Túlia
Aquela biblioteca antiga e empoeirada, abandonada pelo governo municipal e sustentada por pequenas doações, guardava excelentes livros. Livros antigos que já não mais se acha em livrarias. Obras realmente raras, mas sem nenhum apelo para a sociedade moderna. Era ali, em uma cadeira de madeira lascada com um livro a frente depositado sobre a mesa lia a pequena Túlia. As pessoas se impressionavam com a idade da menina. Ela tinha 16 anos, mas, de tão baixa e magra e pelas suas feições angelicais, aparentava 14. Túlia sempre fora uma criança baixa e na adolescência os deuses também não foram gentis com ela. Constante alvo de brincadeiras infantis por causa de sua altura sempre a afligiu, mas ela encontrou alívio nos livros.
Os livros sempre foram o grande objeto de adoração de Túlia. Desde que os descobrira os devorava linha por linha como a degustar de um prato fino. E cada vez que os terminava e fechava, suspirava como se enamorada estivesse. Cada autor, cada história, cada pensamento era uma gama inacreditável de mundos que ela podia visitar se distanciando das pessoas e fugindo das aflições. Os livros levaram ela ao hábito de se sentar sempre na mesma cadeira, em frente à mesma mesa da mesma empoeirada biblioteca.
Túlia também não era bonita, mas não se dizia também que era feia. Tinha uma espécie de beleza que somente certos homens apreciavam. Seus olhos azuis e seus cabelos longos e negros eram incompatíveis. Muitos acreditavam que ela pintava o cabelo, outros que usava lentes nos olhos. Ainda que naturais, ela sempre ouvia a pergunta. Túlia acreditava e via no espelho essa incompatibilidade e fingia que seus olhos eram pretos, que só estavam azuis por algum poder mágico ou alguma interferência alienígena. Apesar de logo acordar para realidade, tais assombros momentâneos a levaram a seção de ocultismo da biblioteca.
A misteriosa bibliotecária Mafalda dos Reis Estrela, uma senhora de mais de 60 anos que trabalhava ali desde os 25 e a única empregada restante na biblioteca, orientava Túlia cerca dos livros. Mafalda já não agüentava mais o serviço de limpar a biblioteca da poeira e nem se importava mais, já que quase ninguém a visitava, e tudo que fazia era orientar os poucos visitantes e guardar os livros. Túlia a adorava e adorava ainda mais os livros que Mafalda a recomendava ler.
Certo dia Túlia se deparou com um livro negro e maltratado, mas limpo de poeira. Ela pegou o livro e o colocou sobre a mesa e perguntou a Mafalda que livro era aquele. Mafalda respondeu que um homem de capa e escondendo o rosto com um capuz o doara para biblioteca, disse que era sobre magia, então Mafalda o colocara na seção de ocultismo. Túlia se interessou ainda mais pelo livro sem título e o abriu para lê-lo. Logo na primeira página, escrito à mão em letras antigas como se escritas a mão por uma pena, se lia: “Aventurem-se nos conhecimentos deste livro os ousados e os bravos”. Túlia sorriu, estava empolgada. Virou a página, também escrita à mão, era como um livro de receitas. Magias e feitiços que se estendiam por páginas e mais páginas detalhados e ilustrados com minuciosidade. Túlia estava convencida que achara um Grimório de algum mago ou bruxo.
Ela terminou o livro, o fechou e suspirou. Túlia não tinha percebido a hora passar e viu que já era noite. Mafalda roncava alto sentada numa cadeira e encostada numa parede. Túlia se sentiu culpada por fazer isso com aquela pobre senhora. Foi se levantar para se desculpar, mas o livro não desgrudou da mesa. Túlia fez bastante força, mas o livro não se mexeu. Tentou olhar por baixo do livro para ver o que o prendia a mesa, olhou debaixo da mesa e nada. Certa de que era alguma magia que talvez acionara sem querer, Túlia folheou o livro em busca de uma resposta. Achou uma única página que mencionava que o livro era trancado se uma pessoa que não o dono o lesse. A única forma de destrancar o livro era despejar sangue jovem e puro sobre o local onde ele fora trancado.
Túlia pegou um abridor de cartas e se aventurou a destrancar o livro. Cortou a mão devagar e com caretas de dor e deixou o sangue pingar na mesa quando havia já uma boa poça e Túlia já não se sentia muito bem, ela escuta algumas palavras atrás dela. Rapidamente se vira para achar Mafalda atrás dela com um sorriso na boca. A bibliotecária a segura pelos ombros e a joga sobre a mesa. Segurando a menina contra a madeira ela molha a mão no sangue e faz algum desenho atrás do pescoço de Túlia que somente sente seu sangue frio molhando a pele pelo dedo de Mafalda. Esta última abre o livro e lê em voz alta algumas palavras que Túlia nunca iria entender.
No outro dia, os pais de Túlia vieram à biblioteca procurando a menina que não havia voltada na noite passada. Mafalda os recebe e diz que a menina saiu de noite apenas. Os pais agradecem e vão à polícia. Mafalda pega seu velho Grimório sob os braços, tranca a biblioteca e parte da cidade. Túlia nunca mais é vista.
Dizem que Mafalda usa a vida de meninas na idade de Túlia para manter-se viva, dizem que as usa para aumentar seu poder, dizem que as dá para o demônio para manter seu poder, dizem que as leva para algum lugar distante e as fazem escravas e outros dizem que Mafalda apenas coleciona as almas dessas meninas por afeição.