O homem-sombra

Em Brasília existem duas estações bem definidas, em uma a seca é absurda, convivemos com um clima desértico, noutro chove praticamente todos os dias. Como se diz na minha terra: a gente vira sapo. No primeiro, em algumas regiões, a poeira impera e, como também se diz no meu saudoso sul: dá para cuspir um tijolo. Já no segundo, a lama toma conta de tudo, isso somente não acontece no Plano Piloto e em algumas cidades satélites mais desenvolvidas, tais como: Taguatinga e o Núcleo Bandeirantes, mas, em muitas, onde não existe infra-estrutura adequada, principalmente nas chamadas “invasões”, a realidade é bastante distinta da vivenciada nas mais privilegiadas.

Pois bem, mudei a quase dois anos para uma quadra central do Plano, anteriormente residia em um local completamente abrigado, onde a realidade raramente conseguia bater em nossa porta e, muito menos, apresentar-se nua e crua aos olhos já cegados a ela. Logo na primeira temporada de chuva, após a nossa mudança, pude observar que um senhor, aparentemente com seus 50 anos, havia instalado-se em uma parada de ônibus, desativada, que fica bem em frente a minha janela. No início pareceu-me curioso ver àquele ser humano, barbudo, meio que descabelado, puxando um carrinho, desses utilizados tipicamente pelos catadores, mas sem outra carga que não fossem os parcos utensílios necessários a sua dificultosa sobrevivência e, talvez, cheio de lembranças que somente a ele são caras.

Com o passar do tempo notei que ele tinha uma certa predileção por “acampar” bem debaixo de uma árvore frondosa, situada na quadra frontal ao meu ponto de observação. Nesse local ele fazia o seu fogo de chão, apanhava seu violão – o qual parece-me não possuir cordas – e, durante o dia, como se estivesse, realmente, em um local isolado ou em um camping, sentava-se em alguma coisa, como se fosse um banco; preparava alguma coisa, como se fosse comida e dedilhava alguma coisa, como se fosse um violão. Preparando o seu alimento, com o olhar no vazio e acariciando gentilmente o instrumento musical, inútil para muitos mas parecendo possuir um enorme valor sentimental para aquele estranho homem, diferente dos que já havia visto perambulando pela cidade, a simetria entre eles estava, para mim, na distância entre os que perambulam e este que vem, deliberadamente, acampar bem debaixo da paisagem que eu considerava, até então, somente minha. Obrigando-me a perceber que o mundo, além de minha vitrine, colorida, tranquila, prazerosamente bela, harmônica e constante, onde eu via somente coisas que parecem árvores e cantos maviosos que sempre pareceram-me com o dos pássaros.

Essa idéia de que aquela noção de perfeição, que até então era a que eu conhecia, das coisas que parecem comida, serem realmente comida; das coisas que parecem bancos, serem realmente bancos; de coisas que parecem violões, realmente emitirem sons harmônicos; de coisas que parecem árvores, serem realmente árvores - utilizadas como moradia, somente, por coisas que parecem pássaros ou grilos, e que se prestam a entoar suas coisas que parecem maviosos cantos ou ruídos estridentes.

No início pareceu-me chocante descobrir que aquela outra coisa, que não parecia um pássaro e, muito menos, um grilo, era, na verdade, um ser um tanto estranho a minha concepção de homem, mas, indubitavelmente o era, foi o que conclui após um exame superficial, feito com a desculpa, escabrosa, de ofertar-lhe algumas frutas e uma coca-cola diet (nem mesmo eu sei o porquê do diet, talvez fosse por temer que o homem não aprovasse um outro e acabasse por agredir-me com seu olhar triste e vazio, recusando o que eu lhe oferecia). A verdade é que agora ele decidira morar debaixo da frondosa árvore, que até então eu considerava por direito pertencer, somente, a minha bonita e privativa paisagem, apenas a dividida com meus vizinhos e, mesmo assim, com bastantes restrições, pois acreditava que ninguém teria a sensibilidade necessária para valorizar a “minha paisagem” harmoniosa, bela, e desprovida de qualquer coisa de ruim que não fosse eu mesmo.

Agora, vendo que minha vida foi invadida por uma realidade social brutal e rude. Plena do preconceito que aprendi a nunca deixar de ter. Imagino como é absurdo, essa coisa que parece homem, viver acampado em um local público que a ele deve parecer um agradável sítio a beira de um plácido lago, apanhando chuvas quase diárias e comendo coisas que, se a mim mal parece comida, a ele o é, mas que para a imensa maioria pode ser comparável ao lixo, que descartam rotineiramente. Essa espécie de vida parecia-me impossível, quando, na adolescência, via-me obrigado a sair para pescar com meu já falecido e amado pai, passando dias dormindo ao relento e preparando meu alimento em um fogareiro ou no sufocante e fumacento fogo de chão e, após adulto, quando via-me obrigado a passar dias a fio dormindo em barracas e alimentando-me sentado no chão duro, rude e poeirento, muitas vezes misturando a poeira ao alimento. Nessas ocasiões considerava inútil sair do conforto de uma coisa que eu considero o lar para passar dias desconfortáveis e aborrecidos, só causava-me conforto saber que essas situações eram transitórias e, depois de poucos dias, não estaria mais morando em barracas, muito menos apanhando chuva e não estaria mais longe da minha lareira, da minha poltrona – que para muitos é um verdadeiro trono -, do meu colchão, do meu teto, dos meus filhos, da minha esposa, do meu mundo. Eu, que me sinto realizado por viver cercado de meus filhos, que as vezes parecem chatos ou de chatos que as vezes me parecem meus filhos, pagando taxas e impostos que parecem intermináveis por bens que parecem ser meus e que na verdade nunca, verdadeiramente, o serão. Ao ver o homem barbudo e meio que descabelado, sempre me pego a imaginar como é possível viver assim. É curioso ver esse homem parecer feliz, sem ter uma coisa que pareça sua casa para retornar, uma coisa que pareça ser sua poltrona para sentar, uma coisa que pareça ser sua lareira para o aquecer, uma coisa que pareça ser seu colchão para deitar, uma coisa que pareça um teto para o abrigar, e coisas que pareçam ser seus filhos e sua esposa para amar. Esses são os direitos que dizem serem os de todos nós, a mim, pagando bem e religiosamente em dia, nunca foi completamente negado, mas a esse homem, que não possui o amor pelas abstrações as quais norteiam a minha concepção de vida, para sempre serão recusados. Para a nossa sociedade ele é somente mais um pária que se recusa a adaptar-se aos conceitos que a maioria de nós aceitou, acata e pratica, não importando o quanto de preconceito exista nessa nossa forma egocêntrica de encarar a vida.

Ao homem que reside em frente a minha janela, embaixo da parada de ônibus inútil - tanto quanto a minha concepção de normalidade -, não fosse por o estar abrigando hoje, aboletado abaixo da árvore que nunca foi minha, apropriando-se do mavioso canto dos pássaros e do ruído estridente dos grilos, que na maioria das vezes eu nem sequer os percebo, alimentando-se de coisas que - se para mim e aos outros não são bem comida - para ele, no entanto, parecem ser manjares destinados aos deuses. A felicidade parece estar nessas mesmas coisas, tão simples, que normalmente não mereceram minha atenção, por parecerem pequenas demais frente a correria do meu dia a dia, e que só pareceram ter mais valor ao ver que foram invadidas por uma coisa que, a princípio, pareceu-me um homem barbudo, meio que descabelado e vestindo trapos, mas que, aos poucos, aproxima-se tanto da minha própria essência que começo a acreditar, sem sombra de dúvida, que caso essa imensa força, a qual traça esse enorme emaranhado de tênues fios a qual costumamos chamar de destino, tivesse-me levado a fazer uma única escolha diferente das que fiz, embora muitas eu saiba terem sido as mais equivocadas possíveis, mas que, pelo menos no meu imaginário, me trouxeram ao lado de dentro da vitrine da qual assisto, confortavelmente, ao homem da parada de ônibus. Percebo que hoje poderia ser eu que me encontrasse lá, na parada de ônibus, na chuva, comendo das sobras, vestindo farrapos, tocando um violão sem cordas, quem sabe imaginando se as pessoas que me assistem da janela seriam realmente pessoas, ou coisas que parecem pessoas, mas, no entanto, são desprovidas do sentimento que as faria realmente humanas, o amor. Não só a si mesmas, pois esse temos de sobra, mas, também, ao próximo, mesmo que este próximo seja uma coisa que pareça um homem, ou pareça uma criança, ou pareça alguma coisa que não entendemos, mas que, no entanto, existe, está ali, respira, alimenta-se, veste-se, sente frio, sente fome, sente as mesmas necessidades que nós, e que não é, simplesmente, uma coisa que parece homem, comendo coisas que parecem comida, vestindo trapos que parecem roupas, dedilhando coisas que parecem violões, mas é um ser humano, uma pessoa, um cidadão, marginalizado pela sociedade que o criou e que, em seu lugar, poderia estar qualquer um dos que o assistem hoje e que, como diz o título de um livro de Zibia Gaspareto, “O Amanhã a Deus Pertence”.

Após a primeira temporada de chuva, esse homem desapareceu como se fora mesmo somente uma sombra, a qual teimou em passar por debaixo da minha janela e que me fez pensar na finitude da vida. Depois de algum tempo pareceu-me que nunca existira e que, agora, eu estaria livre da reflexão que fora obrigado a fazer, pensei por uns dias em por onde ele andaria, talvez tivesse uma família que o acolhera novamente, talvez houvesse partido para sítios mais aprazíveis, onde pudesse acampar sem ser perturbado pelos olhares preconceituosos e inquisidores da vizinhança, talvez houvesse parado de existir, vitimado por alguma doença contraída em decorrência da chuva torrencial que derramou-se sobre ele em algum dia, qualquer dia, mas, provavelmente, fora mesmo para o seu belo e magnânimo acampamento reservado para o período de seca - local esse tal qual os campos Elíseos dos antigos gregos -, longe da poeira e de tudo que infesta nossas casas e nos sufoca.

Não há como saber, o fato é que o homem, que pareceu-me, por algum tempo, ter sido somente uma sombra a acusar-me a deixar-me face a face comigo mesmo, voltou. Agora, para o meu desespero, parece decidido a transformar-me em alguma coisa que pareça, realmente, um ser humano. Essa entidade, que assombrou-me durante toda uma temporada de chuva, agora parece querer transformar-me em algo desconhecido para mim mesmo, em algo a que não pertenço, parece querer arrastar-me com ele para os campos elísios e lavar minha alma no Rio Lete, livrando-me de todos os preconceitos arraigados em mim por décadas, talvez séculos ou até milênios, de paixões desenfreadas, de egoísmos exacerbados, de batalhas irracionais, de carnificinas colossais, de crimes monstruosos, as vezes desconfio que ele quer transformar-me em mim mesmo.

Ele, logo nas primeiras chuvas, após ter dormido alguns dias molhado e ao relento, sob a parada de ônibus, pois mesmo essa já não foi suficiente para reter a tempestade que arrasou casas e derrubou árvores, mas, no entanto, também não foi suficiente para demovê-lo da firme convicção de sobreviver, à fúria da natureza, aos olhares furtivos dos homens, ao medo da sociedade de que todos se transformem em sombras de coisas como ele e, principalmente, do desejo de continuar assombrando-me.

Atualmente não posso mais sossegar meu medo e voltar a viver alheio ao meus maiores temores, pois o homem-sombra – essa entidade maléfica que me apavora e alucina - resolveu construir um abrigo feito com lonas e tomando o formato de uma barraca, quase de uma casa. Acredito que ele, com quem a princípio não me preocupei por parecer somente mais uma sombra fugaz em minha vida, resolveu fixar-se, definitivamente, debaixo da árvore que hoje é dele, em frente a janela de onde avista-me com seu olhar perscrutador e indecente, em um mundo que agora divide com todos nós, ouvindo o canto dos pássaros e o ruído dos grilos, os quais pertencem a essa maravilhosa natureza que a todos poderia abrigar, vestir, nutrir, como se fora investida do amor de uma verdadeira mãe. Agora estou com os nervos a flor da pele, a qualquer momento esse louco desbaratinado, furioso, sagaz, desesperado e acusador, pode voltar-se contra mim. As autoridades não tomam a mínima providência contra esse ser horrendo, que a qualquer momento pode resolver sequestrar-me e levar para outros locais mais aprazíveis – que eu não ouso sonhar existirem fora da minha janela, quem sabe queira levar-me para os campos da morte – onde fica rodeado de flores que exalam um doce perfume, nesse mundo que é só dele – onde o que se vai comer ou vestir amanhã, pouco importa -, esse louco está me contaminando com suas idéias deturpadas de mundo. Absurdo! Ignomínia! Desejo livrar-me desse monstro abjeto e sagaz, que ousa contrariar e ameaça destruir o meu lindo e maravilhoso mundo, embora, porém, as vezes também seja, violento, bárbaro, estúpido e real.

Parece que foi ouvido o meu clamor, um heróico cidadão, na noite passada, literalmente detonou com esse abjeto senhor, razão das minhas angustias e de todos os que comungam com minhas crenças. Vi tudo da minha janela, esse herói que manteve-se incógnito, por modéstia é claro, explodiu alguma coisa parecida com uma granada ou um petardo ou mesmo, talvez, uma bomba, isso a poucos metros do homem, com essa atitude, tão simples que eu nem imaginara tomá-la, fez com que ele, imediatamente após o amanhecer, desaparecesse, quando nasceu o novo dia, não havia sequer os rastros da passagem do homem-sombra pela minha janela e pelo meu mundo, exceto a dura constatação da incapacidade do ser humano de aceitar os que lhe são diferentes e o certeza de que continuamos cada vez mais e mais sendo vitimados pelo nosso próprio preconceito, esse sim, abjeto, mundano e cruel.

Brasília-DF, 22 de outu