O mar - sonho mineiro
O Mar – sonho mineiro
Teresa Mangabeira
O Mar sempre exerceu uma atração irresistível sobre as pessoas e segredou sonhos incontidos. Prosaicamente, o mar nada mais é que uma grande expressão de água salgada conectada com o oceano, como definem os dicionários.
Para mim, quando adolescente, a lembrança mais grata do mar advinha de uma história que se contava sobre a vida de Santo Agostinho. O Santo andava querendo penetrar demais nos mistérios de Deus e, um dia, estava à beira- mar, com o pensamento nas coisas do além, quando observou que uma criança brincava cavando um buraco na areia e, com uma concha, retirava a água do mar e colocava no buraco, amolecendo a terra e tornando-o mais profundo.
Ao se aproximar da criança, uma voz ecoou saindo das profundezas: Agostinho é mais fácil esta criança trazer toda a água do mar para esse buraco do que você penetrar nos mistérios divinos.
Fernando Macedônio, mineiro de Governador Valadares, desde menino, ouvia conversas sobre o mar contadas pelos patrícios e sonhava um dia ir morar à beira-mar. Não era tanto para tomar banho de mar, mas contemplar aquela imensidão de água abraçando o mundo. Morava com o pai, viúvo, numa fazendola com muitas vacas no Vale do Rio Doce, zona rural e, já maior de idade, a não ser por fotografias, televisão e noticiários, conhecera o mar ou tivera contato com ele. Estudava em Belo Horizonte até concluir o 3ª. Série do Segundo Grau e, nos fins de semana, quando voltava para casa, trazia um bocado de revistas escolhidas e diversos vídeos de Jacques Cousteau sobre aventuras no fundo do mar.
O pai, muitas vezes, quando Macedônio saia para o curral, dava uma olhada em seu quarto pensando que se tratava de revistas pornográficas ou com mulheres nuas. Mas não eram. Estava meio intrigado e, como bom mineiro, desconfiado de que o filho não fosse macho. Em sua maioria, as revistas mostravam lugares onde o mar se espreguiça todo nas praias, rodeadas de prédios bonitos, ou assuntos de náutica, em que o mar aparece manso, calmo, com sua flora e fauna maravilhosa, um encantamento.
Ás vezes, o velho dizia:
- Filho, parece que gostas mesmo de pescas submarinhas?
. – Não, pai, gosto de apreciar o mar.
– Então, qualquer dia te levo para conhecer Guarapari e tomar banho de mar.
Guarapari, uma cidade balneária perto de Governador Valadares, no Espírito Santo, é o paraíso dos mineiros. Uma cidade privilegiada de belíssimas praias, com uma população de cento e vinte mil habitantes, na época da temporada, que vai de janeiro ao carnaval, se transforma num monstro com 400 mil turistas. Um inferno para os moradores, mas o ideal para os turistas, em sua quase totalidade mineiros. E haja gente nas praias do Morro, Castanheiras, Enseada Azul, Meaipe, Tres Praias, Setiba, Iriri e as esticadas até o município de Piuma.
Muitas vezes, Fernando Macedônio perguntara ao pai:
- Pai, por que Minas não tem mar?
– O pai respondia, com sua sabedoria: porque Deus já deu tanto a Minas Gerais, que se desse, também, o Mar seria uma humilhação para os outros Estados.
Bem que Macedônio gostaria de exaltar, como José de Alencar, `` os verdes mares bravios de minha terra natal.
Assim cresceu pensando morar perto do mar, contemplar dia e noite o mar, muito embora o Mar que o fascinava era o Mar de Copacabana cuja canção o embalava em criança.
O velho pai já bastante doente lhe entregou o cuidado da fazendola e quase não podia se ausentar. Macedônio completara 22 anos quando o pai veio a falecer. Enquanto o inventário corria, deixou um primo tocando o negócio e resolveu conhecer o Rio de Janeiro. Estava noivo, e uma idéia fazia marola em sua cabeça o tempo todo: comprar alguma coisa em Copacabana na beira do mar.
E viajou. Quando passeava pelo calçadão de Copacabana, olhava aquele mar azul e bonito, e, ao fundo, as montanhas, o morro do pão de açúcar com o bondinho, nem se interessava por banho de mar ou pelas pessoas que lotavam as praias. Ia, vinha e parava olhando fixo para o mar. Numa dessas caminhadas, teve a atenção desperta por uma tabuleta num terreno pequeno na Avenida Atlântica, anunciando a construção de prédio de doze andares. Tomou nota do endereço da construtora e, como fora indicado para visitar em Copacabana um conhecido da noiva, se dirigiu á sua casa e pediu referencias da construtora. Demonstrou seu interesse em comprar um apartamento em Copacabana, mas só servia se fosse em frente ao mar. A construtora não era das mais conhecidas, mas não havia nada contra, segundo os conhecidos, e lá fechou negocio com apartamento no quarto andar, com uma vaga de garagem.
Uma nota preta ia custar-lhe. Deu a entrada e ficou pagando o restante em prestações, pois os preços eram muito altos. E retornou feliz para Governador Valadares, casando-se um mês depois e sonhando com o apartamento.
Durante quatros meses pagou pontualmente as prestações. Depois não recebeu mais avisos bancários. Tentou contato com a construtora. Em vão. Ninguém atendia, o telefone foi desligado. Passado um mês, disparou para o Rio. Antes de ir ao escritório, passou pelo local na Avenida Atlântica onde se projetava construir o prédio. Teve um susto e o coração só faltou saltar do peito. Não havia mais anuncio nem construção, o local fechado com tapume de compensado naval. Instintivamente se recordou da história do mineiro que veio ao Rio de Janeiro e comprou um bonde.
Pediu informações dos conhecidos de sua esposa e obteve a ajuda de um advogado para acompanhá-lo.
Aí sentiu que tinha caído no conto do vigário. A construtora não obtivera licença da Prefeitura para a obra. Demandada por outros credores, teve decretada a falência. O advogado aconselhava que não questionasse, pois iria perder mais dinheiro. Eram tantas as ações contra a massa falimentar que nada ia sobraria de multas e cobrança privilegiada de débitos trabalhistas. Era preferível arcar com o prejuízo.
Regressou arrasado. Andava calado, cabisbaixo, desanimado por não ter realizado seu sonho. A esposa o consolava, dizendo que podiam ir a Guarapari, que era mais perto, onde tinham conhecidos e não havia violência como em Copacabana.
Tanto falou, tanto insistiu, inclusive pedindo o testemunho de conhecidos que Macedônio resolveu fazer uma visita àquela cidade.
De qualquer maneira estava disposto a se mudar da fazenda e pensava em vendê-la ao vizinho, que lhe fizera uma proposta, quando falara que ia morar no Rio, assim que o apartamento estivesse pronto.
No mês de janeiro, deixou a fazenda com um empregado, pediu a um parente da esposa para cuidar da parte financeira e acelerou o carro na Br. 262, dirigindo-se ao Espírito Santo.
Hospedou-se no Hotel Porto do Sol, na Praia do Morro, e não perdeu tempo. Deixou a mulher arrumando as malas e saiu como uma criança pela praia afora. Ficou encantado.
Realmente, era o que os conterrâneos exaltavam. Início do mês de janeiro, a cidade regurgitava de gente, e o que era mais agradável, aqui e acolá, um conhecido o cumprimentava, outro mais chegado se aproximava e ficavam a jogar conversa fora. Parecia que Minas Gerais tinha se mudado para a cidade, tantos os carros com placa de Minas Gerais, ou havia criado uma sucursal em terra capixaba.
No meio da praia, bem em frente ao Mar, na Av. Beira Mar, penetrou numa corretora, sendo recebido com festas pelo dono que lhe indicou o apto 801 do prédio ao lado, mobiliado e vazio, com vaga de garagem dupla.
Não perdeu tempo, subiu ao oitavo andar com o corretor a dizer maravilhas do prédio, documentação legal, condomínio barato, construção nova, três quartos com uma suite, quarto de empregada, de outras coisas mais que ele nem ouvia, de tão embevecido que estava de contemplar aquele marzão entrando pela varanda.
Imediatamente, ligou para o vizinho em Governador perguntando se confirmava a compra da fazenda e fechou ali mesmo o negócio.
Desceu para a imobiliária, deu um cheque de sinal, para ser feito o negocio dentro de quinze dias, quando todas as certidões estivessem prontas para lavratura da escritura, com o pagamento do restante do preço e recebimento das chaves. E correu para o hotel para dar a boa nova à esposa.
Nunca estivera tão feliz e a esposa também, porque estava perto dos seus conterrâneos e afastava o pesadelo da compra no Rio. Argumentava que se tivesse feito negocio em Copacabana não teria vista para o mar, a não ser bem longe, pois o 4º andar era baixo, vendo-se em primeiro lugar os carros, quiosques e arvores, ao passo que no 8o. andar a vista do mar era total.
Gastou o restante da temporada do hotel que ficava na beira do mar, tendo as colunas ainda sentadas nas águas, a fazer planos e ter uma lua de mel inesperada. Contava os dias para retornar a Governador e se desfazer da Fazenda. Nos intervalos dos dias, procurava ver o que era melhor para montar um negócio, muito embora soubesse que na temporada qualquer coisa dava dinheiro, porque tudo era disputado ferozmente: farmácias, hotéis, restaurantes, postos de gasolina, e até os carros brigavam bravamente por um espaço e empanturravam os estacionamentos.
No regresso fez negocio com a Fazenda, sò trouxe objetos pessoais e mudou-se definitivamente para Guarapari.
O sol mal emergia do horizonte e Frnando Macedônio já caminhava pela praia do morro, de ponta a ponta, ora molhando os pés nas ondas que davam cambalhotas na areia, ora afugentando os pombos que esvoaçavam sabidos e malandros como se estivessem com medo, mas pousavam logo à frente, acompanhando-o, à espera de ração.
Á tarde, ficava horas sem fim na varanda, absorto em seus pensamentos, contemplando aquela imensidão azul, ora clara, ora escura, quase na palma de sua mão, de tão perto. Só avistava o mar. Quando queria ver os carros, os quiosques ou a rua, tinha que se debruçar na varanda e olhar para baixo.
Via o mar, a todo instante, a todas as horas, e à noite dormia, embalado como se estivesse numa rede, pelo marulho das ondas que teciam colchas de espumas nas praias.
Realizara o seu sonho, sonho de morar à beira-mar.
Velho sonho mineiro.
AUTORA:
Teresa Mangabeira, 1969, de Salvador/BA, Advogada, residente no Rio de Janeiro, escreve
nas horas vagas contos e romances.