Pequena Dana

Só posso pedir que não morra, a luz no fim de cada trem, a lanterninha fique acesa, acenda meu coração que pede carinho, o último dos moicanos, minha tribo se resume a você e eu. Se levante, assim como Lázaro, não me abandone de um modo repentino, ande, não seja estática como esqueleto em laboratório de biologia. Pequena Dana, sua mãe me deu um abraço hoje, me encorajando, sabe que sofrerei mais que ela que é mãe. Dor não se mede, apenas se sente. Sinto que se você se for, meu coração vai pular pela boca, como os peixes pulam os obstáculos na piracema. O galho despencou, o macaco não quis mais aquela banana, vamos arder de paixão ao lado das bananeiras, se lembra daquele primeiro beijo? O crepúsculo anunciou a temporada do amor, nós cumprimos, tiramos dez, alunos exemplares.

O médico vem vindo, coma, corte profundo na cabeça, estado de saúde grave, me diga quando poderei me livrar desse desespero, saia dessa cama porra, pra mim, não vá para a terra, só eu posso devorar seus pedacinhos aos poucos, com amor e carinho, nada de Hannibal Lecter, ensopado de orelha e pés de mulher. Estava absorto olhando para a parede branca, seu pai com a vista turvada de lágrimas chega gritando, quase me agride com um abraço de urso: “vamos superar isso juntos, ela vai sair dessa”, ele me diz aos prantos. Quanto mais eu acho que você vai sair dessa, pequena e amada Dana, seus parentes me chocam com a possível verdade. Seus pais não representam nada pra mim, só você, sem você estou perdido e só no mundo.

Curva, retilínea, centrípeta, centrífuga, que se foda a física, foi uma dessas palavras desgraçadas em que você se acidentou, antes que eu me esqueça, poderia ter saído voando, quebrado o pescoço e perdido a vida ali mesmo, o cinto impediu o pior, deu uma sobrevida, o balãozinho branco não tinha, ajudaria ainda mais. Contei todas as cadeiras de espera desse hospital, 124, apenas isso ou tudo isso, depende muito do ponto de vista de cada um, acho pouco, hospital imenso, só de parentes e amigos seus Dana, estamos agora em dezoito. Alguns saem com o passar do tempo, os mais próximos permanecem. Vou beber coca-cola, não, guaraná, pepsi, fanta, água mineral com gás, cacete, não consigo me decidir, acendo um cigarro, tusso a fumaça, não sei fumar, nunca fiz isso na vida, inexperiente, mas com saúde.

Tão jovem, muito sangue, quero cumprimentar o bombeiro que a resgatou, muitos curiosos devem ter te olhado, sabem melhor do que eu o seu estado, isso não é justo, me sinto um egoísta por pensar isso. Minhas unhas acabaram, os dedos agora, como contar tabuada, carneirinhos, como a vida é pragmática, tinha que ter sido com você também Dana, mas com você pode acabar antes, não tivemos uma semente, sua vida se extinguindo, a minha vai logo após, Romeu e Julieta, antes de você Dana, achava a história a mais absurda possível, as canções de amor as mais bestas, depois de você fizeram sentido. Sem você voltarei ao meu pântano, nada vive ou cresce ali, depois do Éden de volta ao pântano negro, não deixe que isso aconteça, força Dana, se levante, quero pegar na sua mão quente outra vez.

Seu avô minha querida, sua avó minha querida, estão aqui também, é a ordem natural ao inverso, estão aqui preocupados com a sua saúde, o natural seria você preocupada com eles. A curva, um pequeno erro, falha, é ínfimo para que se quebre a ordem de alguma coisa grandiosa, reaja. Estou morrendo de sono, minhas pálpebras começam a querer se fechar, como se anjos com a bundinha rosada sentassem em cima, eu com um tridente diabólico espetando suas bundinhas, esse tridente como o meu dedo. Alerta máximo, muitas pessoas correndo, deve ter ocorrido algo grave, uma maca, um corpo dilacerado passa por mim, muito sangue, um rio, como Caronte o atravessa, leva as almas para o outro lado, não desfile assim, assusta os outros. As bundinhas rosadas venceram, pego no sono.

Sonhei com o primeiro dia em que te vi pequena Dana, aluno novato, você a veterana, cabelos tingidos de fogo, ardeu o meu coração, queimou tudo por dentro qual galho numa lareira, fumaça saindo pelos ouvidos, um trem que chegava na estação trazendo o amor, a primavera trazendo as flores, ou o mar trazendo as ondas para quebrarem na praia bem diante de mim. Estava em desvantagem. Nerd, aluno novo, nunca fui popular, sempre escrachado, posto de lado, mundo das ilusões, você como a garota popular, a bonitona da sala, a mais desejada para o baile de formatura. Durante esse ano quase não nos falamos, somente o trivial, não dei sorte de nos sorteios cair no seu grupo de trabalho, nem de um dia ter desmaiado de tanto amor e ser socorrido por você, respiração boca a boca, ganhar a sua atenção e afeto. Quando o baile de formatura se aproximava, muitos pares, casavam direitinho, só tinha você em mente para convidar, já esperava pelo não, só criei coragem no dia anterior ao baile, só peru morre de véspera, e nessa véspera eu poderia morrer de felicidade, obra do destino, os céus abriram caminho, nenhum urubu tinha pousado no seu terreno, fui o primeiro a te convidar, acho que sua beleza assustava. O sonho corta abruptamente para o parque da cidade, com suas árvores portentosas, a linda fonte de águas naturais e os belos bancos cheios de propagandas, nada mais belo que aquele dia, a formatura serviu apenas pata trocarmos telefone e que eu pisasse em seu pé algumas vezes. No parque nos beijamos pela primeira vez, pombos nos assistiam, um exército de formigas batia continência, pernas bambearam e um gosto digno de manjar dos deuses na boca. O sonho corta para um cemitério, ele começa a se tornar um pesadelo, frio na espinha, cabeça começa a pesar, um barulho tipo de bateria começa a troar, as dendrias parecem lançar seus espinhos na minha direção, me sinto no deserto, me falta água, começo a suar, não aparece uma tribo de nômades, trocaria eles pelo seu beijo Dana, mesmo que me sugasse todo, Dana! Você que sofre e eu que peço socorro, me sinto uma criança desamparada. Passa o sonho para um ringue, uma platéia ensandecida, todos deformados, mutilados e desdentados gritando, um alce com mãos entra no ringue, cospe na minha cara, quero correr e não consigo sair do lugar, minhas pernas estão imóveis, é como correr no gelo, o alce me derruba no chão e finca uma adaga no meu peito, nessa mesma hora eu vejo o seu espírito, Dana, me mandando um beijo e eu acordo.

Relance, quando acordo olho para quem me cutucou, com a banda do olho esquerdo vejo o relógio, dormi bem, estamos já de madrugada, não ouço o galo cantar, só uma choradeira, seu pai pequena Dana, me olha nos olhos e me diz que você acaba de morrer, que crueldade, como que ele pode me dar uma notícia dessas assim, sem nenhuma preparação? Queria correr, invadir todas as salas a sua procura, não deixe que isso seja verdade, levanta esse pano branco que cobre o seu corpo, queime-o como o sudário de Turim, quero o seu sudário pra mim, sem nenhum furo, intacto, imaculado. O lençol vai assim inteiro, meu coração aos pedaços, como um queijo suíço. Eu nunca chorei na vida, nem nesse momento eu consigo, devo ser alguém bem ruim, queria que rolasse agora uma cascata de lágrimas, mas ser-me-ia impossível, não posso conceber sua morte, posso conceber que elefantes voem, que macacos virem pastores, que lagartixas aprendam a sapatear, mas não que você parta para nunca mais voltar, Dana!!

No seu velório, todos de preto, eu de branco, não tive coragem de vestir tal cor de luto, de preto já basta meu coração agora, numa treva danada. Dana, sou o mais cumprimentado de todos, aquela sua amiga Paula, doidinha varrida, me agarrou e me deu um beijo, tive que expulsa-la, não respeitou sua partida, sem vergonha, amiga muquirana, seus pais continuam chorando, eu ainda não, como promessa as lágrimas vão rolar no enterro, não sou de falsas palavras, irei cumprir tudo. Uma lufada, meu cabelo balança, você precisava ter visto isso, só ventava pra cima de mim, estico os braços e de repente sou tomado de ternura e amor, pena que é rápido, poderia durar pra sempre, ou pelo menos vida de tartaruga, alguns séculos, nenhum alento mais me é permitido, estou perdido, arrancaram o horizonte defronte meus olhos, mas não arrancaram meus olhos e nem acabaram comigo.

Buraco fundo, sete palmos sem terra, caixão, sete palmos de terra, enterro, todos aqui, muitas flores, trouxe a mais bela que encontrei pequena Dana, você merece, trarei uma mais bonita a cada dia, ficaremos juntos as tardes, vamos conversar bastante, menos culinária, fritar ovo é a única coisa que sei, mesmo assim ainda me atrapalho com isso, não tenho esses dotes. O último adeus, o caixão se fecha, nunca mais verei pessoalmente o seu rosto, só em lembranças e fotos, começo a chorar, choro copiosamente, pareço uma carpideira, estou espantado e secando, lágrimas rolam pela terra, elas foram ao seu encontro, despedida, não se juntaram ao lençol subterrâneo, não seria permitido. Todos começam a ir embora, o sol está indo junto, a lua veio também se despedir, as estrelas, tudo, vieram agradecer pelo seu brilho em vida. Luz que ilumina lá, ilumina cá, pequena Dana. Pedem que eu saia, vão fechar o cemitério, amanhã estarei aqui, e depois, e depois, e depois, até o fim da minha vida.

Todos os dias trago a flor mais bela que encontro, sempre me supero, as pessoas presentes no cemitério e o coveiro ficam deslumbrados, as arranjo em uma fileira na sua lápide, até hoje elas nunca murcharam, fato que assombra um pouco as pessoas, não duvido que um dia façam peregrinação ao seu túmulo, milagreira, não hei de permitir isso, é minha. Caminho por muitos lugares ermos, hoje por exemplo caminhei duas horas pelo campo, um nevoeiro logo de manhãzinha dava ares de lugar místico, um som no aparelho assobiava na música, criava um clima lindo, bombas de água irrigavam as plantações, lançavam a água como numa dança mecânica, um círculo de balé. Por todos os lugares que eu passava, as pessoas sorriam pra mim, na verdade pra nós meu amor, num estágio de delírio completo, inebriante, o amor contamina. No alto de uma rocha imponente, brilhava uma flor estupenda, se destacando de tudo, anunciava o seu intuito, me chamava até ela, Dana, você vale cada gota de suor, cada gota de sangue, cada partícula de ar que inspiro. Subi na rocha e a flor se murchou ao meu toque, para logo em seguida dobrar de tamanho e beleza, é o milagre de um amor verdadeiro e da metamorfose. É triste todos os dias me deparar com a data da sua chegada e a data da sua saída desse plano pequena Dana, partiu muito cedo. Sua lápide é a mais enfeitada de todas, cuido sempre para que continue sendo a mais bela. Sei que todos os dias você me faz sempre a mesma pergunta, como que anda a minha vida, sinceramente é sempre a mesma rotina, pela manhã procuro uma bela flor, à tarde eu passo sempre com você, a noite fico imaginando como seria o nosso casamento, velhice juntos e essas coisas. Sei que você gostaria que eu encontrasse alguém especial, que retomasse a minha vida, mas com isso teria que abandonar a sua memória, como me reencontraria com você depois pequena Dana? Já pensei demais em suicídio, mas você não permitiria, eu não posso deixar isso crescer dentro de mim, eu preciso retirar isso de dentro de mim, não posso deixar crescer, simplesmente não posso.

Tudo envelhece, é inexorável, minhas articulações, rugas, cabeça mais lenta, cansaço, você carcomida, restam apenas os ossos numa caixinha, cabelos nunca param de crescer, estamos deteriorados, eu mais ainda, perdi a fé. Durante décadas fiquei na esperança que você me desse um sinal e nada, não dei mais murro em ponta de faca, se continuo vindo aqui é pela força do hábito, não sei fazer outra coisa. Hoje completou oito anos sem trazer uma flor, meu corpo não me permite mais aventuras. Meu amor foi diminuindo junto com as minhas capacidades físicas, Dana, envelheceu, sem um sinal que o inflamasse ele foi apagando. Vou morrer, meu corpo está me deixando na mão, pernas fraquejam, uma dor lancinante no coração, coloco a mão no peito e caio, cadê a luz divina? Cadê você pequena Dana? Aonde estão todos? Estou morrendo e não tem nada? Que coisa decepcionante, joguei minha vida fora esperando esse momento e nada, Deus me abandonou, só pode, só me resta agora prolongar eternamente meu último suspiro e lamento, levanto minha mão esquerda e chamo por você, DANA!!!