Um homem de verdade ou a queda de Joseph K.
Ele vivia uma realidade particular, uma inadequação que foi desfigurando o cotidiano. Quando jovem enamorou-se da fantasia, e entre fabulações e jogos, lentamente, construiu uma ficção que foi substituindo a realidade.
Começou com as idealizações lidas nas ficções, logo depois a Ilíada apresentou o arquétipo do herói e logo soube o que queria ser. Tudo o que estudou obedecia a um minucioso plano, artes, retórica, negócios; a realidade foi sendo construída por suas intervenções e a direção era a obra que a sua personagem dava vida, mesmo enquanto amava, ainda quando dormia.
A sua disciplina foi agregando credibilidade ao herói que encarnava, ora era o negociante paciente e brilhante, o amigo devotado, o antagonista implacável, uma idealização vívida numa ficção surreal. Seu projeto era executado com tamanha paixão que era impossível o fracasso.
A infância de fabulações se transformou na alegoria de uma adolescência festiva, a realidade era o cenário para suas fantasias de conseqüências rasas.
Criou uma personagem para representar a si mesmo, suas reações eram contidas na consciência, assimiladas para então emergir na superfície da personagem, era o amigo leal, o conselheiro prudente, o estudante criativo, o empreendedor arrojado e dentre todas estas faces perdia-se uma consciência apartada de si, envolvida nas distancias que deixava o íntimo segregado de seu espírito, de sua história, como causalidade interrompida.
Não era uma fraude, era a verdade sendo transmutada ao sabor de sua vontade, adequando-o de acordo com as circunstancias. Havia exageros, superestima, e todos os eufemismos para atenuar a falsidade das mentiras defensivas.
Mentiu uma infância e criou em torno de si uma mitomania. Seguiu mentindo e dando anima para a personagem que não conhecia derrota e cooptava a todos com as surpresas previsíveis.
Foi neste período que percebeu o quanto as pessoas escondiam suas inseguranças encenando clichês e esta observação deu início a um repertório de inovações, todos os seus atos eram grandiloqüentes, suas intervenções eram performances, raramente falava usando o discurso direto pronunciava-se por epígrafes e provérbios que eram moldados com habilidade real para pavimentar as reações projetadas.
Mentiu amor quando encontrou companhia adequada, mentiu humildade para ser ainda mais soberbo, mentiu bondade para isentar-se em atos ainda mais repugnantes, mentiu lealdade para ser um traidor atroz, mentindo e omitindo foi cedendo a sombra que sufocava o terror que o atingia.
Passado muito tempo, todas as mentiras sacralizadas não mascaravam o desconforto do sorriso que chorava, da lágrima que sorria e do anti herói que o seduzia toda manhã no espelho. Quando já não comportava mais toda a força da angústia de viver sob o jugo da mentira deu para ter sonhos recorrentes; então mentiu e foi a uma terapia junguiana onde o psicanalista pedia sempre que ele contasse e interpretasse o seu sonho.
Era uma mistura de Fausto e Mercador de Veneza, mas no seu sonho o Demônio oferecia a imortalidade gratuitamente e antes que pudesse responder era despertado por uma angustia que confinava seu terror numa insônia depressiva.
Começou a tomar remédios mentindo que era para se curar, as consultas tornaram-se freqüentes e menos espaçadas, a mulher para quem mentia um casamento passou a lhe mentir preocupação, o filho para quem mentia atenção, passou a lhe mentir cuidados e o analista aumentou o preço das sessões.
Passou a mentir fidelidade com uma executiva de sua empresa, mentiu caridade ao criar uma fundação para auxiliar crianças desamparadas, mentiu tristeza quando o filho faleceu num desastre de automóvel, mentiu dignidade ao omitir a cumplicidade da infidelidade mútua que arrasou seu casamento, mentiu caráter ao reconhecer os desvios de sua empresa, devorado pelas displicências fiscais e negligencia administrativas que culminaram numa discreta falência.
Durante todo o processo de desordem seguiu freqüentando a terapia. A imagem sonhada jamais avançou da oferta do Demônio, porém nesta sessão seu analista informou que a mentira da analise estava exposta, passado tanto tempo era necessário sentir-se livre para a verdade, foi desta forma que ele encerrou a sua atenção profissional e o liberou do retorno, não haveria mais sessões. A resposta para o sonho não estava ali.
A chegada da noite é uma confusão de sentidos e direção, viver resultara numa mentira e morrer era impossível diante da gratuita imortalidade.
Seu epílogo foi um ato de lucidez, com um tiro na têmpora direita fechou o pacto e aceitou a imortalidade.