A MEU PAI

Dizem os saudosistas ou os eternos apaixonados que o fato que os marca, só a eles pertence. Mas quando se põem a contá-los trazem embutidos um "quê" de querer compartilhar.

Tendo contado o que se quis, como num livro, a lembrança dividida já não é do autor ou do protagonista; dividida como foi com o leitor ou ouvinte, a esse é dado o poder da interpretação e do entendimento. Por isso, cada linha tornada pública traz em si, como o mel que atrai a abelha, como o Sol, com seus raios penetrando no amanhã, traz a alegria e a esperança de mais um belo dia, a complacência do outro. Se o que se leu ou ouviu foi do agrado àquela a quem se dirigiu, então o narrador teve a intenção atingida, e esse pequeno tempo vivenciado terá se tornado único e, queiram as lembranças, será futuramente motivo de novas reminiscências.

Dito isso, o que vem a seguir talvez não tenha a importância de um Grande Sertão: Veredas, de um Hecce Homo ou de uma Ilíada, mas confesso que deixou marca, como o primeiro beijo dado ainda na infância causou transformações que, como a Mangueira com suas profundas raízes, garantiram a sustentação para o ser que agora vos fala.

Vindo de uma família sem as posses que permitem a despreocupação com o que está por vir, tempos apertados, mas posso afirmar que o que não tive não fez falta. Tive um pai que na sua simplicidade material, dividiu o que possuía com os filhos, a honestidade, a ética. E foi tomando esses ensinamentos que duramente concluí os estudos. Lembro-me, particularmente, da época de cursinho quando conheci um cara que, como eu, era de origem simples. Na dureza que nos aproximava nasceu um companheirismo que nos fazia, em tudo, solidários. Dividíamos o cafezinho, o cigarro e tudo que pudesse ser compartilhado.

Como este missivista, ele gostava de cinema, teatro e leitura. Íamos às livrarias Saraiva, Cultura ou Loyola fuçar nos livros. Comprar? Nunca!

E foi na livraria Saraiva que um dos seguranças cismou que meu amigo tinha roubado um livro. Depois da discussão que se deu, constatou-se tratar de engano, pois o que o segurança imaginou ser um livro, provou-se ser uma apostila do cursinho. As desculpas foram aceitas, mas ficou a lembrança da satisfação de meu pai que ao saber do ocorrido, e da nossa atitude em relação ao segurança, me deu um abraço e um sorriso. O abraço pela satisfação que o que me ensinara servira para me tornar o que era, e o sorriso, confirmando a satisfação, a certeza de que valera a pena, pois soube que acertara quando nos dizia que ser pobre não é vergonha quando se tem como princípio a honestidade.

Hoje não tenho meu pai, mas se posso agradecer-lhe por alguma coisa, sou-lhe grato por ter sido meu pai. Tenho dois filhos e uma vida que me permite dar-lhes muito do que não tive, mas o que mais valorizo e lhes ensino é não tomar como seu o que é dos outros, e por isso sei, esteja onde estiver, meu pai está sorrindo com a mesma satisfação que demonstrara quando do ocorrido na livraria ou quando nos contava suas histórias por São Paulo. Dizíamos que São Paulo era a melhor cidade do mundo, pois aqui eram capazes de conviver pessoas que nos seus países viveriam como inimigas, ou que graças aos imigrantes, nacionais e estrangeiros, nossa cidade tornara-se o que era. Ele gostava de contar da inauguração do metrô. Onde hoje é a estação Sé, outrora fora o local dos palacetes dos tempos do café. Mencionava sempre o palacete Mendes Caldeira como o símbolo de uma época próspera, ou da Biblioteca Monteiro Lobato que recebera o Cavalheiro da Esperança, de Luiz Carlos Prestes em sua volta ao Brasil ou, ainda, da missa em memória de Vladimir Herzog nos tempos da ditadura, na Sé.

É isso, com muita saudade

história publicada em 25/10/2007, NO SAOPAULOMINHACIDADE.COM.BR