EU ERA FELIZ, E SABIA
A história a seguir não tem o condão das grandes aventuras, também não se destina a pretensão de se transformar em filme, como tem sido comum hoje em dia colocar nas telas aquelas histórias em quadrinhos que nos enchia de imaginação. Ela á apenas um fato que transcorreu num tempo, em que agora, talvez pela idade de quem a viveu, remexe na memória querendo sair. Não chega a ser uma Caixa de Pandora que, após aberta, deu ao mundo a origem de todos os bens e males que fez e faz do Homem ser esse ser que peregrina sobre a Terra e deixa nela sua vida que em comunhão com os outros seres vivos cristalizou pequena marca. É engraçado, até, que as lembranças advindas, sempre se referem ao tempo passado, talvez porque o tempo presente não deu tempo de se firmar como memória. Dito isto, o que se vai contar ocorreu ainda quando o narrador não tinha consciência se suas ações seriam boas ou más; eram somente ações sem a noção das conseqüências, embora, no seu íntimo, fossem boas porque eram espontâneas.
Tinha a tenra idade de uns oito anos. Era o sexto de uma família de nove filhos. Se, por um lado, era bom ter tantos irmãos (tinha sempre com quem brincar), por outro, as desavenças e brigas eram comuns. Meu pai era de poucas palavras - bastava um olhar e o recado já era entendido -, não admitia que respondêssemos aos mais velhos e exigia que os tratássemos como senhor. Não posso dizer, com isso, que nosso pai fosse autoritário. Tínhamos liberdade de brincar na rua e participar de todas as brincadeiras imagináveis. Jogávamos taco, bolinha de godê, amarelinha, pega-pega, esconde-esconde, pipa, peão, bater figurinha, arco e flecha, policia-ladrão, Daniel Bonne, Zorro, Nacional Kid, enfim, tínhamos infância num tempo em que brinquedos eletrônicos era coisa de um futuro tão distante que não parávamos para pensar.
E foi com essa idade que vivenciei minha primeira, e hoje sei, irresponsável, aventura. Morava Na Rua Ouvidor Peleja próximo ao que é hoje a Ricardo Jafé. Durante sua construção formavam-se poças d’água grandes o suficiente para serem consideradas lagos. E para lá íamos nadar. Nada de mal não fosse às brincadeiras que se davam: ora empurrando um do barranco, ora puxando outro pelos pés, e o pior de tudo, às vezes fingia-se estar se afogando (brincadeira que não que não deve ser repetida por ninguém, nunca) para, depois do susto que meu irmão mais velho levava, cairmos numa gargalhada sem fim. E assim fizemos por várias vezes tomando, sempre, cuidado para chegarmos antes do pai, porque se chegássemos depois... no dia seguinte o castigo se fazia notar.
Dito e feito, num desses alegres dias, digo alegre porque quando se tem infância, todos os dias são alegres, saímos para nosso nado costumeiro. Depois de bom tempo, um dos meus irmãos resolveu fingir que estava se afogando, o que já era comum, e meu irmão mais velho, embora já fora pego nessa brincadeira noutras vezes, instintivamente mergulha lagoa adentro, e encontra um caco de vidro cortando seu peito logo acima do coração (cicatriz que traz até hoje). A choradeira foi geral, acredito que por duas razões: a primeira pelo derramamento de sangue que se deu, a segunda, acho que intimamente, para cada um, a primeira, era como contar para o pai do ocorrido. Não lembro por qual optamos ou o que inventamos, só sei que hoje em dia, cada vez que vemos nosso irmão com aquela marca no peito, lembramos daqueles tempos. E rimos muito porque sempre tem um que se diz que era o bom na bola, no peão, no pega-pega. Não importa quem era bom ou não, não tínhamos a pretensão de sermos campeões, só queríamos nos divertir como devem todas as crianças.
Os tempos são outros e hoje meus filhos não brincam de peão, taco, nem sabem como jogar, embora eu e outros pais quiséssemos ensiná-los, mas não demonstraram interesse, e o jogo de bolinha de gude não desperta neles nenhuma atenção. Os jogos eletrônicos dominam a infância deles. Não sei o que dizer, mas posso afirmar que tenho saudade da infância que tive. Velhos tempos, saudosos tempos.
É isso.
Categoria: São Paulo da cultura, gastronomia, lazer e oportunidades
Autor(a): Silvio Lima | história publicada em 23/9/2009, No Sãopaulominhacidade.com.br