RUA OUVIDOR PELEJA 2
Já falei aqui sobre a Rua Ouvidor Peleja, na Vila Mariana. Retomo a
mesma rua para falar de dois vizinhos que tive e que dada suas maneiras de ser me chamavam a atenção.
A história se passa na década de 70, eu tinha uns 8 anos. Meus dois vizinhos, aqui os chamarei de Pedro e João, eram dois rapazes com uns 22 e 25 anos, respectivamente, e sempre saiam à noite. Tinham cabelos cumpridos até a cintura, barbudos e, não me falha a memória, às vezes os via armados. Era um período de grande agitação política; falava-se muito em "aquele é comunista, é subversivo" porque eram pessoas que não concordavam com o governo.
Bem, esses meus vizinhos, como disse, tinham o hábito de sair à noite; suas saídas sempre se davam de um modo muito particular (pelo menos pra mim) porque eles desciam o corredor da vila de casas, que era de seu avô, seu Carlino, também já citado em Rua Ouvidor Peleja, direto para uma carro que ficava de portas abertas e eles entravam subitamente para dentro do veículo. Na minha "inocência" isso tinha dois significados: achava espetacular vê-los correndo em direção ao carro parado, fazia-me lembrar dos filmes policiais, dos agentes secretos, das suas fugas maravilhosas. Outro sentido era que, embora não soubesse do que se tratava, intimamente sabia que era algo relacionado com o que estava acontecendo na vida política brasileira(pessoalmente achava que eles eram um daqueles comunistas, tão falados e odiados pela maioria) e que saíam para bolar coisas contra o governo. Eu os tinha como heróis, porque sem saber verbalizar exatamente o que era, sentia que de alguma maneira faziam coisas para o bem.
A vila de casas começava na Rua Ouvidor Peleja e estendia-se até a Rua Padre Machado. A última casa dava acesso a rua Padre Machado, lá morava seu Carolino, era uma casa grande com um porão. Acho que minhas "ingênuas" desconfianças se desfizeram naquele dia em que decidi saber o que tinha naquele porão sempre fechado. Na porta do porão havia um buraco e de lá escutava um barulho de máquinas. Eu sabia que seu Carolino não tinha máquinas, e pelo fato de a porta estar fechada e de lá vindo esse barulho, senti-me curioso (toda criança é curiosa por natureza), fui espiar pelo buraco. A cena que vi não me surpreendeu: vi Pedro, sem camisa, de bermuda, tirando papéis da máquina. Não sabia o que era, mas sentia ser alguma coisa ligada a suas saídas à noite. Fiquei de olho para ver se naquela dia, ou melhor, naquela noite, haveria a espetacular escapada. E houve. O dois irmãos desceram correndo com pacotes nas mãos, corriam mais depressa que o normal, meio nervosos que nem perceberam que um dos papéis caiu no chão. Pequei o papel e li algo como, se não me falha a memória, "fim à ditadura.Precisamos lutar..." Após lido o papel, piquei-o e joguei no terreno ao lado.
Os dois irmãos só vieram dar as caras três dias depois.
Mais ou menos quinze dias depois, seus pai, que tinha uma mercearia, a única da rua e por isso, mesmo, a movimentação era enorme, sofre um assalto. Após a fuga dos bandidos, a vítima quis chamar a polícia, e foi convencida pelos filhos a não fazê-lo sob o argumento de que era desnecessário e o mais importante era que ninguém tinha morrido. Conselho dado conselho aceito.
Muitos anos depois, fui visitar um amigo. Resolvi ir ver um dos irmãos. Após algumas lembranças do Pedro sobre quando eu era garoto, perguntei se ele e o irmão não fizeram parte da resistência. Inicialmente fez cara de que não lembrava nada, mas depois de ter ouvido sobre suas saídas noturnas, das máquinas no porão, do papel que achei e que falava algo sobre acabar com a ditadura, do assalto sofrido pelo seu pai, falecido uns 8 anos depois,e do convencimento para que não chamasse a polícia. Pedro olha da varanda da sua casa para a rua, fica um tempo pensativo e, voltando-se para mim, dá uma daquelas gargalhas que todos reconheciam quando descia o quintal, bate no meu joelho dizendo que "para um garoto de uns 8 anos, você era muito observador, garoto"
Essa foi nossa última conversa. Não sei o que pode lhe ter acontecido, nunca mais fui à Rua Ouvidor Peleja. Espero um dia desses ir visitá-lo, dar-lhe um forte abraço e dizer muito obrigado (estendido a todos os outros que participaram)pelo país que temos hoje, com problemas a serem superados dia-a-dia, mas que, pelo menos, temos a liberdade de escolher nossos representantes.
É isso
Categoria: Personagens
Autor(a): Silvio Lima | história publicada em 17/1/2007, no Saopaulominhacidade.com.br