Briga de rua

Um grito retumbante celebrou a vitória dos pomposos. A vitória tinha vindo apenas nos últimos minutos do jogo, uma virada sensacional, com dois gols do Paulo, conhecido como "o Máquina", o líder e melhor jogador dos pomposos. Ele tinha esse apelido por ser simplesmente o melhor em tudo que se propunha fazer, desde os esportes a artes, ele pintava como ninguém. Mauro, o irmão do Máquina, o mascote do time, fazia a sua dança para comemorar, uma dança que ele sempre fazia após uma vitória, algo bastante inocente. Era bastante querido pelos pomposos, a sua condição mental era o fator determinante para o time, ele tinha paralisia cerebral, mas se esforçava para tentar ser independente, ia sozinho aos jogos e adorava andar na rua, fazia pequenas compras pra casa, sempre que sua mãe precisava, para esses casos pedia dispensa da sempre presença preocupada do irmão. Agora ele estava lá, comemorando com seus amigos, sendo abraçado por todos, Paulo o colocou nos ombros e já se preparava para ir embora quando ouviu ser chamado pelo Cardozo, líder dos cascudinhos, que lhe apontou o disse:

- Vai ter volta, malandro!

Paulo fez aquele gesto característico de levantar a mão até a altura do rosto e baixa-la rapidamente, como quem pouco estava se importando com a ameaça, virou as costas e foi embora.

O grupo dos pomposos era constituído por fez membros, assim como o grupo dos cascudinhos, cada grupo formava uma espécie de irmandade, muito mais forte e leal do que uma simples amizade. Seus membros velavam um pelo outro. Os pomposos eram conhecidos como os meninos da rua de cima, enquanto os cascudinhos como os meninos da rua de baixo. Os pomposos voltavam radiantes para seus lares: camas confortáveis, almoço farto e quentinho na mesa, chuveiro elétrico, conforto e qualidade que faltava aos cascudinhos, que moravam em um agrupamento de casas, perto de um morro, casas mal construídas, de tijolos sem reboco, sem nenhuma espécie de conforto, água fria descendo pelo chuveiro, o que era sempre um tormento no inverno, comida escassa, uma vida dura que ninguém gostaria de levar, embora lhe faltem a possibilidade de escolha.

O Máquina chegou em casa erguendo o braço do irmão como se ele fosse o único e autêntico vencedor. Seu pai que tinha vindo do trabalho para o almoço soltou um gracejo, sua mãe acabava de sair da cozinha segurando um pano de pratos na mão, abriu os braços para receber o gostoso abraço vitorioso de Mauro. Paulo se sentia um pouco irrequieto enquanto tomava banho, as palavras do Cardozo ainda ecoavam na sua cabeça: "vai ter volta, malandro", ele nem imaginava o quão cruel essa ameaça iria dar, só esperava que tudo não passasse de um reles blefe de jogador. Essa não era a primeira ameaça dos meninos da rua de baixo, a cada fim de jogo perdido, elas eram renovadas, como se os meninos da rua de cima ao vencerem uma partida corroborassem com a sua pobreza, estivessem rindo da sua desgraça, coisa que não é verdade.

Fechou a porta de casa, trancou as janelas e se dirigia agora para a sede dos cascudinhos, tinha acabado de marcar uma reunião importante, queria a presença de todos. Milhopan agia como o líder do grupo, era o mais inteligente disparado e bolava planos em que todos os ouviam e respeitavam. Só não era considerado o líder do grupo frente aos pomposos devido a sua fragilidade física, coisa que o Cardozo tinha de sobra. Milhopan nunca se importou com isso, até preferia essa situação, ficava de fora da rota de fogo e podia agir nas sombras. Chegou na sede, ajeitou seus imóveis cabelos crespos e abriu a porta, onde todos estavam sentados e esperando as suas palavras.

A sede ficava em uma casa que outrora tinha sido de um vigia da linha do trem, Milhopan julgara ser o melhor lugar para uma sede e não estava enganado, o lugar sempre serviu a todos perfeitamente.

Os meninos se agitaram quando Milhopan entrou com seu ar intelectual, houve um pequeno burburinho entre os integrantes, não era normal uma reunião importante, a última que teve foi quando Tico, filho de um bombeiro alcoólatra tinha descoberto que a sede poderia ser demolida pela defesa civil, felizmente tudo não passou de boataria. Milhopan com as mãos pediu silêncio:

- Amigos, como todos bem sabem, hoje de manhã fomos derrotados novamente, como se não bastasse a derrota, aquele menino retardado, irmão do Máquina, tripudiou da nossa desgraça...

- O que é tripudiou ? - Perguntou Josafá, o mais jovem do grupo.

- Rir - respondeu Milhopan. - Continuando, ele riu da nossa derrota, e ainda teve aquela dancinha ridícula. Nós, os cascudinhos, não podemos baixar a cabeça mediante tão sórdido ato. Devemos nos vingar, dar uma lição naqueles meninos esnobes, eles devem aprender a nunca mais mexer com a gente!

Aplausos entre todos os meninos, eles esperavam por algo parecido a um bom tempo. O relacionamento com os meninos da rua de cima, nunca tinha sido bom, nos últimos tempos beirava o limite do tolerável, mas a xícara da tolerância tinha transbordado, era hora de colocar as coisas no seu devido lugar, os pingos nos "i". Cardozo com uma expressão sanguinária no rosto pediu silêncio e perguntou a Milhopan:

- E qual é o plano ?

- Muito simples...

Os filhos tinham acabado de chegar da aula, dona Dolores foi abraça-los, primeiro o Paulo e depois o Mauro, ela não tinha preferência de filho, era que Paulo se aproximou primeiro. Dolores tencionava fazer bife à milanesa para o almoço, tinha fritado metade dos bifes quando percebeu que tinha acabado a farinha de rosca, se dirigiu ao quarto dos garotos e perguntou quem se disponibilizaria para ir buscar um novo saco na padaria.Mauro se levantou prontamente e pediu para ir, coisa que sempre orgulhava sua mãe, "que menino esforçado", pensava Dolores. Mauro já tinha doze anos e há pelo menos três ia sozinho na rua, sempre que a mãe precisava de alguma coisa ele pedia para ir. Ele nunca se acomodou com a sua deficiência, queria sempre tentar ultrapassar os limites, nem sempre conseguia, mas nunca desistia.

Uma sensação estranha atacava o âmago de Paulo, ele estava tendo um pressentimento muito ruim desde que Mauro tinha saído, uma frase novamente veio a sua cabeça, mais uma vez ela: "vai ter volta, malandro", ele nunca tinha levado qualquer ameaça a sério e não queria levar essa também. Dolores viu a agitação do filhão e lhe disse para não se preocupar, Mauro é um menino esperto e sabia se virar muito bem sozinho.

Contou os centavos meticulosamente e o estendeu ao caixa da padaria, embora demorasse um pouco nas contas, fazia-as sempre com apuro, nunca tinha deixado nenhum vendedor escuso lhe enganar com o troco. Valmir, o caixa da padaria tentou lhe enganar no troco uma vez, Mauro ameaçou fazer um escândalo, Valmir com medo de perder a clientela se desculpou rapidamente e lhe deu um pirulito "bônus", o que acalmou os ânimos do garoto. Para voltar, ele passava por três quarteirões, se virava à direita, passava por um beco, atravessava mais dois quarteirões e chegava em casa. A padaria ficava a uns dez minutos da casa, nada muito preocupante para Mauro que gostava de andar. Quando ia passando pelo beco, viu uma bola vindo em sua direção, se abaixou para apanha-la, com o rabo do olho percebeu uma mão vindo para tampar a sua boca, o que lhe impediu de gritar, enquanto isso dois braços fortes o puxaram para dentro do beco.

- Como vamos espanca-lo ? - Perguntou Carrapato, o menino que tinha tapado a boca de Mauro.

- Não tem mistério, seguiremos as ordens de Milhopan. - Dissera Cardozo.

Mauro estava muito assustado, sempre vivera bastante protegido pelo irmão e pela sua família, pela primeira vez na vida estava desamparado, mas não iria chorar e se mostrar fraco, afinal, ele era o irmão do líder dos meninos da rua de cima, tinha que demonstrar garra e fibra, nenhum estrupício da rua de baixo iria fazê-lo perder isso. Conforme esse minuto passou, exatos sessenta segundos após ter sido capturado, já sabia que iria apanhar e que não poderia gritar, já que o tinham amordaçado. O seu medo lhe abandonou, dando lugar a uma coragem contagiante, estava se sentindo um Deus e nada poderia violar essa sensação, esses ordinários não compreenderiam, são muito obtusos para tal. Enquanto pensava sobre isso, um punho forte e carregado de maldade caiu sobre o seu estômago, o que lhe fez arquejar e gemer de dor, "Deus, como podem bater em um deficiente que não pode se defender, que seres humanos são..." Não pôde completar o pensamento, outro murro na barriga lhe roubou todo o ar, mais um agora nos braços e um pontapé na cintura, o brutamontes que segurava Mauro o deixou cair, Mauro tentou se levantar, mas quando apoiou a mão no chão levou um pisão maldoso, "por que não chutam a minha cara ? quero logo perder a consciência, não quero mais passar por esse suplício". Ele se permitiu esse pensamento fraco, pouco antes de se retratar, "não posso ser fraco, tenho que agüentar a tortura, me mostrar mais forte que eles". Cardozo sacou um canivete do bolso e ficou girando de um lado a outro, trocando de mão a todo instante. Mauro gelou e pensou em fechar os olhos para acordar em casa, acordar de um pesadelo horroroso. Cardozo se aproximou de Mauro, o segurou pelo queixo e colocou o canivete em sua garganta, para desespero de Carrapato que gesticulava, quando por fim resolveu falar:

- Cardozo, o chefe pediu apenas para feri-lo, não matá-lo.

- Não se preocupe Carra, é apenas uma pequena marca que vou fazer.

Ele colocou o canivete na bochecha de Mauro e deu um talho de oito centímetros, depois disso limpou o canivete na camisa de Mauro e o guardou no bolso.

Mauro continuava encolhido no chão, não sabia quantos minutos haviam passado, só queria que aquilo chegasse logo ao fim. Um gato saiu detrás de uma caixa de papelão, fitou os olhos no assustado rapaz, pesaroso, complacente com o seu sofrimento, uma pedra voou em direção ao gato que fugiu apressado, a pedra foi lançada por Cardozo, que fumava junto de Carrapato. Findo o cigarro, eles se levantaram e Cardozo anunciou que eles tinham que terminar logo o serviço, ele foi ao encontro de Mauro e lhe disse para nunca mais fazer o que tinha feito, que isso iria servir de lição. Cardozo lhe aplicou dois socos na têmpora, um de cada lado e finalizou com um chute muito bem dado no nariz. Mauro caiu desacordado, enquanto Cardozo e Carrapato com certeza do dever cumprido iam embora, deixando o corpo do garoto jogado em meio as caixas.

Osmar tinha tido um dia até aquele momento difícil, sua secretária, a verdadeira "faz tudo" não pôde ir ao trabalho, faringite, ele teve que trabalhar dobrado. Seus clientes não lhe deram folga, muito pelo contrário, estavam mais irrascíveis hoje, parece que tudo conspira contra justamente no dia que se apresenta como o pior, "leis de Murphy", pensava. Vinha voltando para casa, bastante apressado, tinha programado apenas alguns poucos minutos para o seu almoço, quando o seu celular tocou, ia retirando ele do bolso rapidamente quando acidentalmente o deixou cair no chão, "maldição" exclamou em voz alta. Se abaixou para apanha-lo, ouviu um barulho ao seu lado, olhou rapidamente assustado, pensou ter visto um vulto se arrastando para fora do beco.

Os minutos foram passando, Paulo não conseguia mais controlar a ansiedade, olhou novamente para o relógio, "vai ter volta, malandro". Parou de balançar as pernas, se levantou da cama, mordeu os lábios, se despediu rapidamente da mãe e desceu as escadas correndo, com coração aos saltos, "maldita frase, não deveria ficar tão impressionado com ela, vai ver que não tem nada demais, ele apenas se distraiu com alguma coisa, já aconteceu antes", ele ia pensando, "dessa vez eu sinto que não, tem algo diferente que não sei explicar". Chegou na portaria e quase atropelou seu pai que vinha chegando para o almoço, passou tão rápido que só conseguiu escutar a primeira parte da pergunta: "aonde vo...". Fez mentalmente o trajeto que seu irmão deveria ter feito, seguiu por esse caminho até que avistou um pequeno ajuntamento de pessoas, correu para lá e encontrou Mauro com o rosto todo ensangüentado e machucado. Ajoelhou-se ao seu lado:

- Mauro, o que aconteceu ? - fez a pergunta como força do hábito, já sabia a resposta, e aqueles cretinos iriam pagar caro pelo que fizeram.

Ele pegou seu irmão no colo, que se aninhou em seus braços e se virou em direção ao lar, quando o homem que tinha prestado socorro falou:

- Aonde você pensa que vai ? Eu já chamei a ambulância, ele precisa de cuidados.

- Ele é o meu irmão, eu o levarei para casa e nosso pai o levará ao hospital.

Paulo falou de um modo tão imperativo que o homem se calou, estava tendo um dia tão difícil que não arranjou forças para protestar. Acabou tendo que ficar sem almoçar. Voltando para o trabalho, passou numa padaria e comprou um salgado e um suco de laranja, aquilo tinha que ser o suficiente até o começo da noite.

Chegando em casa Paulo gritou pelo pai e pela mãe que vieram correndo ver qual era o motivo da gritaria.

- Jesus, Maria e José - falou Dolores, indo rapidamente as lágrimas.

- O que aconteceu com ele ? - O pai perguntou.

- Ele foi atropelado - Mentiu Paulo.

Ele não tinha como contar aos seus pais o real motivo, aquilo iria resultar em dezenas de perguntas, acabando no fim por impedir a sua vingança que estava planejando, queria que fosse bem feita e definitiva.

Passado o susto inicial, a família descia para pegar o carro e levar o garoto ao hospital, o almoço que esperasse.

No hospital tudo correu bem, foram feitos todos os procedimentos padrão, nada de anormal foi constatado dissera o médico, mas Mauro teria que passar a noite no hospital. Ficaria em observação, já que tinha levado algumas pancadas na cabeça, com a saúde não se pode brincar, tem sempre que estar prevenido. Após as boas novas Paulo e seu pai voltaram para casa, a mão decidiu ficar até de noite, não queria deixar o seu filho sozinho, desamparado. Durante o caminho de volta, Paulo começou a traçar um plano que colocaria em vigor assim que chegasse em casa. Seu pai estacionou o carro em frente ao prédio que moravam, Paulo abriu a porta, se despediu e subiu pelo elevador.

Chegando em casa, pegou o telefone e começou a discar para todos os pomposos, queria que todos o encontrassem na portaria do prédio. Aproveitou aquele pequeno intervalo para almoçar, comeu com uma pressa excessiva e passou novamente o seu plano mentalmente, ele esperava do fundo do coração que todos os seus amigos topassem. Olhou pela janela, faltavam dez minutos para a hora marcada quando Gaúcho atravessava a rua em direção ao prédio, era o primeiro que chegava, Máquina coçou o nariz, estalou os dedos, pegou a chave e saiu de casa.

Pouco a pouco os amigos foram chegando: Gaúcho gostava sempre de ser o primeiro a chegar, dizia que a pior coisa do mundo era fazer alguém ficar plantado esperando, nisso ele tinha total razão. Surfista chegou animado, vinha junto com Blau, eram vizinhos. Foram seguidos por: Ernesto, Matão, Chapado, Minduri e Chico. Cadeado tinha avisado que chegaria um pouco atrasado, mas que eles poderiam começar a reunião sem ele, ficaria sabendo do assunto quando chegasse e omitiria uma opinião. Máquina conduziu os amigos ap salão de festas do prédio, seria ali a reunião. Eles o seguiram e quando estavam todos acomodados. Máquina começou a falar:

- Hoje aconteceu um fato imperdoável, o meu irmão sofreu um atentado, os cascudinhos foram os responsáveis. - Houve um pequeno burburinho. - Acalmem-se todos. Mauro está bem, sofreu algumas escoriações e ficará em observação no hospital essa noite.

- Temos que nos vingar. - Falou Matão.

- Eles não podem ficar impunes! - Ernesto quase caiu da cadeira quando se levantou indignado para dar sua opinião.

Seguiram alguns protestos contra os meninos da rua de baixo. Máquina levantou a voz pedindo silêncio:

- Bem, o líder deles, o Cardozo tinha nos ameaçado após o término da partida de anteontem: "vai ter volta, malandro", eu ignorei essa ameaça embora sentisse que dessa vez era pra valer.

Nesse momento Cadeado acabava de chegar, Minduri lhe contava no pé do ouvido o que tinha acontecido. Máquina continuou:

- O que eu proponho é o seguinte para resolvermos essa briga de uma vez por todas: desafiaremos eles para um combate corpo a corpo, os vencedores ficariam com a posse do campo, decidindo se deixaria os outros jogarem ou não. Além do mais, seria uma forma de vingar o meu irmão. Quem estiver de acordo levanta a mão.

Todos levantaram se hesitação.

- Ótimo, agora eu preciso que dois de vocês me acompanhe, irei até aos cascudinhos e vou propor o desafio para amanhã à meia-noite, naquela quadra atrás da rua dos pinheiros, quem vem comigo ?

Matão e Cadeado se levantaram prontamente.

Os três desceram a rua que levava a casa de Cardozo, que para eles era o líder dos cascudinhos, chegaram em frente a casa e gritaram, ninguém atendeu. Jojoca, um dos cascudinhos estava passando pela rua quando foi abordado pelos três garotos, que lhe pediram informações sobre o paradeiro de Cardozo, o menino respondeu que ele devia estar na casa do Milhopan, que ficava a dos quarteirões dali, eles se apressaram. Chegando lá gritaram por Cardozo, que saiu da casa sem camisa, com um ar destemido e arrogante:

- O que vocês querem ?

- Eu queria era arrebentar a sua cara agora, covarde! - Esbravejou Máquina, que ia cerrando os punhos pronto para o combate.

Se não fosse Matão e Cadeado para o conter, a briga já teria começado ali mesmo.

- Só deixar seus amigos te soltarem que a gente resolve agora mesmo.

Milhopan e Maicon (que era um dos meninos da rua de baixo), apenas olhavam, enquanto Máquina recobrava o sangue frio e propunha algo:

- É o seguinte, amanhã meia-noite na quadra atrás da rua dos pinheiros, dez contra dez, luta corporal, sem nenhum tipo de arma, o vencedor fica de posse do campo, decidindo assim se deixa o outro jogar, o que acham ?

- Milhopan, Maicon e Cardozo conferenciaram por poucos minutos, Cardozo esboçou um sorriso de desdém e maldade, Milhopan falou por ele:

- Daqui a duas horas no máximo eu dou a nossa resposta.

Imediatamente após a saída dos três pomposos, Milhopan, Cardozo e Maicon contataram seus amigos, mais uma reunião urgente na sede, sem demora. Foi preciso pouco mais de uma hora para que todos estivessem presentes, com isso teve início a reunião. A reunião durou apenas quinze minutos, todos concordaram prontamente e não deixaram de sorrir e urrar com o elemento surpresa proposto pelo gênio do crime Milhopan, dessa vez os engomadinhos dos pomposos não tinham escapatória, iriam pagar, só que todos de uma só vez, não apenas um. A idéia fascinava, nenhum cascudinho ficaria imune a certeza da vitória e o êxtase que esse sentimento trazia.

Cadeado seguia a frente com Matão, vinham conversando sobre banalidades, mas no íntimo não deixavam de sentir um friozinho na barriga, a adrenalina da batalha próxima falava mais alto. Paulo vinha atrás, pensando em idos tempos, recuou até a idade de sete anos, quando era o saco de pancadas da escola, ninguém daquele tempo sequer imaginaria que aquele menino assustado e raquítico se tornaria forte, robusto, um líder nato. Tudo começou com um olho roxo, tinha levado um soco na hora da saída da escola, quando chegou em casa, sua mãe se revoltou, queria ir lá escola bater nos meninos que tinha feito aquilo com o seu filho, mas foi o pai que tinha dado a solução ideal, colocar o filho numa academia de luta. Sentou com seu filho e juntos analisaram qual seria a melhor, assistiram algumas fitas de demonstração, a que mais fascinou Paulo foi a de taekwondo, desde esses tempos nunca soube responder o motivo da atração. Não demorou muito para aprender os golpes iniciais, era um aluno dedicado e exemplar, seus coleguinhas aos poucos foram percebendo que Paulo estava se tornando um alvo inatingível. A certeza veio certo dia quando foi cercado por três garotos que lhe queriam roubar o mini-game, que ele vivia jogando na hora do recreio. Essa foi a única vez que Paulo precisou utilizar seus aprendizados de luta fora do tatame, não teve muitas dificuldades de derrubar os três oponentes, a partir desse momento, a sua começou aparecer e só cresceu ao longo dos anos. Agora ele pensava nos golpes aprendidos, era faixa preta e continuava treinando na academia três vezes por semana. Mentalmente pensou na melhor forma de abater os cascudinhos.

Chegaram ao salão de festas, comunicaram a todos sobre o que tinha sido decidido, todos estavam certos da aceitação do combate, os cascudinhos não iriam fugir, eles poderiam ser tudo, menos covardes. Máquina falou:

- Todos avisados, agora vamos ao hospital visitar meu irmão, está no horário de visitas, com isso ganharemos um ímpeto maior para amanhã.

No hospital subiram ao quarto de Mauro de dois em dois, ficaram dez minutos aproximadamente cada par, cada um voltava mais indignado que o outro. Paulo soube muito bem motivara sua tropa, usou uma tática bastante conhecida e usada por generais ao longo da história, utilizar-se de um fato sórdido para motivar os combatentes, ponto para ele. Ainda no quarto de Mauro, o último par formado por Paulo e Ernesto se despedia jurando vitória.

Chegou o grande dia que todos esperavam. No dia anterior, quando chegou aonde morava, Máquina recebeu o recado das mãos do porteiro, era uma mensagem curta e direta: "aceitamos o combate". Esperou um tempinho razoável e ligou para todos confirmando o desafio. O dia amanheceu nublado e permaneceu assim até a hora marcada.

Gaúcho, durante as últimas horas antes de partir para o desafio ficou contando os minutos numa agitação frenética, embora o fardo fosse muito monótono e demorado, pensava ele "quando queremos que o tempo ande depressa, ele conspira contra, parece que o relógio anda para trás". Ele nunca foi uma pessoa pontual, gostava sempre de chegar muitos minutos antes, pontualidade é chegar na hora exata, nem um pouco antes, nem um pouco depois, dessa vez não foi diferente, saiu de casa muitos minutos antes, como sempre tinha sido o primeiro a chegar.

Minduri tinha colocado o relógio para despertar cerca de trinta minutos antes do embate, tinha resolvido tirar um cochilo logo após a janta, pensava ele em reabastecer as energias já que a tarefa de logo mais seria bastante desgastante. Quando o relógio despertou, ele deu um pulo da cama, se vestiu rapidamente e saiu do quarto, para sua surpresa, se deparou com a irmã pequena que vinha saindo do banheiro. Ele lhe deu um abraço e falou baixinho: "torça por mim", e se dirigiu à porta de entrada para sair.

Blau era um rapaz bastante meticuloso, gostava de arrumar tudo com bastante esmero, era a pessoa que pensava nas mínimas coisas, coisas que seus amigos nunca pensariam, era o prático do grupo, como ele as vezes era chamado. Nesse dia, não foi diferente, ele estava arrumando uma caixinha com medicamentos, fazendo um "pequeno" kit de primeiros-socorros, tinha na caixinha: esparadrapo, gases, merthiolate, spray analgésico, aspirinas, álcool, água oxigenada, algodão e uma tesourinha sem pontas. Depois de se dar por satisfeito com a arrumação, ele se levantou, conferiu se estavam todos dormindo e saiu.

Surfista estava assistindo a um filme de gangues, nesse filme acontece um conflito entre dois líderes que culmina numa escalada da violência, muito sangue e mortes, algo muito parecido com o que ele imagina que poderá acontecer hoje, ele colocou as mãos no joelho e choramingou baixinho, estava muito assustado, "não deveria ter assistido ao filme", pensava. Depois de muito relutar, ele decidiu que não poderia abandonar seus amigos, calçou o tênis e saiu. Deu dois passos no corredor e ameaçou voltar para casa, mas uma voz fê-lo parar, era Blau, seu vizinho, vindo ao seu encontro para irem juntos ao lugar marcado.

Chapado sempre foi o mais louco e insensato dos meninos da rua de cima, sempre nas festas era o que mais bebia e arranjava confusão, fazia jus ao apelido. Sabia que não iria ao combate sóbrio, sua força consistia no álcool que corria em suas veias, era como motor de carro, precisava de combustível para detonar. Foi até ao seu armário de roupas, afastou todas as suas camisas e retirou do fundo uma garrafa de vodca, não hesitou e virou no gargalo mesmo, deu um suspiro de alívio e já sentia os braços e pernas mais fortes, estava a ponto de derrubar uma locomotiva. Rilhou os dentes, ajeitou o cabelo no espelho e saiu.

Ernesto contemplava um pôster do Bruce Lee que tinha no quarto, sempre fora fã de filmes de artes marciais, embora nunca tivesse feito qualquer uma. Pedia forças ao seu ídolo e tentava lembrar os melhores golpes do mestre, queria imitá-lo quando chegasse a hora, mas a ele faltava a rapidez e elasticidade, não conseguia erguer a perna acima da cintura de alguém da sua estatura, esse era um problema que queria e em seu imaginário iria conseguir ultrapassar. Na cozinha tinha preparado uma tigela com aveia para dar forças. Finda a refeição, escovou os dentes e saiu.

Matão, o mais alto e fisicamente forte dos pomposos era também o goleiro do time. Brincava com o seu canivete,, abria e fechava rapidamente, depois jogava por cima do corpo e o apanhava com a outra mão, sem olhar, ele demonstrava muita perícia e habilidade. Pensava em colocar o canivete escondido na meia e usá-lo se fosse necessário, embora soubesse que não eram permitidas armas, quem garantiria que os cascudinhos não estariam levando armas escondidas também ? Ele queria levar apenas como precaução. Colocou o canivete na meia, já ia saindo quando refletiu melhor: "se eles não levarem armas e me descobrirem com uma, iria prejudicar meus amigos, seria um trapaceiro, coisa que não sou". Deixou o canivete em casa e saiu.

Chico, de todos do grupo era o que tinha menos liberdade, seu pai marcava sempre uma hora bastante cedo para voltar das festas, tinha sempre que sair nas melhores horas, se ressentia muito com isso, mas sabia que com a maioridade iria ganhar bem mais liberdade, faltava pouco menos de dois anos. Abriu a porta do quarto, espiou o corredor e começou a descer as escadas, ouviu um ruído na cozinha e um resmungo, era o seu pai, ele não podia acreditar naquilo, precisava encontrar um jeito de sair de casa. Voltou ao seu quarto e resolveu empreender uma loucura, seu quarto ficava no segundo andar da casa, não era tão alto assim, poderia se pendurar com as duas mãos pela janela e cair em cima do gramado, tanto a cozinha quanto o quarto dos pais ficava do outro lado da casa, não tinha perigo de ouvirem. Caiu no chão com um baque surdo, mancou por alguns passos e foi de encontro aos amigos.

Cadeado rezava, era bastante religioso e ia todos os domingos na missa, não faltava a uma, tinha completado no mês passado a crista e se sentia um católico realizado. Rezou o Pai-nosso cinco vezes e a Ave-Maria dez, pediu apoio a todos os santos de que era devoto e já se tinha comprometido a confessar seus pecados logo pela manhã, caso tivesse condições físicas para tal. Acabada da reza, ele se levantou, beijou a foto de Nossa Senhora de Fátima e saiu.

Máquina se preparava com todo o cuidado, tinha colocado sua calça que usava nos treinos, ela lhe dava segurança e bastante flexibilidade para os chutes. Preparou o esparadrapo que colocou em alguns dedos e punhos, era o seu ritual sempre que tinha luta de exibição ou mudança de faixa, mas essa não era exibição, era para valer. Estava pronto para o combate, Olhou para seu irmão, que tinha recebido alta aquela tarde, foi até sua cama e beijou sua testa. Teve que segurar o choro, não era o momento de se sentir sensível, isso poderia ficar para depois. Olhou pela janela e viu seus amigos que estavam chegando, não se demorou muito, apenas o tempo de colocar uma fita vermelha na cabeça, claramente inspirado no Rambo, desceu. Cumprimentou a todos que já tinham chegado, só estavam faltando Cadeado e Chico que não tardaram a chegar. Todos se deram as mãos em uma roda, fizeram uma reza liderada pelo Cadeado e foram de encontro com a luta.

Sobe o pano para o ato final, a lua se esconde atrás de muitas nuvens, assim como quase todas as estrelas, elas não vão testemunhar, a barbárie, só marte se faz presente nesse derradeiro fim, coincidência ou não, o Deus da guerra assistirá de camarote. Alguns contadores de história dirão que tudo começou com uma dancinha inocente, outros mais conservadores vão se opor, eles acreditam que tudo começou com uma frase: "vai ter volta, malandro", mas em uma coisa todos concordam, o conflito foi desnecessário, exagero de ambas as partes. O silêncio dos trabalhadores deveria reinar absoluto na cidade, mas se ouve o som de alguns passos, os passos dos violadores do silêncio. A cidade dorme, dia seguinte é dia de labuta e aqueles jovens para atrapalhar. Eles andam em silêncio, de madrugada se sua menos, mas hoje o suor dará lugar ao sangue, que irá manchar o solo, maculando assim a paz daquela noite. Um relâmpago rasga o céu, era tudo o que eles não queriam, misturar esforço com sangue e chuva, o que sairia dessa mistura ? Algo bonito que não deve ser, só resta eles rezarem para que o céu tenha piedade e deixe o seu banho em suspensão, anunciando no fim o vencedor e lhe entregando a medalha, quando os perdedores não mais se levantarem.

A marcha dos pomposos chega ao seu final, eles olham o seu adversário já acomodado na quadra, alguns em pé treinando socos e chutes, alguns se alongando e apenas um pensativo, Milhopan. Parece que por alguns segundos ele se arrepende de véspera do que tinha programado, mas bem sabe que não tem mais volta, "Deus me ajude", ele pede, não pode abandonar o menino, foi assim que a igreja ensinou. Máquina abre o portão, os pomposos entram na quadra transformada em ringue, se colocam do outro lado do meio dela, não reprimem um olhar de ódio aos adversários, que respondem com risadinhas irônicas. Máquina se aquecia quando Cardozo se aproxima e diz que o combate vai começar em dez minutos, eles estando prontos ou não. Máquina não conseguiu se segurar, a válvula de ódio estava solta, não tinha como controlar, ele mirou no Cardozo nos olhos, que o encarou por alguns segundos, quando Máquina acertou um chute sensacional em seu rosto, teve início o conflito.

Os pomposos gritaram de felicidade, tinham conquistado a primeira vitória, os cascudinhos, olharam o mais forte do grupo tombar como um bonequinho de pano, por alguns segundos pensaram em fugir, mas o plano bolado por Milhopan dava confiança e se lançaram na luta. Matão versus Sapão, que conflito histórico, a briga dos "ão", Matão era muito mais forte, porém Sapão mais rápido, conseguia fugir dos golpes com uma perícia imensa, deixando seu adversário atordoado. Seguindo essa luta, mós temos um pequeno massacre, Cardozo tinha se levantado e Paulo brincava com ele, dando tapinhas humilhantes em seu rosto e lhe arriando as calças, Cardozo bufava de ódio, mas não conseguia acertar um golpe. Os demais embates seguiam rigorosamente empatados, foi quando aconteceram dois fatos marcantes dignos de nota. O primeiro foi a chegada da tão anunciada chuva, o que tornava as coisas mais complicadas para os nossos valentes combatentes. A segunda foi uma presença intrusa, um senhor com a calvície avançada e com seus escassos cabelos brancos, tinha perdido o sono e foi espiar a rua do alto da sua janela, num prédio que não ficava tão próximo do combate, ele notou ao longe uma agitação e, quando forçou a vista, percebeu que tinha alguns jovens se digladiando. Correu pro telefone e discou para a polícia, contando alarmado o que tinha visto. Enquanto o velho corria ao telefone, Paulo já tinha dominado Cardozo, ambos já estavam fora da quadra, Cardozo tinha tentado escapar quando Paulo o jogou no chão. Paulo o imobilizava, já tinha total controle quando uma pedra o acertou na cabeça, nunca se soube quem a tinha atirado, só que acertou o alvo em cheio, Paulo caiu inconsciente. Cardozo sabia que aquela era a hora exata e gritou para os seus companheiros:

- Jogo sujo!! Jogo sujo!! Jogo sujo!!

Na mesma hora, todos tiraram do esconderijo nas meias um canivete bastante afiado e, com precisão cirúrgica golpearam os atordoados nove pomposos que ainda restavam de pé, misturando assim morte, sangue e água da chuva, saíram correndo.

Sons de sirene, barulhentas, algumas pessoas de sono leve acordaram para olhar, esfregaram os olhos, tirar a remela. Paulo vinha acordando, se levanta do chão, ainda muito tonto tenta entender o que tinha acontecido, entra na quadra, ainda não percebe seus amigos caídos, chuta um canivete no chão, alguém em fuga sem querer deixou cair, ele se abaixa e pega. Policiais descem agora de suas viaturas, correm em direção a quadra. Paulo ainda tonto fica dando estocadas com o canivete em inimigos imaginários, um golpe pelas costas o derruba no chão, deixa cair o canivete, o policial coloca as algemas, dá voz de prisão e leva Paulo embora, onde foi sentenciado por nove homicídios, irá apodrecer o resto da vida na cadeia.