O pequeno tigre

Quando eu era pequeno, ou melhor, lembro-me hoje que, quando eu era pequeno, todos os anos vinha três ou quatro vezes um circo ou outro à vila onde então estudava a educação primária. Mas também sei que a memória me engana e isso não foi bem assim, porque nem eu contei as vezes que assisti ao espectáculo nem os anos eram todos iguais, como acreditávamos daquela os rapazes, que, contudo, pensávamos, e pensam, como tem que ser, estarmos, e estarem, mais espertos que os reformados. Bom, a carão da escola grande, a dos pequenos é mais para o centro da vila, havia naquela altura um terreno baldio, hoje em obras, que sabe-se lá quando acabarão, importante é obrar, o de somenos é se as obras são necessárias. Este terreno é que era aproveitado pelas companhias, normalmente estrangeiras, quando menos pelo nome, para montarem a carpa. O resto dos dias utilizavam-no os cativos de arredor para jogarem à bola e mais pela comissão de festas, o último dos cinco ou seis dias de festa, para queimarem simbolicamente o monumento mais conhecido da vila, uma vez que não podiam queimar simbolicamente o de verdade, que está a marcar um dos centros da povoação. Durante o recreio, o tempo de lazer ou a hora de educação física, juntávamo-nos as crianças para vigiarmos a evolução dos trabalhos. Na casa, depois da escola, os nossos pais não podiam ou não queriam recusar-se à visita, afinal, são eles que mais desfrutavam, porque os cativos não apenas éramos ainda cativos, como, graças a quem for, não conhecíamos, pelo normal, o que outros conheceram e muitos conhecem, infelizmente, fome, exploração, abuso,... Mas já estou aqui a semelhar um palhaço triste e não quero.

O conto é que, numa destas visitas, um filhote de tigre escapou do circo pela noite, a noite prévia à sua marcha, e foi criado, em segredo, por meus tios de Quembre, minto, por meus primos de Quembre, e mais por mim. Também ficou em Carral o director do circo, que colhera uma indigestão de lacão (pata dianteira do porco). A compensar a perda, o meu companheiro de mesa nas aulas, estávamos colocados por ordem alfabética, desapareceu da nossa vista aquela mesma noite. E ontem, vinte anos depois, as lembranças voltaram com a chegada à aldeia onde agora moro um circo que levava o mesmo nome daquele outro.

Devo dizer-lhes que sou crego (clérigo) e exerço numa paróquia rural. Aquele dia, às seis da tarde, fechei a igreja, a reitoria mais a cancela do adro, e fui passeando até à escola onde estudam os filhos de minha irmã, isto é, os meus sobrinhos. Minha irmã leva-me três anos, é uma moça separada, e trabalha de professora na Universidade, onde a conheci quando, no meu primeiro destino depois de ordenado, estive de auxiliar do capelão oficial. Trabalhava todo o dia, por isso era eu que me encarregava dos meus sobrinhos, dous irmãos gémeos de cinco anos, aos que levava à escola e recolhia, também lhes preparava o almoço, o jantar, a ceia, educava-os na religião aos domingos, ensinava-lhes truques ao bilhar, que fossem aprendendo, comprava-lhes lambetadas (doces), e, quando lhe quadrava, trazia-os ao circo, como iria ser o caso ontem, mas eu não o sabia. Por isso, não mudei a sotaina e só carreguei um pequeno bolso com a merenda dos rapazes. A igreja, o mesmo que na minha terra, está no campo da feira, onde, os dias que não há feira, os meninos armam os seus jogos, um descanso para os pais, ou para os tios, ter os rapazes à mão. Quando entrei na rua que aporta à escola, vi, no estacionamento, a carpa do circo, e, de passagem, li o nome, porque me ficava no caminho dos olhos, e o coração começou a bater com força. Era o circo que estivera ali, na minha terra, o dia que desaparecera aquele moço de que vos falei. Acelerei o passo, abrindo caminho entre os pais e filhos que se encaminhavam à função das seis e meia, entre os berros dos pequenos a tirarem das calças ou das saias dos progenitores. No meu caso, não foi necessário. Nem sequer lhes perguntei se queriam ir. Homem, se quadra perguntei, e se quadra berravam e tiravam-me da batina, mas o que empurrava por mim era mais forte e afogava a consciência dos meus actos e a capacidade auditiva das minhas orelhas.

Coloquei-me à fila, que foi avançando até que, na altura das gaiolas dos tigres, tinha que ser ali, reparei num indivíduo vestido como se fosse o director do circo. Fixei-o bem, e houve-me de dar um ataque cardíaco. Ali o estava. Vi-o. Era ele, os anos semelhavam não lhe terem passado muito pelo rosto, para além daquela cicatriz na bochecha esquerda, recordação, como me contou, da sua época de domador frustrado, do escasso pêlo recolhido à volta das orelhas, a falta dissimulada pelo chapéu preto e alto, e mais pelo fino bigode postiço a meio caminho entre o nariz e a boca. Mas também era verdade que, na altura da sua desaparição, levava repetidos quatro cursos e estava a atravessar o pior da adolescência. Aí decidi encomendar-lhe os meus à mãe que tinha diante de mim, sem direito a apelar, deste jeito, poupava o dinheiro da entrada, e fui ter com o meu irmão. À partida, não me reconheceu. Normal, tinha onze anos a última vez que nos víramos. Mas sempre imitava-lhe muito a nosso pai e a surpresa nasceu, pela distância, mais pela sotaina. Saudamo-nos, apresentei-lhe os meus sobrinhos, que o eram mais dele que meus, e falei-lhe da minha vida, depois ele falou-me da sua. Contei-lhe como os nossos pais não superaram o seu desaparecimento, como o pai marchara de voluntário para a legião estrangeira, como a nai encetara uma carreira como encenadora de teatro, como a mim me criaram os tios de Quembre, como criáramos o filhote de tigre que escapara daquele circo, contei-lhe o que já lhes contei a vocês, e ainda mais, e contei-lhe como a nossa prima Maria, que ficara na casa, porque estava a estudar para cabeleireira, em Quembre e mais com o tigre, depois que o tio fora transferido para fora, me telefonava todas as semanas para me contar as coitas do que hoje era um tigre adulto, que queria vendê-lo, e, homem, disse-lhe, podedes comprar-lho vós.

Pela sua vez, meu irmão regalou-me três entradas, porém, tarde demais, porque a comendadeira já pagara e aguardava o começo do espectáculo, repartindo a sua atenção entre a pronúncia das palavras de ordem “se o espectáculo não começar, o público vai marchar”, e uma olhada furibunda dedicada a mim, mal lhe ensinei as três entradas com um sorriso. Ao passo que cumpria os últimos trâmites dum director antes da função, meu irmão continuou com a história dos vinte anos da nossa separação:

- Pois aquela noite- disse, em português, sim, mas com um sotaque indefinido, mas muito marcado-como sabes, saímos os colegas mais eu de bória (celebração) pela vila. Às quatro da manhã, despedimo-nos e eu, por não voltar para a casa no estado que me achava, fui dormir a mona onde estava o circo. Bom, isto é o que suponho, porque não me lembra nadinha. Ao outro dia, não sei, ou se quadra, aos dous dias, acordei pela estrada fora, acarinhado pela peleja duma tigre, que deve ser a que perdeu o filhote. O pessoal deste circo era assim, deixavam as gaiolas das bestas abertas e qualquer um podia abrir e ceivá-los (libertá-los), ou cousas piores, envenená-los, por exemplo. Meio paralisado pelo medo, fiquei sem me mover até que, três horas depois, chegámos ao nosso destino. Eu bem lhes quis explicar o que se passara, mas o único que falava português ingressara doente no hospital. As pessoas da terra não acreditaram em mim, pensavam que fazia parte da promoção do circo, não sabiam onde a nossa terra ficasse nem que existisse. Afinal, ingressei de aprendiz no circo, e quando aprendi inglês (tu bem sabes que sempre reprovava esta matéria), tinha um trabalho relativamente estável e humildemente bem pagado, aqueles é que foram tempos, ideal para conhecer o mundo, e namorava com a malabarista. Decidi ficar, primeiro fui ajudante do mago, e mesmo o substitui por ocasiões. Provei fortuna noutros circos e noutros trabalhos, mas, afinal, voltaram a chamar-me. Os circos ambulantes atravessam uma crise muito dura. Estás a ver, não damos enchido a carpa nem que paguemos a assistência. Por isso tampouco te posso devolver o dinheiro das entradas que essa senhora pagou. Quanto ao tigre, a ele devo-lhe, em parte, a minha vida.

- Diz melhor ao revés. Ele deve-te a ti a dele.

- Seja como for. Os domadores estão a precisar de animais, mas tenho que ver como terminamos a jornada. Agora, tenho que fazer o espectáculo. Depois, continuamos a falar. Tens que me contar mais cousas, como te vai a vida, donde saíram estes sobrinhos, se não tivemos mais irmãos, e tu és...- enquanto isto dizia, ia entrando na pista e eu fui ter com os meus sobrinhos, que me tiveram de fazer sítio entre eles, porque não queria ficar a carão de minha amiga.

- Minhas donas e meus senhores,...- começou meu irmão.

Alberto Louçám
Enviado por Alberto Louçám em 19/10/2009
Reeditado em 21/05/2011
Código do texto: T1875393
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