PRIMEIRO DE ABRIL
Todas as historias têm por princípio narrar um fato. Pra quem as conta podem ter um significado único, ao contrário do que pode representar para quem as escuta ou as lê. Mas uma coisa é certa: elas se remetem a fatos, pessoas, locais, enfim, reavivam acontecimentos vividos e sentidos por quem as conta. Podem, ainda, mencionar situações engraçadas, que, por terem sido, quem as viveu deseja compartilhar com outros para que nesse breve espaço de tempo, esqueçamos os problemas diários.
Então, tentando cumprir o enunciado, narrarei evento do qual presenciei, primeiro como observador, depois, como personagem.
Lá pelos idos de 1979, eu trabalhava como officie-boy numa empresa no centro de S.Paulo. Nossa vida era correr pra cá e pra lá. Ora saíamos em carreira aos bancos, aos cartórios, fórum, na esperança de pegá-los abertos, ora enfrentando quilométricas filas no Detran, na prefeitura ou nas lojas pagando carnês. Às vezes dávamos sorte, mas normalmente o que encontrávamos era uma bela e imensa porta na cara.
Foi numa dessas aventuras, depois de me ter deparado com a porta de um banco cerrada que, passando pelas Lojas Americanas, resolvi entrar, pois, através de um amigo, também boy, fiquei sabendo que lá havia filmes em promoção. Para uma pessoa que gostava e gosta de filmes, saber de promoções era uma ótima notícia, era quase um "furo jornalístico" porque era o momento de se conseguir bons títulos a preços que o salário dava para pagar; então entrei.
De repente ouço o famoso "pega-ladrão". E como se tratava de algo comum para uma época em que era, infelizmente, comum vermos os chamados trombadinhas, de incontinenti todos olharam para a porta. Nada de anormal parecia ter acontecido a não ser o fato de que o ladrão em referencia era eu. Confesso que fiquei assustado - não porque devesse algo - mas mais pelo fato de que dois homenzarrões postaram-se ao meu lado com olhares nada amistosos. De bate pronto queriam me revistar, ao que me recusei e, por trabalhar numa advocacia, invoquei meus direitos. Bate boca pra cá e pra lá, resolvemos que o procedimento, impositivamente desejado, não seria levado a termo. Propus abrir minha bolsa e ambos recusaram alegando que eu poderia ter passado a mercadoria para um comparsa. Engolindo minha indignação com tal acusação, sugeri que fossemos para a gerência e lá daríamos cabo ao mal entendido. Também se negaram dizendo que gerente não tinha tempo para lidar com delinqüentes. Com a cabeça a mil e os nervos a flor da pele, pus-me a esbravejar invocando meus direitos e ameaçando-os a processá-los e, de súbito, ficaram parados, quietos e inertes. Não abriam as bocas pra nada, seus semblantes de acusadores, nos seus quase dois metros, me deram a impressão de duas crianças assustadas, acuadas numa descoberta de alguma traquinagem.
Acalmados os ânimos, passamos a conversar amistosamente com direito a cafezinho, mãos no meu ombro e um palavreado mais civilizado, para pessoas que se queriam civilizadas.
Superado o incidente e com 3 filmes embaixo do braço - dois que eu paguei e um de brinde pelo ocorrido (depois soube que o "brinde fora pago pelos amigos) -, saindo da loja, encontro com 4 amigos apontando pra minha direção em profundas gargalhadas. Sem entender nada, vou ao seu encontro contando do que acabara de acontecer comigo. Nenhum deu a maior bola, ao contrário, cada vez que contava mais eles riam, até que um resolveu contar que tratava-se de uma brincadeira, pois tudo fora antecipadamente combinado com os seguranças e com o gerente, e que por mais que eu brigasse e exigisse, o gerente não apareceria porque era primeiro de abril e eles queriam ver como me sairia numa situação dessas. Disseram, ainda, que para eu me alterar, só numa situação assim, estrema mesmo, para que se manifestasse minha ira.
É isso, essa historia marcou minha vida de officie-boy. Se um dia vi-me num dia de cão, hoje é um dia para relembrar com saudades daqueles tempos das corridas aos bancos, aos cartórios, ao fórum e das portas na cara. Sinto saudade dos amigos de profissão, embora com dois ainda mantenha contato, porque amigos são para sempre mesmo, tão longe estão tão perto, do lado esquerdo do peito. E hoje rimos muito pelo susto que passei. Concordamos que muita coisa mudou, que São Paulo é nossa cidade maravilhosa, que dá oportunidades e que aquela vinheta que diz que S.Paulo amanhece trabalhando, é para nós uma das mais belas homenagens a S.Paulo, mas muitas teimam em permanecer: os trombadinhas, os "pega-ladrão" verdadeiro, etc, etc.
É isso.
Categoria: Outras histórias
Autor(a): Silvio Lima | história publicada em 18/1/2007, no Saopaulominhacidade.com.br