Instinto de Assassino
Um certo dia, ainda na minha adolescência, provido de minha espingarda de caça, encontrava-me deambulando no pequeno sítio de meu pai, adquirido aos poucos e em pequenos lotes, mais por razões sentimentais, pois fora por lá que seus antepassados e, em consequência, também meus, haviam fincado raízes, após fugirem das constantes guerras que assolavam nosso país co-irmão, o Uruguai. Nessa localidade costumávamos passar os finais de semana juntos, pescando, caçando e em colóquios maravilhosos, onde eu tentava absorver todo o conhecimento que aquele homem, dos seus cinquenta e poucos anos, semi-analfabeto, charmoso e carismático – como eu sempre quis ser, mas nunca consegui -, com seus profundos e inquiridores olhos verdes, tentava insistentemente passar-me.
Nessas oportunidades, pelas quais eu aguardava ansiosamente, ele tentava, e normalmente conseguia, demonstrar todo o conhecimento adquirido na sua conturbada vida.
Uma das lições mais marcantes que recebi é esta que vou tentar narrar agora, na ocasião, em que passeava armado com a espingarda de chumbo calibre 36 – minha predileta - e munido de alguns poucos cartuchos, costume esse que, embora hoje em dia pareça absurdo, na época era muito normal e até mesmo necessário, para que pudéssemos defender nossa pequena propriedade da ânsia dos abigeatários, os quais visitavam as imediações até com certa frequência, como se fossem grandes e queridos amigos. Felizmente como sabiam que encontrariam, nessas visitas, homens, mulheres e, até mesmo, crianças, dispostos a defender suas vidas e seus bens com determinação, esses indivíduos procuravam locais ermos, somente agiam a noite e sempre que percebiam a presença de movimento próximo ao local onde cometiam seus crimes, logo fugiam e procuravam vítimas mais fáceis, tais como agem os animais a procura de outros para abaterem.
Essa foi uma outra lição que aprendi cedo, descobri que a grande maioria dos homens age como se fossem animais famintos e não respeitam a vida, tendo oportunidade de matar, o fazem até com um certo prazer mórbido, mesmo não ganhando nada com isso, era o que eu presenciava as vezes, ao ver animais abatidos, dos quais não havia sido aproveitado quase nada, nessa ânsia do homem de matar por prazer, diversão ou até mesmo por passatempo. Isso nem mesmo os animais mais traiçoeiros fazem, e é isso que nos separa dos animais, pois eles matam por necessidade e nós não carecemos dela para matar e destruir a tudo o que nos cerca.
Voltando a minha outra lição recebida naquele dia, ela foi exatamente o contrário de tudo isso que acabei de contar, mas serviu para que eu percebesse que ainda agia por um instinto sanguinário, pois mesmo com todos os conselhos que recebia, com todas as lições dadas, com todos os exemplos que presenciei, pois meu pai jamais pescava mais do que iríamos consumir, jamais abatia um animal que não fosse para nos servir de alimento no mesmo dia, ou que não pudesse ser armazenado em casa na cidade e pudéssemos aproveitá-lo todo, as vezes até mesmo durante o ano, quando abatiamos um animal maior do que as nossas necessidades ele era dividido com nossos parentes, que eram muitos e , como nós, nada abastados, em nossas pescarias, somente não aproveitávamos as vísceras dos peixes, até mesmo as iscas, constituídas de lambaris, que eram apanhados com uma pequena rede de espera, nas partes mais rasas do rio que corria no fundo do pequeno sítio, quando não utilizávamos todos os pequenos peixes fazíamos, alí mesmo na beira do rio, uma deliciosa fritada de lambaris, logo que encerrávamos a pescaria.
Cresci e aprendi a ser gente assistindo e participando ativamente dessas lições de respeito e amor a natureza, mas não um respeito forçado, e sim aquele do homem simples, quando sabe que se desperdiçar o que conseguiu apanhar hoje, provavelmente amanhã terá mais dificuldade em adquirir o próximo alimento, isso foi o que deveria ter aprendido e que deveria praticar, mas não foi isso que fiz e que ainda estou querendo narrar.
Meu pai cultivou em mim o seu mesmo amor a natureza, o seu mesmo respeito as forças que nos cercam, o respeito a chuva, ao vendaval, ao rio tortuoso em um dia de tempestade, respeito até mesmo aos animais peçonhentos, que se provocados poderiam picar-me, mas isso, somente se provocados, não havendo necessidade de abate-lo se eu simplesmente tomasse o cuidado de desviar-me do seu caminho, respeito a tudo que vive e que dá o seu quinhão para manter-me, também, vivo. Essas foram as melhores lições que poderiam ter sido passadas como herança, respeitar a tudo e a todos, mesmo sem ser religioso meu pai aprendeu isso e passou-me, ou tentou passar-me como o amor que se dedica a um filho querido. Qual não foi a minha surpresa, indignação e até raiva de mim mesmo, a ponto de fazer-me chorar por quase uma tarde inteira e somente deixar-me consolar pelo mesmo homem que tentou passar-me os sentimentos mais puros e ao perceber que eu não havia assimilado nada do que fora ensinado, ainda asim, soube desculpar e teve paciência para iniciar novamente todos os ensinamentos pacientemente. No dia que sai com a espingarda, própria para abater animais de grande porte, mas que estava condicionada – com o uso de pequenas partículas de chumbo, as quais faziam com que a área de ação da munição fosse bastante aumentada -, ao ir fazer sua sesta, costume bastante arraigado nos povos de língua espanhola, e do qual não abria mão, meu pai passou-me a determinação de que somente poderia abater alguns animais que teimavam em destruir nossa lavoura de milho, eram aves de pequeno porte, conhecidas no sul como caturritas, e que hoje se alguém for tolo o bastante para abate-las correrá o risco de responder a um processo no IBAMA.
Na época isso não constituia um crime e era até mesmo incentivado (costume que existiu há mais de vinte e cinco anos) naquela região, isso para que fosse possível colher alguma parcela do milho plantado, as pequenas e inocentes aves teriam que ser afastadas ou exterminadas. Com a espingarda na mão eu caminhei um pouco – muito pouco na verdade - e não encontrei as caturritas, senão bastante longe, onde eu não estava com disposição para ir, mas mesmo assim queria atirar, pois era, na época, uma das minhas grandes paixões, essas que nos levam a cometer os mais horrendos atos, pois bem, foi essa a mesma que levou-me a abater uma inocente calhandra – animal de belo canto que povoa nosso pampa -, como atirei muito próximo de casa, devido a preguiça de deslocar-me até o milharal que ficava a uns dois quilômetros de onde eu estava (outro grande defeito humano que não aprendi a vencer) meu pai assustou-se e surgiu correndo, vindo em direção a um frondoso pé de umbu – árvore bastante aprazível, de grande porte e que oferece uma bela sombra - onde eu, após perceber que havia matado o animal que todo dia pela manhã acordava-me com seu magnífico canto, segurava-o entre as mãos enquanto o animalzinho estrebuchava, ao perceber o meu estado de contrição meu pai sequer chamou minha atenção, olhou para o animal já quase morto e disse-me: - pegou de raspão, mas tu atira mal guri, fica aí que vou dar um jeito de curá-lo. E partiu conduzindo minha vítima entre as suas fortes e calejadas mãos, mas que naquele momento, para mim, pareceram do mais hábil cirurgião, capaz de trazer novamente a vida aquele pequeno e desprotegido ser, cuja cabeça eu praticamente destroçara com um certeiro tiro, acreditei, mais por querer acreditar, que o animalzinho ficaria bem e fui para casa, guardei minha arma predileta e jurei não matar mais animal nenhum, bem como promessa de guri dura pouco tempo, a minha durou até a próxima oportunidade de afastar as odiadas catorras do nosso milharal. Fiquei o dia amuado, meio que choroso, e pedindo a meu pai para ver a avezinha doente, isso foi-me negado veementemente durante todo dia e, a noite, meu pai afiançou que eu seria acordado novamente pelo mavioso canto da linda calhandra.
Mal consegui dormir a noite esperando amanhecer para ouvir o canto, pela manhã lá estava o belo trinar da avezinha, levantei rápido e corri a abraçar meu pai que já estava de pé, pois sempre acordava muito cedo, fui rapidamente para fora ver a calhandra, havia sim uma cantando tristemente sobre o meu frondoso pé de umbu, mas não parecia a mesma na qual eu havia desferido a meu desejo insano de matar alguma coisa, mesmo que fosse um animalzinho inocente e belo, que me brindava todos os dias com aquele maravilhoso canto, meu pai colocou-se ao meu lado e apontou uma ave inerte que jazia presa entre dois grandes galhos próximos ao tronco da árvore e disse-me: - filho tu destroçou a cabeça do animalzinho, não havia necessidade disso, mas tu o fez e agora não adianta te arrepender, a que estava cantando era a viúva e não cantava mais para ti, ela estava chorando a morte do companheiro, ontem te falei que ele ia se salvar para não te ver mais tão triste, mas tem que aprender que todos os teus atos terão alguma consequência, dessa vez foi a morte de uma ave inocente e que não te fazia mal algum, se não aprender a controlar teus instintos assassinos, amanhã pode ser alguma coisa ainda mais grave, e depois que acontecer não vai adiantar chorar ou se lamentar. Foi a lição que aprendi, o mal está em mim mesmo e tenho que controlar a minha ânsia em destruir tudo de belo que me cerca, em todos os momentos da minha vida, pois depois que ver tudo destruído não mais adiantará lamentar ou chorar, somente poderei arrepender-me e suportar as consequências por todo o mal que fiz.
Brasília-DF, 23 de outubro de 2009.