Notívagos
Quando ele a havia abraçado e mordido, ela sentiu uma leve dor a princípio, a dor das presas dele penetrando sua pele, mas agora não havia mais dor. Sentia seu sangue sendo sorvido, suas forças se esvaindo, mas também se sentia livre, solta... Talvez morrer fosse assim.
Enquanto perdia sua vitalidade começava a relembrar-se de como veio parar ali. Pura impulsividade. Não entendia agora o porquê, mas alguns meses atrás algo havia alimentado sua curiosidade sobre vampiros e quando ficava curiosa nada a parava. Começou então a pesquisar freneticamente sobre essas criaturas mitológicas, primeiro pela internet onde conseguiu muitas informações duvidosas, nisso compreendeu que seria mais difícil do que imaginava.
Resolveu pedir ajuda para um amigo que era mais inteligente e tinha mais experiência com pesquisas - além de ter muito dinheiro - ele aceitou movido também por curiosidade. Ambos começaram a pesquisar sobre o tema em diversas bibliotecas, todas as que puderam visitar, aprenderam muito sobre lendas como as do Conde Vlad Tepes III, Condessa Elizabeth Barthory, sobre um verdadeiro Conde Orlox e até outros supostos vampiros menos conhecidos. Os livros mais antigos diziam que todos eles ainda estavam vivos, adormecidos, porém o local onde seus corpos se encontravam eram distantes demais e a dupla de pesquisadores queria algo mais... acessível.
Quando já estavam cansados ambos encontraram um último livro do qual nunca sequer ouviram falar nem acharam registros sobre ele nessas pesquisas. Foi encontrado por acaso numa biblioteca de outro estado enquanto estavam numa viagem de estudos. O livro parecia ser a tradução de uma tradução em latim do original, intitulava-se “Caos” e contava a história de um vampiro anterior ao próprio dilúvio: Lyan. O livro dizia especificadamente que o túmulo do vampiro ancião se encontrava num velho museu, que por estranha coincidência ainda existia.
Ela estava decidida a encontrar um meio de entrar nesse museu e verificar por conta própria - enquanto seu amigo, que tinha “afazeres mais importantes” de acordo com ele mesmo, ficou fora dessa parte da aventura. Décadas se passariam até que os dois pudessem novamente se encontrar.
A jovem curiosa entrou no museu de dia com um grupo de visitantes. Achou que seria mais fácil de entrar assim do que invadir o local a noite como uma ladra, porém nenhuma das exibições parecia envolver uma tumba antiga, caixão de pessoa importante ou corpo mumificado. Nada relacionado aos mortos. Começou a duvidar se o livro era verdadeiro.
Pouco antes do horário de visitas acabar ela se afastou do grupo e decidiu explorar cautelosamente as áreas restritas do museu – que lembrava um pouco uma espécie de velho santuário. Não prestava muita atenção nas informações dos guias, estava muito distraída, mas ouviu que o local antigamente era usado como santuário de alguma religião pagã antiga.
Tomou muito cuidado para evitar os guardas e viu, em várias das alas restritas, muitos altares e imagens de pessoas que lembravam santos, mas também nada parecidos com os santos que conhecia. Na verdade essas imagens possuíam um ar levemente macabro e obscuro - como se olhassem intimamente na alma de seus observadores. Mal se passaram dez minutos, e já estava impaciente de tanto procurar, quando encontrou uma porta que não era vigiada - sentiu como se já houvesse passado perto dessa porta, mas exatamente por não ser vigiada que a ignorara completamente - era uma espécie de porão ou depósito. Resolveu investigar um pouco. O depósito de um museu que antigamente foi sede de uma religião pagã era algo realmente muito curioso...
Infelizmente encontrou apenas caixas de tamanhos diversos com a palavra “Frágil!” estampada em todos os lados, todas também de variados tamanhos. Pensou em abrir algumas, mais uma vez movida pela curiosidade, até esquecendo o motivo principal de sua busca, mas todas as caixas estavam muito bem pregadas... Quando se aproximava das últimas caixas no outro extremo da sala encontrou uma estranha e enorme caixa de pedra.
Aproximou-se mais para averiguar... Na verdade aquilo era uma espécie de sarcófago ou túmulo e possuía diversas inscrições cravadas por toda sua superfície. Passou seus dedos pelas sutis gravações daquele possível idioma mitológico e teve uma estranha sensação de que não poderia encontrar nada mais raro que aquilo em toda sua vida... Enquanto se perdia em pensamentos teve um repentino desejo de tentar empurrar a tampa, não hesitou e aplicou toda sua escassa força para isso.
A tampa era pesada e moveu pouco deixando apenas alguns centímetros de abertura, mas foi o suficiente para que ela pudesse sentir um enojante cheiro de carne podre. Enquanto ela recuava para fugir do odor quatro dedos de uma mão pálida, enrugada, flácida e com leves feridas passaram pela fresta agarrando a tampa, em seguida abrindo o túmulo de pedra.
Depois dessa cena suas lembranças são um tanto distorcidas. Lembrava daquele ancião levantando-se do túmulo, ele tinha pele flácida, longos cabelos brancos, algumas estranhas feridas pelo corpo e suas primeiras palavras foram roucas, fracas, inentendíveis, mas seus olhos eram totalmente diferentes: negros como uma noite sem lua, nuvens ou estrelas, até parecia não possuir pupila, com o eterno olhar de um jovem ambicioso manipulador de 22 anos. “Só pode ser um demônio...”; era a única explicação que sua mente concebia.
Ela não conseguia se mexer; paralisada de medo talvez. O monstro caminhou trôpego até a jovem, abraçou-a com uma intimidade acanhadora e passou uma língua babenta por seu pescoço. Naquele momento a jovem curiosa arrependeu-se de sua impulsividade e fez a única coisa que poderia agora: respirar fundo, fechar os olhos e dar adeus, mesmo sem ter ninguém para se despedir além de si mesma.
Enquanto o monstro a mordia e sorvia toda sua essência vital, seus músculos se desatrofiavam, sua pele tingia-se numa tonalidade ávida, sua feridas cicatrizavam sem deixar marcas, seus cabelos recuperavam a cor. Estava voltando à sua forma física verdadeira. Não sabia em que época estava, não fazia idéia de quantos anos ou séculos haviam se passado desde seu reinado, mas nada importava.. Estava vivo e sentia sede, queria apenas beber mais e mais daquele rubro drinque adocicado. Quase havia esquecido como é bom o gosto da vida... Ou melhor: O gosto da morte!
Lyan já não se controlava, estava quase bebendo as últimas gotas do sangue da jovem, ela já estava pálida e inconsciente, quase morta. Até que ele sentiu um gosto amargo que o fez parar de beber o sangue da moça imediatamente; sangue nunca tivera um gosto tão ruim antes para ele... Abriu os olhos e descravou suas presas, libertando-se da descontrolável sede e admirando aquilo que amargara sua língua: uma lágrima. Em suas últimas forças, a última reação do corpo daquela curiosa criatura fora derramar uma amarga lágrima de desespero.
O monstro largou o corpo da moça que caiu no chão bruscamente. Observou as vestes dela: calça jeans, tênis, uma camisa preta com uma banda qualquer estampada; não conhecia nada daquelas coisas... Apenas sabia distingui-las por que havia usado suas habilidades para adquirir parte do conhecimento daquela bela jovem enquanto sorvia seu sangue.
“Acho que dormi demais...”; sussurrou para si mesmo num sorriso. Passou o dedão pelos lábios manchados de sangue e contemplou por alguns segundos aquele líquido carmim lembrando-se de todos os seus pecados e crimes... Fazia mais de 5 mil anos desde que havia entrado naquele profundo sono e o tinha decidido para fugir de todos esses pensamentos que lhe atormentavam a alma. Agora era a hora de começar a se redimir.
Pegou o corpo da moça em seu colo, mordeu seus próprios lábios com força começando um pequeno sangramento, fechou os olhos e a beijou usando seus poderes de influência para que ela bebesse de seu sangue - mesmo sabendo que esse último ato era desnecessário. Quando ela sentiu o primeiro gole escorrer por sua garganta seus olhos se abriram de imediato. “O que é isso?”; pensou consigo ao sentir aquele gosto levemente adocicado revestir sua boca. Não sabia quem era aquele belo homem de longos cabelos negros, nem fazia idéia do que ele estava dando para ela, mas tinha vontade de beber cada vez mais... Também não compreendia como, mas aquele estranho líquido de sabor único conseguia lhe passar uma sensação de prazer, de satisfação plena. Não saciava apenas sua sede, como também sua fome, cansaço e até sua libido. Aos poucos recobrava toda sua vitalidade, se sentia com uma nova vida, mais disposta, mais animada... Como se aquele líquido forte e delicioso estivesse substituindo seu sangue fraco e debilitado por toda sua corrente sanguínea.
Lyan já tinha cedido sangue demais, precisava fazê-la parar senão ficaria fraco e acabaria tendo todo seu sangue drenado entrando assim em mais um longo sono. Afastou severamente o rosto dela do seu e passou a língua pelos lábios sentindo o gosto de seu próprio sangue, depois abriu os olhos e fitou-a, não mais como “comida”, mas agora como semelhante... Depois que ela se libertou da sede percebeu que algo havia mudado, tudo estava meio diferente, sentia frio e uma extrema necessidade de beber mais daquele prazeroso líquido. Não se importou a princípio em descobrir quem era o seu benfeitor, estava distraída com novas sensações. Conseguia escutar alguns ruídos vindos por entre os caixotes do depósito, eram ratos. Sua audição estava aguçada o suficiente para notar cada um deles roendo pedaços de madeira e correndo de um lado para o outro, haviam seis. Também conseguia sentir o cheiro de madeira, da umidade em certo ponto do depósito devido a um mínimo vazamento no encanamento, o fedor dos ratos imundos e também o aroma delicioso daquele líquido que a havia despertado...
A sede invadira seus instintos novamente, mas agora tinha maior controle sobre ela por não estar tão necessitada quanto antes. A jovem agora abria os olhos para ver melhor aquele estranho homem que lhe havia socorrido, ele era belo, muito belo e estava nu (o que a deixou mais atônita), era um tanto magro apesar de possuir físico um pouco definido, possuía longos cabelos ondulados e negros, sua pele caucasiana era limpa, não parecia possuir nenhum tipo de marca ou cicatriz. O rosto dele era sereno, mas havia algo de errado com os olhos, negros e frívolos como os de um eterno jovem manipulador... “É ele! É o demônio que eu libertei!”.
Seu desespero e confusão começaram a aumentar, sentada no chão recuou um pouco perante aquela temível e bela criatura. Não entendia como aquele velho bizarro havia se tornado um homem tão lindo, seus lábios trêmulos soltaram uma escassa interrogativa: - Quem... O que é você?; a qual ele respondeu secamente: - Me chamo Lyan, sou um notívago... Ou melhor, sou um vampiro.
Vampiro! Finalmente estava frente a um deles, finalmente o havia encontrado, mas por quê? Não sabia o que fazer ou dizer, tinha medo, ele poderia lhe tirar a vida num piscar de olhos.
- Não se preocupe, não pretendo matá-la, agora você é minha companheira. Devo-lhe minha vida por que o cheiro de seu sangue me fez despertar.
A jovem se espantou por ele saber falar sua língua, pensou que se ele havia saído de um caixão com inscrições tão antigas então ele não deveria conhecer nenhum idioma atual. Estava perplexa, ainda não conseguia acreditar que havia encontrado um vampiro. Movida por curiosidade perguntou sobre o porquê dele ter se chamado de “notívago”.
- É assim que nós nos chamamos, fugimos da luz do dia, somos andarilhos noturnos por natureza, logo notívagos. Agora você também é uma de nós.
Agora ela entendia que aquele líquido saboroso que ela havia bebido era o sangue dele, sangue de um vampiro! Por isso se sentia diferente do normal, por isso a sede quase e cada vez mais incontrolável. Ao recobrar consciência sobre a sede notou que ela parecia ter aumentado demais, sentia uma crescente debilitação em seu corpo e estava um pouco pálida. Lyan percebeu e seguiu em direção às escadas dizendo apenas: - Vou procurar comida, também estou com sede...
Estava sozinha num depósito mal iluminado, fora transformada em vampira e agora sentia sede por sangue. O que mais faltava? Será que conseguiria viver bebendo sangue de pessoas inocentes que nem fazem idéia da existência de vampiros? Poderia se acostumar com a idéia de beber sangue para viver, mas será que sempre teria de matar alguém para isso? Tudo estava acontecendo um tanto rápido demais... Distraída por pensamentos quase não percebeu a aproximação de um observador tão curioso quanto ela. Era um dos ratos que ela havia antes percebido com seus sentidos recém aguçados.
A sede era grande demais, não conseguiu resistir aos seus instintos e num rápido salto agarrou o roedor cravando suas presas nele. O sangue dele era horrível, não por ser de um rato, mas por ser de um animal. Não era comparável ao sangue de Lyan, era frio, nojento, como beber água de um esgoto, não havia nenhum prazer naquilo, apenas sentia um mínimo de sua necessidade saciada e também um leve desgosto em ter se tornado uma criatura que sobrevive à custa da vida de outras criaturas.
Levou um repentino tapa no rosto que fez com que o rato fosse arremessado longe. Era Lyan agora vestindo uma calça e com o corpo de um segurança (sem suas calças) no ombro.
- Nunca mais faça isso! Você possui meu sangue agora, um sangue forte e nobre que nunca deve ser manchado com o sangue de criaturas tão inferiores. Apenas beba sangue de animais em caso de emergências - jogou o corpo do segurança no chão como se não fosse nada além de um grande saco de lixo. Beba e não se preocupe com a vida dele, já está morto. Sei como os recém transformados ainda são apegados à sua humanidade e odeiam tirar vidas. Apenas aproveite enquanto o sangue ainda está quente.
A expressão de espanto no rosto daquela recente vítima era muito incomoda, ela sequer conseguia se aproximar do corpo. As unhas de uma das mãos de Lyan cresceram lentamente tomando a forma de garras, pegou uma das mãos do defunto e com o dedo indicador cortou o pulso dele oferecendo-o para ela que impulsivamente o mordeu levada pelo instinto, ignorando completamente qualquer aversão por estar bebendo do sangue de um ser humano, morto, mas ainda sim uma pessoa.
O sangue humano definitivamente era muito melhor que de animais, principalmente de ratos, mesmo assim ela sentiu uma diferença entre o sangue humano e o de Lyan. Não era mais como se ela estivesse suprindo todas as suas antigas necessidades humanas ao mesmo tempo e nem sentia o êxtase que sentira com o sangue vampírico, apenas matava sua sede. Apesar de tudo era inegável o modo como o paladar de um vampiro saboreava docemente o sangue humano, não com o estranho gosto de ferrugem que o paladar humano sente ao sorver o próprio sangue...
Quando terminara de saciar sua sede a jovem viu uma mão sendo oferecida a sua frente, era Lyan. Ajudou ela a se levantar enquanto dizia: - Vamos embora, tenho lugares a visitar e pessoas para ver... Isso se elas ainda estiverem vivas.
- O que pretende fazer? – ela sussurrou com certo medo, o temia, mas também nutria aos poucos certa admiração e afeição por aquele estranho ser.
- Reerguer a defasada sociedade notívaga, algo me diz que nossa espécie esta morrendo... Você virá comigo, vou lhe dar proteção e ensinar sobre sua nova vida.
Apesar de seus ares severos, havia algo na voz dele que a tranqüilizava, realmente se sentia protegida só por saber que ele estava perto. Não sabia como seria exatamente sua vida a partir de agora, teria que se acostumar a beber sangue, talvez até tenha de tirar vidas para sobreviver. Apenas a idéia já lhe causava alguns calafrios... Isso era bom, pelo menos ainda sentia calafrios, talvez não fosse tão anormal ser um vampiro. Nunca mais veria a luz do dia, mas não sabia se isso era algo bom ou ruim.
“Será que nunca mais vou poder comer nada temperado com alho também? Que pensamento idiota, agora só posso beber sangue pro resto da vida...”, pensava enquanto seguia seu benfeitor finalmente para fora daquele depósito imundo. Estava tão cansada que nem conseguia mais raciocinar direito. Começou a pensar na sua antiga vida e tudo que teria de abandonar, como seus pais sofreriam com seu desaparecimento, os amigos que nunca mais veria... Não era tão fácil assim se desapegar das coisas, mas também não sabia mais se poderia conviver em meio a pessoas comuns sabendo que ela nunca se encaixaria totalmente. Sempre seria uma espécie de aberração em meio aos outros e não conseguiria manter esse segredo por muito tempo. Não havia volta...
- Você está distraída demais. - a voz de Lyan a despertou de seus pensamentos, ela não respondeu, apenas trocou olhares com ele, que continuou: - A propósito, você ainda não me disse seu nome...
- Cella, apenas Cella - não queria proferir seu sobrenome, não era mais a mesma pessoa e seu sobrenome ainda era uma ligação com seu passado, sua família... Manteve o seu primeiro nome porque sabia que ainda era alguém.
Trocaram um ultimo sorriso e seguiram adiante.