Um violino

Um violino

Moravam em uma olaria à beira do rio. A casa ficava sobre uma pequena elevação, a alguns metros das barrancas enfileiradas por maricás e chorões. Muitas pessoas, todos conhecidos do Vovô Bino—aos quais Oma chamava de “das Fressen Geselschaft”—de pescarias e de tardes, em um jogo de cartas chamado rabuja, regadas a spritzbier ou malzbier caseiras e a muita lingüiça, comprada na bodega mais próxima, ou presente de algum amigo que carneara um porco, enrolada em papel úmido de pão ou de jornal, assada nas brasas do fogão à lenha.

Vovô Bino, nosso bisavô, arranjava compromissos gostosos para tirá-lo de casa, e , principalmente, das reclamações constantes de Oma, nossa bisavó. Era uma espécie de Rip van Winckle : todos, exceto sua esposa, o adoravam, com seus olhos azuis. Fazia roncadores de couro para as crianças da redondeza e distribuía silêncios amigos para quem, como ele, sofria com uma mulher mandona. Conversava sobre política, bilhetes premiados e do que faria quando ganhasse a grande bolada com os que iam chegando para pescar. Oferecia-lhes água fresquinha do poço, se estivessem sedentos. Evitava ir para casa: perguntavam-lhe o que comera; com quem perdera tempo, trocando idéias ocas, ao invés de trabalhar. Gostaria de cobrir as orelhas quando ouvia Oma falar “O trabalho enobrece”.

Rip fugira da mulher e fora para as matas, nas montanhas próximas à sua morada, com um mosquete para caçar esquilos, e levara consigo seu cachorro sonolento, o qual atiçava, também, a ira de sua mulher. Vovô Bino não ganhara permissão para ter um cão que fugisse, com ele, encolhido quando sua Frau ralhasse com ele, gritando, “O, Du ein Esel, alt Camel!” Um dia, Rip encontrou uns duendes que lhe deram uma estranha e deliciosa bebida que o fez dormir por vinte anos .

Vovô Bino, que nos contou as aventuras de Rip, misturando-as a dos indígenas de Winnetou de Karl May, os quais tornaram-se—na versão de Vovô Bino—responsáveis pela dormideira de Rip. Repetia que se alguém—quem sabe os Weinmann daquela gasosa extraordinária, lembrava cada vez que mencionava o sono mágico de seu herói—conseguisse a fórmula da tal bebida ficaria rico: muita gente gostaria de acordar só duas décadas mais tarde. Não explicava nada, mas , apesar de sermos pequenas, percebíamos suas intenções.

Em manhãs sem vento e sol, catava minhocas junto aos pés de milho e feijão e as depositava em uma lata enferrujada de gordura de coco, depois juntava garrafas enroladas com linhas e anzóis e saía em busca do grande grumatá—o qual, dizia, sempre escapava de seu anzol, por pouco.

Muitos anos depois, quando submetido a uma cirurgia de próstata , arranchou-se, por escolha própria, durante quase cem dias no hospital, protegido pela rigidez, daquele tempo, quanto ao horário de visitas. Lá, Freulein Mathilde, sua enfermeira favorita, sentava-se ao pé da cama e escutava, quietinha, aventuras com o grande grumatá: “Um dia, naquela coisa imóvel e abafada que antecede tormentas de verão, lá estava eu com meus amigos Bruder e Schreck, entre os maricás da margem do rio, quando ouvimos ruídos que vinham em nossa direção. A água espelhada quebrava-se em ondas. Aí, fui arrastado para a água pelo fio da vara. Bruder gritava, ‘Mein Gott, é o grumatá! Passou por meus tamancos e lá se foi!’ Levou consigo meu caniço e um dos meus tamancos. Acredite, Freulein Mathilde, cheguei a ficar com suas escamas em minhas mãos.”

Das muitas janelas e varandas da casa, Oma podia inspecionar quem chegava para pescar, ou, para um convescote à beira do rio. Geralmente, descia para cumprimentar, disfarçando, aí, sua ansiedade em estabelecer uma espécie de interrogatório: "Você mora por aqui ? Mora na Grosse Strasse ? Spiegelberg ? É Musterreiter ?" E assim ia.

Um dia, era uma Sexta-Feira Santa, chegaram à beira do rio, numa aranha puxada por um cavalo belga, um homem alto, de farta cabeleira, uma senhora idosa e uma menina franzina. Apearam . O homem amarrou o cavalo a um maricá . A menina, em um vestido de riscado, meias grossas e tamancos com sola de madeira, ia pulando à frente. Oma assistia à chegada dessa família debruçada sobre uma almofada de seda preta puída, com flores coloridas de crochê , no peitoril do janelão da sala. Nunca os vira antes, apesar de a cerração e a distância prejudicarem seu julgamento. Colocou um xale de restos de lã, tricotado em noites de inverno com sobras de novelos, para proteger-se da aragem fria daquela manhã de abril, e desceu a pequena escadaria. Aproximou-se dos visitantes. "Guten Morgen, ops, bom-dia ! Moro aqui, naquela casa", apontou para o alto da pequena colina.. "Se vocês quiserem alguma coisa, um chá quentinho, ou lavar as mãos, ir ao banheiro, não façam cerimônia."

" Besten Dank", respondeu a senhora idosa, cujo nome era Bárbara. "Talvez precisaremos lavar as mãos, quando estivermos prontos. E minha filha está com sede".

"Vieram pescar, vejo que trazem um caniço ?” perguntou Oma e informou-os: “Neste ponto do rio só há peixes pequenos, lambaris, mandinhos—aliás terríveis, porque têm uns espinhos no lombo que espetam os dedos da gente—e cascudos. Se vocês forem adiante, a um quilômetro e meio daqui, poderão até encontrar um dourado."

" Não faz mal se os peixes forem pequenos” respondeu a senhora idosa. “Estamos aqui para buscar peixes para uma simpatia. Só precisamos de um peixinho e tem que ser antes do meio dia. É que Bella, minha filhinha mais nova, é muito fraquinha dos pulmões."

Nisso, o homem da farta cabeleira avisava que pescara o peixe. Dona Bárbara chamou Bella. Abriu a boca do peixe e a menina, então, fungou, fortemente, e cuspiu, diretamente, para dentro da boca do peixe o muco esverdeado com raias de sangue e a saliva de sua boca. Seu irmão fechou a boca do lambari e jogou-o de volta às águas, enquanto sua mãe murmurava frases mágicas em húngaro. Oma testemunhava tudo. Terminado o ritual, convidou-os para ir até a casa.

Abriu a porta principal e convidou-os a sentar na varanda envidraçada. Foi à cozinha e, de lá, trouxe uma bandeja, guarnecida por um guardanapo de crochê, com uma jarrinha de suco de uva, um copo de vidro verde, três xícaras e um bule esmaltado azul pintado de flores amarelas, do qual fumegava aromas de chá de capim cidró, funcho e folhas de laranjeira. Havia, também, um açucareiro meio lascado combinando com o bule e algumas colherinhas. Serviu o suco para Bella e chá para os adultos. Do grande arco, com um reposteiro de brocado creme, podia-se ver a sala de estar: cadeiras e um sofá de madeira torneada, com assentos e espaldares de couro claro trançado, mesinhas e alguns suportes escuros e altos, com paisagens e flores vibrantes pintadas no painel superior, em retângulo, apoiando vasos de cobre com samambaias, avencas, babosas e mimos-de-vênus.

Frente a uma janela lateral, havia uma mesa com uma cítara. Marius indagou a Oma: “Quem toca este instrumento ?”. Ela respondeu que era Titia, ao que ele, entusiasmado, perguntou se Titia poderia dar-lhe a honra de tocar uma ária. Oma chamou Titia, que chegou à varanda com um bastidor, linhas de seda verdes, azuis, marrons e vermelhas ao pescoço e uma agulha com fios verdes terminando uma folha no bordado. Apresentou-a aos visitantes e diz-lhe que o Sr. Marius gostaria de ouvi-la tocar alguma coisa na cítara. Imediatamente, Titia, surpresa, retrucou:

”Senhor, hoje é Karfreitag , dia de muito respeito pela morte de Cristo, na cruz. Temos que guardar silêncio.” Marius insistiu que gostava tanto de cítara e que um hino poderia ser uma respeitosa homenagem ao sacrifício feito por Ele . Oma, Bárbara e Bella concordaram. E Titia largou o bordado sobre um aparador enfeitado por um trilho de tricô com uma barra de renda sob um vaso de alpaca com um buquê de flores de macela. Sentou-se à mesa, colocou a dedeira de chifre no dedo e tocou Castelo forte é nosso Deus.

Ao final, como era um dia santo, ninguém aplaudiu, mas Bárbara, com seu lenço de cambraia, secava lágrimas de emoção. Marius cumprimentou-a pela virtuosidade e tomou-lhe a mão, pousando, nos dedos de Titia, um beijo leve e cavalheiresco. Titia enrubesceu e baixou o rosto, alheia aos galanteios:

"Parecia uma imagem dos Nibelungos, iluminada pela luz da janela. Uma deusa germânica da música. Jamais esquecerei estes momentos."

E nunca esqueceu, mesmo. Bella melhorou um pouco da tosse, mas o peixinho, pensávamos enquanto Titia, décadas mais tarde, nos contava a estória do começo de seu romance com Marius, por certo morrera ou afogado pelo peso das cuspidas pegajosas e vermelhentas de Bella, ou pela mesma fraqueza que consumia a menina. Achávamos que deveria ter sido de fraqueza: como poderia nadar na correnteza marrom do Rio dos Sinos, desviando-se dos espinhos dos maricás com a barriga pesada com o ranho doente de Bella? Era óbvio que fora perdendo suas forças depois daquela sexta-feira.

Bella era muito bonita, branca como um biscuit, na descrição de Titia. "Era frágil e não queria comer verduras, gulash, nem leite. Não gostava de nada. Só de bifes." Aí, olhava para nós, especialmente para minha irmã, com um azul de espetar-nos a alma ."Pois é, Dona Bárbara tinha muitos outros filhos e poucos recursos. Quando ela e o marido vieram para o Brasil, deixaram quase tudo na Velha Europa."

Durante muito tempo acreditamos que esta Europa era o nome de uma senhora muito idosa que morava longe, porque, apesar de sabermos, pelo atlas muito antigo e folheado de Vovô Bino, que Europa era um nome de lugar, lá do outro lado do mar, entre as conhecidas de Vovó e Titia havia algumas chamadas de Islândia, Reno, Danúbia, Roma. Sem falar do velho Brasil, um professor falecido há muito e personagem de várias estórias, lá de Cima da Serra. Além disso, nunca falavam em Europa, só, Velha Europa.

"Bem, o que estava na mesa todos eram obrigados a comer, gostassem ou não. Bella, não. Ela ficava mais branquinha ainda e quase desmaiava, tentando engolir pedaços de batata doce, nabo, moranga, quiabo e aipim. E começava a tossir até ficar roxinha. Foi ficando cada vez mais magrinha e , num desses almoços de gulash bem grosso, para dar substância à refeição, Bella engasgou-se e, nos espasmos da tosse, cobriu seu prato de encarnado. Foi um susto só. Aí, foram até o rio fazer a simpatia. A menina ganhou um viço novo: a febre de todas as tardinhas sumiu por um tempo e até brincava.

Uma noite, no meio do inverno, Bárbara ouviu ruídos no forro da casa. Foi até o quarto de Bella, no sótão. A cama estava vazia e a janela aberta. Um rastro de luar iluminava o beiral do telhado. No galho do abacateiro, que chegava até as calhas, estava a menina sentada, tocando um trecho de Musette, da ópera de Puccini. A boca esgalhada e os olhos vidrados, refletindo, como vaga-lumes, a luz da lua. Bella era, ainda por cima, sonâmbula. Não podiam acordá-la. Chamou Tio Marius que, com seu violoncelo , começou a acompanhá-la na música. Como hipnotizada, Bella flutuava sobre as telhas e, juram eles, entrou voando pela janela. Deitou-se na cama, sem largar o violino. Tio Marius continuou sua ária e foi saindo, levemente, do quarto. Bárbara cobriu a filha, bem de mansinho, com o acolchoado de penas. No outro dia bem cedo, todos se acordaram com o choro de Bárbara: Bella havia partido para sempre. E estava tão bonita: até parecia mais gordinha e corada. O violino, porém, não estava mais com ela."

Titia baixou os olhos enquanto murmurava “Vater Unser, der Du bist im Himmel, geheiligt werde Dein Name...” Ficamos quietas, olhando para sua devoção. Aí, sacudiu a cabeça, e falou : “É, há sempre um violino...” E saiu. Ficamos na cozinha, ouvindo Titia conversar com o jardineiro : mudas crescidas de malva, bulbos de palmas-de-Santa Rita, gerânios. E o violino?

Ilram Rekrem
Enviado por Ilram Rekrem em 19/10/2009
Código do texto: T1875345
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.