lhe atenção algumas fotografias que retratavam bebês. Mesmo com os olhos fechados, ela os sentia olhando para ela. E o enjôo não passava. Foi direto para a sala de aula. Tentou entrar sem fazer muito barulho, sentando-se atrás dos demais alunos. O professor mal notou sua entrada. Apresentava slides com propagandas e explicava alguma cosia sobre o uso de cores. Quando ela começou a prestar mais atenção, eis que o professor exibiu um slide com uma propaganda de sabonetes... para bebês! Sentiu o desespero tomar conta de si e o enjôo tornar-se insuportável. Andou até o banheiro o mais rápido que pôde tentando não chamar muita atenção, mas os olhares eram inevitáveis: mal conseguia conter as lágrimas e tapava a boca com uma mão. Tentou vomitar, mas foi em vão. Ouviu um choro de criança ao longe. Sentou-se no chão com as mãos na cabeça sem saber o que fazer. Estaria grávida? Saiu dali direto para a farmácia mais próxima e comprou um teste de gravidez. Achou melhor fazer o teste no banheiro da universidade, só por precaução. Se sua mãe imaginasse sequer a possibilidade de uma gravidez... era melhor nem imaginar. Leu rapidamente as instruções. Nada muito difícil de entender. Abaixou as calças, fez o teste, esperou ansiosamente. O tempo não passava... Não passava... Percebeu que mal sentia o enjôo... Mas o tempo simplesmente parecia ter parado... Ouviu ainda o choro de criança ao longe... Finalmente a hora do resultado... O resultado... Positivo! Mas como? Como era possível? O choro de bebê tornou-se mais alto. Sem saber o que fazer, saiu do banheiro quase correndo. Na saída, quase esbarrou em uma mulher com um bebê nos braços. Um bebê! Levou a mão à boca para não gritar. Ir para algum lugar. Fazer alguma coisa. Para onde? Fazer o quê? Andava apressada, sem destino certo, à sua frente via bebês nos braços das mulheres, nos colos dos pais, desenhados nas paredes, em fotografias. Ouvia choros, risadas e, de repente, uma pancada seca. Um monte de gente aglomerou-se ao mesmo tempo ao redor do corpo da jovem desmaiada na rua em frente à universidade. O segurança correu para socorrê-la. Um dos transeuntes apanhou de sua mão o exame de gravidez. O resultado era negativo.
O fim da vida
Colocou um ponto final e fechou o caderno. Na capa, escreveu “A liberdade de voltar para casa” e o deixou sobre a escrivaninha, junto das cartas que nunca abrira, das cartas que nunca enviaria, das contas acumuladas e das fotografias antigas. Deitou-se na rede branca cheia de manchas. Essa agonia terrível que não o abandonava nunca. Essa melancolia em sua sombra. Esse hálito de fome, essa fome de nada. Pensou em sua namorada, mas era tarde para telefonar. E, além do mais, ela já sabia tudo o que ele tinha para lhe falar. Ele falava todo dia. Levantou-se e vestiu a calça que já usava há duas semanas, uma camiseta e calçou os chinelos. Passou as mãos nos cabelos assanhados desejando que fossem maiores. Pensou em tirar a barba, mas pra quê? Pouco ou nada o incomodava aqueles dias. Por que haveria de incomodar? Acendeu um cigarro e encheu uma caneca com o café morno. Tomou em três longos goles. Saiu do apartamento. Na entrada do prédio, uma multidão se aglomerava. Um ônibus atropelara uma moça. A conhecia de vista. Ela ainda respirava. Um guarda pedia para não mexerem no corpo, mas mesmo assim apanhou o que ela segurava em uma das mãos. Um teste de gravidez com resultado negativo. Pensou que poderia escrever um conto sobre aquilo se ainda fosse oportuno. Beijou a testa da moça e se retirou, indiferente às perguntas das pessoas querendo saber se a conhecia, se conhecia algum parente dela. Tinha uma longa caminhada pela frente. Sentiu vontade de telefonar pra alguns amigos, pelo menos pra dizer que estava pensando neles naquele momento, mas não deveria. Telefonou-lhes mas deixou o telefone tocar apenas uma vez. Em seguida, desligou o celular. Foi caminhando e parando para beber uma cerveja em cada bar da avenida. Era seu modo de comemorar todas as recordações guardadas ali. Em uma floricultura, escondeu o exame de gravidez dentro de um buquê. Urinou na porta de uma igreja. E andou muito. Andou por horas e horas tendo por companhia apenas a melancolia em sua sombra. Foi então que chegou ao terreno baldio. Desenterrou a corda, amarrou-a bem na árvore e se enforcou nu. Somente cinco dias depois seu irmão e dois amigos abriram a porta do apartamento à sua procura. Havia tanta poeira e mofo que deduziram que ninguém limpava o lugar há pelo menos dois meses. Um dos amigos apanhou o caderno sobre a escrivaninha e, lendo o título, soube de imediato o que havia acontecido. Mas não teve coragem de contar ao irmão do falecido. Pediu que o outro amigo assumisse essa tarefa.
O fim do tempo
As mãos deitaram seu corpo na cama. Tiraram seus tênis. O rosto aproximou-se do seu, deteve-se por um momento. Os olhos fixos nela, como se quisessem mapear seu rosto. Como se esperassem o que não havia para ser esperado. Os olhos fecharam-se e o rosto aproximou-se ainda mais. Deteve-se. Os olhos abriram-se mais uma vez. Os olhos esperaram mais uma vez. As mãos abriram a janela e tocaram as suas antes que ele partisse sem fazer barulho, fechando a porta atrás de si e deixando ela sozinha no escuro. Pancada! Berro! Luz! Sol! Pancada! Calor! Sol! Berro! Acordou desnorteada ouvindo os berros de sua mãe fora do quarto perguntando por ela. Estava no quarto de seu irmão. Os berros eram basicamente variações de uma mesma frase que continha palavras como “vagabunda”, “vestibular”, “sacrifício”, “desisto”, “cursinho caro” e mais cerca de meia dúzia de coisas parecidas. Lavou o rosto rapidamente na pia do banheiro próximo, calçou os tênis e pegou o primeiro caderno que encontrou. A embriaguez e as alucinações ainda não haviam passado, mas continuar ali era impossível. Atravessou a sala o mais rápido que pôde, sem olhar para trás, balbuciando alguma justificativa sobre estudar na casa de uma amiga. No elevador, não se conteve e vomitou o vinho barato. Sede, muita sede. Suas mãos estavam geladas. Se alguém entrasse naquele elevador seus problemas iam duplicar, mas estava com sorte e conseguiu chegar ao térreo sem encontrar ninguém. O porteiro não estava em sua cabine. Bebeu três copos da água dele e saiu. Foi andando até a universidade. Campus. Guardas. Olhares. Andar. Conhecidos. Sede. Professores. Olhares. Amigos. Sorrisos. Vinho. Cigarro. Sorrisos. Muito vinho. Beijos. Bar. Cerveja. Ácido. Mais cerveja. Cigarro. Beijos. Ela tá bêbada desde ontem. Cigarro. Cerveja. Vinho. Vômito. O dono do bar falou alguma coisa que ela não entendeu e mãos de algum conhecido a levaram para fora dali. A luz era forte, forte demais. Tudo derretia ao seu redor. Sentada em um pedaço de concreto esperou até que as mãos a levassem até que ela subiu as escadas de um ônibus gigante. Bebês gigantes a olhavam assustados. Bebês gigantes por toda parte, sentados, em pá, com suas cabeças monstruosas, bochechas gigantes, bocas cheias de baba. Medo. Náusea. Medo. Os bebês gigantes riam dela, mas estavam com medo. O ônibus inteiro tinha medo dela. Ele parava cada vez que ela levantava a cabeça para encarar os bebês. Ela tinha medo, mas não eles não podiam notar, não podiam sentir o cheiro dela. Só podiam sentir o cheiro de seu vômito e do seu desprezo por esse mundo de bebês sem mãe. Percebeu que tinha um caderno nas mãos. Em sua capa ela leu “A liberdade de voltar para casa”. Olhou em volta. Os bebês ainda olhavam para ela. Ainda tentavam encontrar seu medo. Precisava se distrair. Começou a ler o caderno. Ou o caderno começou a ler ela. Alguém falava com ela enquanto ela se deixava escorrer para dentro do caderno. Sussurros suicidas. Promessas de morte. Despedidas encomendadas. Uma melancolia sem fim. E o dia não passava. E o tempo parou. O ônibus parou e ela desceu com o caderno ainda aberto em suas mãos. O caderno queimava em suas mãos, mas ela congelava. Abraçou o caderno como uma mãe abraça seu bebê e caminhou indiferente à pressa do mundo à sua volta. Cantava baixinho uma canção que não conhecia, uma canção que vinha aos seus lábios e ouvidos pela primeira vez. Uma canção fúnebre. Atravessou avenidas, viadutos e ninguém prestou atenção em suas lágrimas. O mundo tinha pressa demais para ela. Ela caminhava, mas sentia-se parada. Outros olhos não encontrariam os seus mesmo que tentassem olhar no fundo deles. Ela tinha olhos de caleidoscópio e o mundo estava em preto-e-branco. Caminhou abraçando o caderno até encontrar uma porta aberta e sentiu que aquela porta sempre estivera ali a esperar que seus pés atravessassem sua soleira. Do outro lado encontrou um vasto matagal com inúmeros arbustos e uma árvore bem no meio. Na árvore, um homem pendia preso por uma corda amarrada a seu pescoço. Ele não tinha olhos, mas seu olhar encontrou o dela. Desatou o nó que prendia a corda à árvore e abraçou o homem nu. Colocou o caderno entre seus braços e abraçou-o com força. Não havia amor para o homem nu. Não havia esperança. Não. Não havia sequer saudade. Ele era apenas um homem nu e esquecido e ela sentia por ele uma simpatia como nunca sentira por mais ninguém. Tirou três papelotes da carteira e os colocou sob a língua. Deitou-se ao lado do homem nu e não acordou mais.