O Guitarrista

O Guitarrista

O guitarrista se prostrou com seu instrumento às 5 para às 7 da manhã. Já havia tomado dois cafés. Fora dormir apreensivo na véspera, pois uma balbúrdia corria nas ruas e as pessoas diziam que ia faltar energia elétrica. Como a TV estava quebrada, foi impossível conferir os boatos.

Às 7 da manhã, e para sua satisfação, o amplificador fez o estalido de sempre ao ser ligado. Do seu andar podia ouvir gritos na calçada e algumas sirenes. “A esta hora?!” pensou.

Deu pela falta dos óculos mas não se incomodou, pois já sabia aquela partitura de trás pra frente.

- Dó, ré, fá sustenido, si bemol... turu-tutu-tã-tá-tã – começou ele - turu-tutu-tã-tá-tã, turu-tutu-tã-tá-tã, turu-tutu-tã-tá-tã, turu-tutu-tã-tá-tã.. etc.

Mais ou menos às 9 e 15, depois de mais dois cafés, teve de interromper o estudo a contragosto, pois o som de uma explosão, próxima dali, causou-lhe um baita susto.

- Turu-tutu-tã-...o que!?

Ainda mais contrafeito, deixou o instrumento sobre o sofá e dirigiu-se à janela. Gritos, sirenes, estampidos.

- “Que chateação” – sibilou, fechando o vidro.

Logo que deu as costas para a janela, teve a impressão de um vulto passando por ela. “Porcaria, as pessoas não tem a menor educação e ficam jogando sacos de lixo no pátio do prédio”.

Sentou-se no sofá, respirou fundo e deu continuidade.

- Turu-tutu-tã-tá-tã, turu-tutu-tã-tá-tã... etc.

Dez e quinze e o barulho de outra explosão, seguido de mais gritos e mais sirenes torrou-lhe definitivamente a paciência e quase o fez perder uma idéia genial, concebida segundos antes.

- Turu-tutu-tã-tá-tã... tá-tá, tã-tã, tá-tá, turum-tá... é isso! – exclamou exultante e indo anotar mas já logo desistindo, pois não achava os óculos. Passou, então, a repetir o exercício - tá-tá, tã-tã, tá-tá, turum-tá! – e com variações, o que o deixava ainda mais satisfeito - turum-tá, turum-tá, tá-tá, tã-tã, etc.

Perto das onze horas, e do quinto café, um bando de helicópteros, pois não era apenas um, sobrevoava o espaço aéreo perto de sua residência e fazia um barulho infernal. Esse fato o deixou alarmado, pois ouviu dizer de um caso, não sabia onde, em que helicópteros estavam caindo. “Vai ser um transtorno...”, pensou, “que barulheira, melhor usar os fones de ouvido”. E, ao se abaixar para pegar os fones, teve de novo a impressão de um vulto passando pela janela. “As pessoas não tem a menor educação. Jogar lixo do décimo andar (o guitarrista mora no oitavo) onde já se viu?”

- Turum-tá, tá-tá, tã-tã – prosseguiu ele, fazendo o exercí- cio também com o polegar e o indicador, já que a palheta, coisa de, 15 minutos atrás, caiu embaixo do sofá, e como estava sem óculos...

Seu estudo melhorou muito graças aos fones, embora estes, por razões técnicas, não conseguem transmitir a timbragem correta. “Meu equipamento está ultrapassado”, lamentou, desanimado. Mas percebeu que não podia tirar os fones, pois quando tirava, para coçar a orelha, por exemplo, ouvia gritos altíssimos no andar de cima, no debaixo e no corredor de seu próprio andar. Gritos de mulheres e crianças. “Vizinhos!!”, exclamou baixinho, com amargura. Muitos gritos. Sem falar nas explosões, nos helicópteros e nas sirenes.

- Turum-tá, turum-tá, tá-tá, tã-tã, etc.

Perto das treze horas e do sexto café, resolveu fechar a cortina, devido a intensa impressão de vultos e vultos despencando do andar de cima e passando pela sua janela. “Amanhã vou reclamar com o sindico”. Foi, contudo, impossível deixar de reparar no meio da avenida, logo na hora que fechou a cortina, um sem número de viaturas vermelhas, que faziam igualmente um barulho insuportável e fechavam o trânsito.

- Turum-tá, turum-tá, tá-tá, tã-tã, etc. – continuou ele, lastimando a falta da palheta, “mas”, suspirou, “a

vida é assim mesmo”, e como estava determinado a praticar até às 13:30, franziu o cenho e não se deixou perturbar por isso.

- Tiros? – falou consigo, quando tirou os fones. E logo colocou os fones do disc-man e se dirigiu para a padaria, pois era hora de almoçar. Sentia-se um pouco agitado, talvez fossem os cafés.

A portaria estava às moscas, a porta aberta e a grade escancarada. Restava o CD do Paraguassu, uma boa pedida para o intervalo, e, determinado, logo que voltasse escreveria uma reclamação para o síndico.

Àquela hora, normalmente, a padaria fervilha de gente mas hoje não tinha vivalma, exceto um atendente de branco, sendo sua tez mais branca que seus trajes e movendo os lábios sem sair som algum, embora, como o guitarrista estivesse de fones, seria impossível afirmar. Teve, portanto, a delicadeza de tirar os fones para ouvir o atendente, que com muita dificuldade gesticulava com as mãos, apontando para não se sabe onde e dizendo:

- Lá...lá...

O guitarrista, que ia mesmo pedir duas empadinhas e um guaraná, vendo o atendente repetir a mesma coisa teve um estalo e exclamou:

- Lá! É lógico! Dó, ré, fá sustenido, si bemol...Lá! Turum-tá, tá-tá, tã-tã, ta! Fantástico. Muito obrigado! – exclamou, voltando em seguida para casa esquecendo, porém, de almoçar.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 21/10/2009
Reeditado em 15/02/2013
Código do texto: T1878808
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