A quase história de uma grande história

Hoje chove bastante e aquela coisinha chata chamada preguiça não me dizia nada além de: “Vai dormir. O barulho da chuva está te convidando. Fica debaixo do lençol aproveitando o calor da cama”. Realmente a cama estava bastante agradável. Parecia um ninho. Ninho é um lugar onde os filhotes vivem. Estava criando o meu filhote preguiça. Mas ele estava ficando muito grande a ponto de me incomodar. Foi então que eu descobri. A preguiça tinha outro nome. Era ócio. Às vezes até mesmo os pais se confundem com o nome dos filhos. A preguiça é pachorrenta e derrotista. O ócio não. Ele tem bastante tempo para tudo. Sempre encontra um jeito de resolver as coisas. Ele cria novidades. Até mesmo mundos novos ele inventa e reinventa. Foi ele o responsável por me arremessar da cama depois de me fazer pensar em mil coisas.

Meditei, li e estudei um pouco. Eu meditava sobre a parábola dos talentos e estudava sobre Jesus e o Seu relacionamento com os estrangeiros. Pensei em como administrar o pouco (no meu caso, o pouco é a chuva fora de época, que me impede de ir para o lado de fora da casa). Um bom administrador faz maravilhas com poucos recursos. Sou um bom administrador? Vamos adiante... Sou deste país. Até agora nunca morei em nenhum outro lugar que não a cidade onde nasci. Meu país é imenso e plural, mas com uma característica rara – todos falam a mesma língua. Por que, então, sentir-me estrangeiro? Somos todos estrangeiros nesta terra. Porém uns mais do que os outros. Eu, por exemplo, viro estrangeiríssimo nesta época do ano. Sou um estranho no ninho. Resta-me o exílio em meu quarto – a prisão domiciliar a qual são submetidos todos aqueles que não aceitam a realeza de Momo. Entendem agora o ócio? Como dizia um filósofo de nossos tempos, é o ócio criativo. A mente vazia é a oficina do diabo já diz o povo. Ora, minha mente não está vazia. Meu corpo quer conforto. Isso sim. Como a mente manda no corpo, a espertalhona resolveu por a culpa de sua vontade de dormir no pobre do corpo que já vem sofrendo pela falta de exercício de uma vida sedentária escolhida pela própria mente descarada. Não satisfeita em culpar o corpo pela indolência, ainda se diz a responsável pela mudança de atitudes. Aliás, mudar de atitude é o que farei agora. Você já deve estar me achando um embromador. É porque não sei ainda ao certo sobre o que escrever. Ature-me mais algumas linhas até a história engrenar. Vou dar um pulo até a varanda e ver as buganvílias. Encontre-me aí embaixo no terceiro parágrafo.

Quando cheguei a varanda, dei de cara com meu sobrinho brincando sozinho, meio tímido. Queria dizer para ele brincar com terra, confesso, mas não seria um bom exemplo e nem uma boa idéia (pior limpar todo o chão depois). De repente, o garoto resolve, num desses lampejos geniais que só as crianças têm, me convidar para brincar com ele de inventar histórias. Agora já sabe o motivo da minha escrita. Primeiro nos preparamos lendo um conto da Ana Maria Machado chamado De fora da arca. O menino queria uma história como a bíblica Arca de Noé. Tentei incentivá-lo a ler comigo O médico e o monstro, de Sir Robert Louis Stevenson. Estava irredutível. Queria recriar a qualquer custo a narrativa da família que se salva junto com animais no Gênesis. É incrível como as crianças adoram esse relato. Ainda mais meu sobrinho, um cientista nato. Um verdadeiro paleontólogo, zoólogo, biólogo e outras coisas mais...

Entre as outras habilidades desse moleque está a da escrita. Estamos há tempos por escrever um livro. Hoje não dá mais para esperar. Mãos à obra...

Nenhum de nós foi contemporâneo de Noé, porém quase todos são bastante simpáticos a esse bom ancião. Isso hoje depois de conhecermos toda a história. Na época em que os fatos aconteceram foi bastante diferente. Para começar, não chovia. Como acreditar, então, naquele velho pregando sobre uma coisa jamais acontecida? Fico pensando como ele próprio criou uma palavra para explicar o fenômeno chuva. Não seria de admirar as pessoas zombando do pobre homem. Imaginem só construir um barco de dimensões tão grandes a ponto de comportar dois casais de cada espécie de animal limpo e mais um casal de cada espécie de animal imundo, todos encerrados num mesmo ambiente. Não consigo nem pensar no cheiro lá de dentro. Hoje eu tenho um casal de gatos em casa e, de vez em quando, fazem algo não muito agradável no lugar impróprio. O cheiro incomoda bastante. Calculemos dentro da arca... Não havia só dois bichanos, mas também cachorros, ratos, bois, cavalos... elefantes! Meu Deus! Não quero nem pensar. Ainda bem que os livros não vem com cheiro. Outro problema deveria ser a algazarra dos animais confinados no mesmo espaço. Bastava um casal de araras e outro de papagaios para o alarido começar. O que dizer dos lobos uivando, dos grilos, cachorros... Ainda bem que livro não vem com som.

Pensar nos detalhes nos faz viajar. Como aquela família suportou tanto tempo dentro dum lugar fechado. Uma semana já seria tempo suficiente para qualquer um se irritar com um hóspede. Imagine ficar preso por quarenta dias o casal com três filhos e três noras. E, se havia noras é porque havia sogra! E hoje se falamos em estresse, em tédio, o que dizer de Noé querendo saber se as águas já haviam baixado? Não havia binóculo ou qualquer outro instrumento semelhante. Nem moça do tempo na televisão mostrando as condições atmosféricas em outras regiões. Toda aquela gente dependia unicamente de duas aves – um corvo e uma pomba. Noé, verdadeiramente não deveria ser ansioso.

Deus meu, como o relato bíblico do dilúvio pode suscitar tantos comentários...

Se Noé vivesse hoje, como iria proceder? Haveria vigilância sanitária, sociedade protetora dos animais, ambientalistas, líderes sindicais, defesa civil e tanta instituição junta para atrapalhar a viajem, que ele acabaria por ficar a deriva com sua família num bloco de gelo desprendido dos pólos e os outros estariam sufocados num mar de lama e poluição.

Vou liberar meus dedos do teclado e minhas costas da cadeira, que embora ergométrica, me aprisiona. Já parou de chover faz tempo. Meu sobrinho resolveu brincar com outros moleques. Vou fazer o reconhecimento da terra. Plantaria uma vinha se houvesse espaço e vivesse a uns 50 anos atrás. Para ser contemporâneo, vou beber um suco de uva industrializado. Não ficarei bêbado, portanto. Também não precisamos desse recurso para escrever.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 16/10/2009
Reeditado em 22/06/2020
Código do texto: T1868943
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