PROBLEMAS EM DÁLIA?
Leo Celeres_[www.ulcerafrags.blogpot.com]
A novidade da Wealth&Clean, firma da cidade de Dália, era de fato a solução para a falta de tempo que incomodava tantos pais de família: o banhador elétrico. Consistia numa cabine estreita capaz de envolver todo o corpo de um homem de dois metros. Uma espécie de saco de dormir vertical. Entrava-se nele nu e apertava-se o botão vermelho. Pronto: uma sopa de substâncias químicas era lançada por centenas de orifícios em jatos que atingiam cada canto das intimidades do sujeito. Depois de trinta segundos, o cidadão poderia sair limpo como se tivesse passado meia hora no banho comum. Assim, os trabalhadores dalianos ganhariam pelo menos quinze minutos, que poderiam ser gastos em brincadeiras com os filhos ou com as esposas.
Custava 400 contos. Uma bagatela! Mas o envelope da sopa química foi tabelado a 50 contos cada e durava uma semana. Esperavam um alvoroço em seu lançamento, mas não foi bem assim. Em seis dias, venderam apenas um terço do projetado para a primeira semana. Sendo assim, resolveram investir na conscientização dos habitantes de Dália. Devem ter feito um bom comercial, pois as vendas dobraram naquela cidade. Em um mês, todos os cinqüenta mil corpos dalianos já tinham um encontro diário com aquele milagre da civilização.
O fenômeno chamou a atenção da universidade local, que investigou a sopa química em minúcias. Descobriu-se que ela provocava sérios danos à pele. O município convocou os cidadãos para uma triagem e descobriu que 50% da população apresentava alguma doença dermatológica já em alto estágio de evolução. Pânico! A Wealth&Clean se defendeu, oferecendo provas incontestes de que as doenças eram pré-determinadas pelos genes dos dalianos. Mas o alívio veio rápido - para a Wealth&Clean e para toda Dália.
O alívio consistia no lançamento do iron-skin, um super-creme para proteção da epiderme, desenvolvido pela SkinHappy, conterrânea dos lesados dalianos. Agora, todos poderiam usar o banhador elétrico e, depois, proteger-se dos seus malefícios com o iron-skin. O pote custava 100 contos e se esgotava em duas semanas. Não era uma bagatela, mas a SkinHappy se sensibilizou com o desespero de seus irmãos e lhes presenteou com um desconto de 5%.
Aberto seu invólucro, o iron-skin exalava um gás suspeito. Quem o inalava, sentia-se tonto e com dores no peito. Isso chamou a atenção da universidade local. Descobriu-se que esse gás lesionava o cérebro e os pulmões ao invadir as vias respiratórias. A SkinHappy se defendeu, oferecendo à imprensa um relatório que apontava o stress como causa dessa tontura e o cigarro como causa dessa dor no peito. Debatia-se sobre a veracidade do relatório, quando veio a salvação de todos.
A salvação de todos consistia numa máscara semelhante à cirurgiã, só que de plástico e com um filtro super inteligente. A daliana WTCorporation a fez em formato anatômico, bem confortável. Agora todos poderiam usar o banhador elétrico em segurança, protegendo a pele com o iron-skin e os órgãos internos com o megamask. Custava 200 contos, mas tinha dois longos meses de vida útil. Apesar de se sensibilizar com seus conterrâneos, a WTCorporation não lhes deu desconto algum. Alegou que parte do lucro era investida em projetos sociais na África e que, portanto, quem tirasse um centavo de seus caixas estaria tirando um prato das mãos de uma criança subnutrida. Só alguém bem insensível pechincharia. Colou.
A família do comercial tinha cada membro seu megamask particular. Até que isso se realizasse em Dália, pais e filhos dividiam um único megamask como dividem um sobrenome. Alguns se incomodavam com a baba do ente que o antecedeu na máscara. A daliana RelaxMouth estava prestes a divulgar sua pílula anti-baba, quando a universidade local surpreendeu a todos com mais um alerta: a comunhão familiar da megamask havia ajudado a se alastrar um novo vírus fatal. Toda Dália estava infectada. Antes que pudessem enterrar seu primeiro morto, veio o antídoto.
O antídoto consistia na nova cápsula do laboratório daliano BodyGuardian. Custava 30 contos a dúzia. Adeus ao vírus já na décima segunda cápsula! O governo municipal resolveu agir em nome da saúde e comprou todos os lotes. Distribuía aos cidadãos no ato do pagamento dos seus impostos.
Envelopes vazios de sopa química, embalagens de creme, máscaras usadas, restos de cápsula... A universidade local alertou a população sobre o problema desse lixo. Então os empresários se uniram nas comemorações do Dia do Meio Ambiente e armaram uma fogueira gigante. Queimaram tudo. A fumaça negra impregnou cada esquina daquela próspera cidadezinha. Os olhos de toda Dália ardiam como que em chamas, e seus pulmões trovejavam. Os hospitais se entupiram. Os efeitos persistiram por algumas semanas... Teriam persistido mais, se não houvesse descido à terra o alívio de todos.
O alívio consistia no super-colírio da daliana SanMartín...
Pouparei seu tempo, leitor. O fato é que a rede havia se tecido a si própria sobre a cidade. As línguas subversivas diziam que o desenvolvimento de Dália não passava do esforço para curar os males que ela mesma criou... Ora, foi Dália que os criou?
Estava em voga uma promoção: traga sua megamask usada e nós lhe damos um nariz de palhaço no ato da nova compra. Uma sensação de desconforto se alojou nos corações dalianos, mas logo foi embora com a nova pílula anti-stress da SmileHeart. Pela centésima vez, vinha a universidade local alertar a todos sobre os malefícios de um produto. Finalmente o governo resolveu agir: fechou a universidade.
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