Singularidade
Américo descobriu que o tempo é infinito. Andava pelo templo de sua vila quando finalmente compreendeu: o tempo é infinito, para trás e para frente. E se assim o é, ele era um mero refém do mundo. Não podia fazer algo de novo, tudo já tinha acontecido. Sim. Tudo já tinha acontecido. Num tempo infinito para trás e para frente todo e qualquer acontecimento, em algum período da história, já se realizara. Não podia inovar, não tinha escolha. A ele restava sentar e esperar que o mundo passasse.
Voltou para casa e se acomodou em uma cadeira próxima à janela. Se fora condenado a ser um mero espectador da infinitude do mundo, pelo menos queria se reservar o direito de o fazer confortavelmente. Com olhos atentos, observava as pessoas da vila e as pequenas casas de madeira. Triste era a finalidade do homem, escravo do tempo, arrancado de toda a sua singularidade para viver a reencenação de um momento passado e indeterminável.
Américo descobrira o segredo, estava decidido a nada mais fazer. De nada adiantava se esforçar para tomar suas escolhas se elas um dia já tinham sido tomadas... sabe-se lá quando e sabe-se lá quantas vezes.
Nos dois primeiros dias, ficou parado, imóvel em sua cadeira, observando as coisas passarem a sua frente. No terceiro, viu os homens da vila saírem para caçar; uma forte chuva começou a cair. Ele permaneceu impassível, era um mero espectador. Um estrondo lhe chamou a atenção. No fundo da vila, uma das pequenas casas de madeira fora atingida por um raio, pegava fogo; nem a chuva forte era capaz de apagar as chamas.
Uma mulher saiu da casa aos gritos, chorava. Ele continuava a observar. A mulher se ajoelhou em frente à casa em chamas, berrava em desespero: sua filha pequena ficara presa lá dentro. Ele vacilou, será que devia se mexer? Será que deveria agir? Se o fizesse trairia sua mais recente descoberta. Se agisse estaria, mais uma vez, a repetir algo que já acontecera. Ele queria se livrar do mundo, desfrutar de uma liberdade real, e para isso não podia se importar com o que acontecia bem a sua frente. Todas as coisas para ele precisavam ser descartáveis e descartadas. Por outro lado, não agir também seria reencenar. E o pior, exerceria o papel de vilão. A escolha era difícil: era por isso que preferia as comédias.
Ele se levantou, saltou pela janela e correu até a casa. Este ato era ele quem definia, por mais que se tratasse de uma peça já tantas vezes reproduzida. Ele preferia ser o herói. Entrou na casa, enfrentou as chamas e salvou a criança. A mãe ainda chorava quando teve novamente sua filha em seus braços. Muito emocionada, ela o beijou: eles se apaixonaram.
Alguns dias depois, Américo se casou. Estava feliz, imortalmente feliz. No final da cerimônia, ainda deixou escapar um sorriso irônico e satisfeito. Sua felicidade naquele momento era apenas sua, era verdadeiramente singular, não podia ser repetida, nem reencenada, por mais infinito que o tempo fosse.
Confira também o blog Na Ponta dos Lápis, tudo sobre literatura!
- Para mais textos, confira o site do escritor: www.leonardoschabbach.com
Américo descobriu que o tempo é infinito. Andava pelo templo de sua vila quando finalmente compreendeu: o tempo é infinito, para trás e para frente. E se assim o é, ele era um mero refém do mundo. Não podia fazer algo de novo, tudo já tinha acontecido. Sim. Tudo já tinha acontecido. Num tempo infinito para trás e para frente todo e qualquer acontecimento, em algum período da história, já se realizara. Não podia inovar, não tinha escolha. A ele restava sentar e esperar que o mundo passasse.
Voltou para casa e se acomodou em uma cadeira próxima à janela. Se fora condenado a ser um mero espectador da infinitude do mundo, pelo menos queria se reservar o direito de o fazer confortavelmente. Com olhos atentos, observava as pessoas da vila e as pequenas casas de madeira. Triste era a finalidade do homem, escravo do tempo, arrancado de toda a sua singularidade para viver a reencenação de um momento passado e indeterminável.
Américo descobrira o segredo, estava decidido a nada mais fazer. De nada adiantava se esforçar para tomar suas escolhas se elas um dia já tinham sido tomadas... sabe-se lá quando e sabe-se lá quantas vezes.
Nos dois primeiros dias, ficou parado, imóvel em sua cadeira, observando as coisas passarem a sua frente. No terceiro, viu os homens da vila saírem para caçar; uma forte chuva começou a cair. Ele permaneceu impassível, era um mero espectador. Um estrondo lhe chamou a atenção. No fundo da vila, uma das pequenas casas de madeira fora atingida por um raio, pegava fogo; nem a chuva forte era capaz de apagar as chamas.
Uma mulher saiu da casa aos gritos, chorava. Ele continuava a observar. A mulher se ajoelhou em frente à casa em chamas, berrava em desespero: sua filha pequena ficara presa lá dentro. Ele vacilou, será que devia se mexer? Será que deveria agir? Se o fizesse trairia sua mais recente descoberta. Se agisse estaria, mais uma vez, a repetir algo que já acontecera. Ele queria se livrar do mundo, desfrutar de uma liberdade real, e para isso não podia se importar com o que acontecia bem a sua frente. Todas as coisas para ele precisavam ser descartáveis e descartadas. Por outro lado, não agir também seria reencenar. E o pior, exerceria o papel de vilão. A escolha era difícil: era por isso que preferia as comédias.
Ele se levantou, saltou pela janela e correu até a casa. Este ato era ele quem definia, por mais que se tratasse de uma peça já tantas vezes reproduzida. Ele preferia ser o herói. Entrou na casa, enfrentou as chamas e salvou a criança. A mãe ainda chorava quando teve novamente sua filha em seus braços. Muito emocionada, ela o beijou: eles se apaixonaram.
Alguns dias depois, Américo se casou. Estava feliz, imortalmente feliz. No final da cerimônia, ainda deixou escapar um sorriso irônico e satisfeito. Sua felicidade naquele momento era apenas sua, era verdadeiramente singular, não podia ser repetida, nem reencenada, por mais infinito que o tempo fosse.
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