A Coisa (Para Sabino)

Nada parecia tornar aquela manhã em um iniciar diferente de mais um dia carregado de rotinas e repetições. Os sons começavam a transformar aos poucos o sossegado ar silencioso da madrugada em uma espécie de mantra urbano. Carros deixavam suas garagens, bicicletas rodopiavam em ziguezague, pessoas tomavam seus lugares nas paradas de ônibus. Cada um seguia o seu destino. Poucos os que se cumprimentavam. Nunca há tempo.

Tudo caminhava retumbante para ser apenas mais um nessa infinita seqüência de repetições, até que aconteceu. Em um determinado momento noticiou-se timidamente na estação de rádio local: algo havia surgido em plena praça central. Poucos deram atenção à notícia, no entanto, logo a TV entrou ao vivo e também notificou o ocorrido.

Em instantes o boca a boca já tomava conta das ruas, escritórios, farmácias e mesmo nos lares mais afastados do centro já se falava desse repentino aparecimento: um enorme, dourado e extremamente convidativo pão francês.

Os jornais fizeram tiragens de última hora para estampar na manchete o estranho surgimento. Ninguém queria perder a oportunidade de revelar em primeira página.

A polícia foi chamada e isolou o local. Seria um protesto dos donos de padaria pelo preço do produto? Propaganda partidária? Estaria envenenado?

Quase três metros de altura do mais puro e crocante pão francês. O cheiro cobria uma área enorme do centro da praça e curiosos se recusavam a deixar o local. “Milagre!” Esbravejava o religioso em um megafone para a multidão que se aglomerava.

O curioso é que antes do meio-dia já chegava a informação de que outras cidades também recebiam a visita dessas estranhas formas. Alguns em tamanhos menores, outros mais queimados ou até mesmo com farinha de milho polvilhada no dorso. Era uma invasão coordenada.

Ninguém fazia idéia de como aquilo iria terminar. No entanto, com a mesma instantaneidade de seu surgimento, o pão francês que originou o ocorrido foi podado de uma de suas partes. Uma criança munida de ingenuidade e confiança venceu o isolamento e arrancou um farto pedaço do pão.

O estopim foi aceso e logo ficou impossível dominar a situação. Mulheres, mendigos, vendedores de cachorro quente e até mesmo os guardas que cercavam o local se engalfinharam para assegurar uma parte daquele todo. Em segundos só restaram migalhas e poeira.

Em todo o país o milagre da comunhão do alimento cardeal se proliferou e nada mais havia restado daquele corpo emoldurado de trigo, sal e fermento.

Alexandre Guimarães
Enviado por Alexandre Guimarães em 26/10/2009
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