Branislav
Quando foi a última vez que chutou uma bola de futebol? Talvez tenha sido semana passada, mês passado? Não se pode ficar tanto tempo sem praticar o sonho que lhe alimenta, no caso de Branislav, a última que chutou foi exatamente a um minuto atrás, estufou as redes, ganhou abraço dos companheiros e um belo elogio de seu treinador. Falando em treinador dá até a entender que Branislav joga em uma grande equipe e, o palco, um grande e felpudo tapete verde, mas na verdade, o treinador é o jornaleiro do bairro e o campinho um grande e poeirento palco. Aquele bonito gol chamou a atenção de um olheiro, desses que viajam pelo país em busca de novos talentos, um exímio observador, cada minúcia e detalhe sobre a característica de cada boleiro não passa despercebida, Branislav não passou despercebido.
Branislav mora no subúrbio de uma pequena cidade, filho de búlgaros, saiu de seu país ainda pequeno, criança de colo. De seu antigo país a única coisa que lhe restou foi o nome, claramente um nome que é brasileiro. Seus pais são donos de uma loja de botões, uma pequena loja, sem nenhum luxo, apenas um pequeno negócio para manter a barriga cheia. De mestre alfaiate a pequeno burguês, promoção ou perda de privilégio? O pai de Branislav ainda não sabe, mas sabia que tinha que sair da Bulgária e, assim o fez.
O jovem menino vibrava com o gol marcado, compartilhava a felicidade com seus companheiros. O observador planejava sua viagem e esperou calmamente o fim da partida. O apito soou, o pequeno búlgaro, suado, satisfeito com o belo jogo, exibia os cabelos encharcados e um belo sorriso. Uma mão pousa em sua cabeça, fez seu cabelo sacudir, os ouvidos do menino não estavam preparados para ouvir essa excelente proposta, só em seus devaneios isso poderia ser possível:
- Quer fazer um teste no fluminense?
O time do coração de Branislav, time que assistia sempre que possível pela televisão, nunca foi ao grande estádio, seu pai nunca o pode levar, pouco dinheiro, muito trabalho. O pai nunca nutriu um grande apreço pelo futebol, assistia a poucos jogos, só quando a seleção búlgara entrava em campo, não ligava para a brasileira, exceção aos jogos da copa do mundo. Ele sempre ficava entusiasmado com seu filho dizendo que queria ser um grande jogador de futebol, admirava muito a forma com que seu filho dizia isso. Falava com uma convicção assombrosa.
Branislav por um momento não soube o que responder, ficou radiante e sonhador, no fim, conseguiu apenas balbuciar:
- Claro! Disse para o olheiro, que satisfeito lhe entregou um cartão com o local e a hora do teste. Branislav agradeceu com um grande aceno de cabeça, não demorou muito para que seus amigos o cercassem, queria saber do que se tratava, despertou a curiosidade. Tímido, Branislav não conseguiu conter a emoção e anunciou aos companheiros o que acabara de acontecer. Elogios, “uau”, murmúrios, felicidade, pontinha de inveja, um misto de emoções diferentes. Embora Branislav chamasse atenção quando jogava, ninguém esperava que aquilo fosse acontecer, não ali naquele campinhho no subúrbio de uma pequena cidade. A vida gosta de pregar peças, o pai de Branislav botões, o menino perto de realizar um sonho, ou de pelo menos tentar, o pai perto de pregar o último botão em uma velha camisa surrada, usada unicamente para dormir.
Aquela linda folha amarelada caía da árvore, planava, demorou longos segundos até tocar o chão, Branislav planava, planava, não queria tocar o chão, flutuava, se imaginava em um lindo campo, sendo a estrela principal, nunca decadente, a mais brilhante, o pequeno búlgaro que um dia jogará pela seleção brasileira, conquistaria o coração de muitos meninos que gostariam de ser como ele, o guia rumo ao título mundial. A porta se abriu, o menino entrou apressado, os pais almoçavam, sorvendo longos goles de suco de acerola, Branislav falou atropeladamente sobre a sua oportunidade, seus não entenderam até que ele mostrasse o papel confirmando, desconfianças, histórias lidas no jornal, a notícia pode ser verídica, como pode ser falsa, um truque de empresários para tirar o menino cedo do Brasil, explorá-lo no exterior, explorar o seu talento sem nó nem piedade. Branislav iria ousar e tentar.
Contou aos colegas de escola, entusiasmo, “também quero”, a aula virou uma pequena baderna, brados heróicos, tapinhas no ombro, ruídos de pés batendo no chão, não perca essa oportunidade. Sinto que algum dia eles o veriam pela televisão, futuro nem tão distante.
Arrumou a mochila para o dia seguinte, fez todo um procedimento de preparação. Lavou o meião e a chuteira com todo esmero do mundo, nunca tinha visto sua chuteira tão limpa e brilhante, nem no dia em que ganhou do seu pai, um ano atrás, quando o senhor Noel foi muito generoso. Meião e chuteira limpos, cheirinho de sabão de coco, pendurados atrás da geladeira, precisam secar a tempo da viagem, logo no dia seguinte bem cedo. Naquele dia, Branislav bem que tentou, mas não conseguiu dormir, a ansiedade era muita. Sua mãe preparou um caprichado café da manhã: pão com ovo, bacon, ketchup, alguns biscoitinhos amanteigados, café com leite e uma maçã. Branislav engoliu tudo em menos de dez minutos e esperou o cumprimento de seu pai, que veio feliz, ostentando um grande sorriso no rosto e uma fita métrica no pescoço, para Branislav era o começo de quem sabe uma brilhante carreira, mas para o seu pai, mais um dia de trabalho na pequena loja.
Bocejou, dia ainda nascendo, o teste começaria depois do descanso do almoço, algo perto das 15 horas, daria tempo de se acomodar em um quarto no centro de treinamento e descansar. Subiu no ônibus, tomou lugar na poltrona trinta e um e começou apreciar a vista, não tardou para que a bela vista de prédios do centro da cidade, desse lugar a uma vista ainda melhor das plantações no campo. Estava muito casando, pegou no sono.
- Venha cá você!
Vinha o menino alegra, pulando, chuteira brilhando.
- Dê o melhor, jogue com lealdade, machucar o companheiro com jogada maldosa desnecessária o exclui do teste.
Tesouras voando, entendido, tome cuidado, seja leal, ninguém quer se machucar, o menino toca pela primeira vez na bola, desliza fácil, tesouras passavam rasgando entranhas, tinha que colocar no lugar, ele teve o pé amputado após uma fratura exposta, não pense que será assim fácil, o outro rasgou os ligamentos do joelho, manca até hoje. Jogadores sangrando, ele via um mar de sangue, visão que ninguém gostaria de ver ou sentir, não fuja das divididas, faz parte do futebol arte. A maca entrou no campo, dois enfermeiros correm afobados, um tropeço e some, abriu um buraco e o tragou, desesperado o outro corre e vai embora, ele continua estendido.
- Apito o fim do primeiro tempo, não foi muito proveitoso, esperou que vocês joguem melhor no segundo tempo, o melhor, o melhor!
No espelho do vestiário, gel, a mão no cabelo, a outra segura um pente, penteia pra cima, pro lado, para o outro, trinca um dente do pente, usa a mão para ajeitar, as formas mudam, as cores mudam, primeiro moicano vermelho, a asa delta verde, o raspado militar com a cor preta, o black power, muitas formas, olhares escandalizados, a grande trança venceu no fim. Parece que irá recomeçar, o calção sujo, se preocupou com o cabelo e se esqueceu do calção sujo, queria uma máquina de lavar, sabão, alvejante sem cloro e amaciante, estaria limpo e cheiroso de novo. Figurinhas no armário, cadarço que vira serpente e uma repentina fúria, inspiração para jogar, não fugirás da responsabilidade. Apito, recomeço.
Corre, nuvens negras no céu, começa a chover, mas ao invés de esfriar, a chuva esquenta a temperatura, muito suor, ele para ao lado do campo para se hidratar, muita água, ávido por água, retorna ao gramado.
- Cartão vermelho, jogada desleal!
Menos um competidor, tornando as coisas mais fáceis. Driblou mais um jogador e chutou, grande chute, bola no fundo da rede, nada de decepção dessa vez, o segundo tempo promete mais. Mais solto, mais jogadores cansados, ele sobrando fisicamente, se sentindo com o foguete nos pés, asinhas de anjo, flutuando e disparando nos momentos exatos. Após o belo gol, cercado pelos companheiros, balões, corpo normal mas a cabeça de balão, que estranho, cercado de balões, muitas cores, estrela, começa a reluzir, as pontas de uma estrela, a estrela cercada de balões, bate com uma ponta no chão, tudo estremece, os balões estouram, eles somem, apenas a estrela e seu mestre, o barulho se faz ouvir bem longe, bem perto, dói seu ouvido, mas ouviu as belas palavras que sempre desejou ouvir: “parabéns”. Estava na glória reservada, correu como louco. Se viu no melhor carro que poderia imaginar, chegando no pequeno bairro. Muita luz e gritos, satisfeito com tudo isso. Botões transformados em moedas de ouro, chovia coisas boas, camarão no café da manhã e caviar no da tarde.
Levantou uma imensa taça, tinha o seu nome escrito nela, como cuneiforme, ouvia no fone Michael Jackson: “Billie Jean is not my lover”, holofotes, não gostava de tirar fotografias, mas aparecia em todas as revistas, ídolos dos homens apaixonados pelo clube, símbolo sexual para as mulheres, não se esforçava, traçava todas. Ele se jogava na parede. Queimou dinheiro com o cachimbo, fumaça escrevia “campeão” no céu. Pulava na piscina de bolas coloridas, divertida vida, ilusória e meritória.
Autógrafos, muitos deles por onde passava, não voltava atrás, meninas, meninos, senhoras de idade, senhores de idade, adultos em fase de procriação, ambos os sexos, todos procuravam o nome dele no papel, ostentavam como uma grande vitória, a última que talvez consigam, ampliando horizontes. Assinava com toda a pompa e glamour, caneta dourada, uma fortuna, dinheiro que não cabia no bolso, bolso lotado, despautério. Assinou, assinou, assinou, calos e dores até que falhou, a caneta falhou, desesperado colocou as mãos na cabeça e acordou.
Branislav despertou com o frear do ônibus, tinha chegado ao seu destino, desceu com sua mochila nas costas e se dirigiu ao alojamento, um rapaz guiava os garotos, muitos meninos já se encontravam lá, ele se sentou um pouco deslocado, sabia que apenas poucos deles continuariam no clube, ele queria ser um. O instrutor entrou esbaforido, chamando os meninos para um lanche. Branislav comeu com prazer, estava com fome apesar do belo café da manhã: ovos, queijo, achocolatado, pão, biscoito e refrigerante. Após esse lanche, o teste iria começar, apreensão e expectativa.
Sentou em uma cadeira, preparou, concentrou, esperou ser chamado. A convocação, se levantou, caminhou, pisou no gramado e se sentou no centro do campo, ouviu as instruções com atenção> Foi escalado na meia esquerda, sua predileta, estava com sorte, nada poderia dar errado, o lugar ao sol lhe pertencia, tocou pela primeira vez na bola e acertou um belo lançamento, aplausos, o primeiro de muitos.