Reciclando Vidas

RECICLANDO VIDAS

As mãos adolescentes de Antonio não tinham conhecido os calos da escrita, mas há muitos invernos conheciam os calos arroxeados da dor. Não aprendera a ler, pois no aterro sanitário – que muitos chamavam de “lixão” – onde a família separava possíveis recicláveis, as letras não tinham utilidade para distinguir entre o papel e o metal. Ali, em meio à podridão do lixo, apenas existia espaço para o vazio da alma em busca de sobrevivência.

Segundo o pai, de natureza quieta e espírito rude, Antonio nascera em dias melhores. Assim como todos da família, desde o mais novo, de seis anos, até a avó materna de setenta, todos passavam o dia sobre os escombros fétidos dos restos de uma civilização cega, separando garrafas e latas, vidros e papéis, restos de alimentos e bosta, para ao final do dia, vender os poucos salvados ao usineiro, que pagava cinco centavos por quilo. Uma família numerosa como a de Antonio conseguia separar uma média de trezentos quilos de recicláveis por dia, garantindo ao final do mês pouco mais que um salário mínimo. A sobrevivência da família era assim mantida, mas no passado a mesa muitas vezes tinha sido composta por restos de alimentos, que ainda no prazo de validade, eram coletados no lixo. Fora nesta época que o pai de Antonio amargou a alma, e antes de se calar para sempre, disse ao filho que a existência da família nesta terra poderia ser confundida com a montanha de lixo que era revirada por eles todos os dias, mas que não deixaria jamais que o espírito do filho apodrecesse naquele lugar.

Apesar do cheiro insustentável sob um sol árido, da longa fadiga constante e do pouco alimento, Antonio era um adolescente feliz. Não raro encontrava no meio dos monturos os brinquedos velhos de alguma criança abastada, e à noite, sob a luz de uma vela, consertava o que seria a alegria de um dos irmãos menores. Muitas vezes, o pai ralhava com ele, pois aquelas velharias valiam ao menos um real se vendidas ao usineiro, mas Antonio consolava o pai com sua enorme disposição para o trabalho, e afinal, em seu coração o pai estava consciente que já fora roubada a infância daquele filho que só lhe ajudava, não seria ele que lhe roubaria aqueles raros momentos de deleite na simplicidade de uma pobreza tão endurecida. Assim o menino tinha vivido os treze primeiros anos de sua existência, analfabeto, mas de uma inteligência brilhante e um espírito vivaz, uma dessas tantas crianças atiradas ao lixo, sem qualquer referência estatística, e que só precisariam de uma única oportunidade para agarrar e flutuar nos horizontes do sonho.

Certa tarde de dezembro, quando os sopros ainda latentes do vento anunciavam que os dias seriam mais longos, o usineiro pousou os olhos naquele menino franzino. Notara que apesar da pouca idade e do aspecto de desnutrição, mantinha uma disciplina ferrenha, revirando o lixo sempre em busca dos objetos de metal, cujo peso renderia à família maiores resultados. Naquele ambiente hostil o usineiro ganhava a vida. Fizera uma pequena fortuna com a reciclagem, barganhando muitas vezes com aquele povo sofrido: catadores de papelão – como costumava dizer. Sempre chegava ao final da tarde, quando o lixo já estava separado em papel, vidro, plástico e metal. Pesava o rescaldo e pagava os catadores conforme a produção. Após o material seguia em caminhões diferentes para a usina, onde eram transformados em produtos novos. Depois de tantos anos de trabalho lucrativo, o usineiro estava cansado. Os filhos, para quem construíra o negócio, cada qual ganhara o mundo em suas respectivas profissões. Era um imperador cujo império ruiria assim que seus olhos se fechassem e a respiração deixasse seus pulmões. Naquela tarde de dezembro, o usineiro pensativo suspirou, e rendendo-se, sentou no chão!

Antonio se aproximou do usineiro com o sorriso simples de quem a simplicidade sempre tiraria um sorriso. Perguntou ao usineiro se estava bem, e estendeu-lhe a mão suja caso precisasse de amparo. O usineiro sorriu, pois a menor das criaturas, cujo odor levaria talvez anos para sair de seu corpo, aos seus olhos lhe pareceu um gigante. A mão sofrida, que não exibiam os calos da escrita, estava ali estendida para ele, imperador de um território sem sucessores, dono de uma riqueza bancária invejável, mas naquele momento mais pobre do que o mais pobre dos catadores de papelão.

- Sabe ler menino? – perguntou para disfarçar a tensão do momento.

O garoto sorriu. Infelizmente não aprendera a ler em um ambiente onde a escrita de nada valia. Balançou a cabeça negativamente e em seu semblante não havia constrangimento ou dor, mas apenas a inocência de quem nascera previamente condenado àquele destino de crueldade inigualável. O usineiro baixou os olhos, sentindo-se envergonhado por possuir tanta riqueza diante daquele retrato colorido de uma miséria exposta. Apesar da sujeira dos dedos franzinos, o usineiro resolveu estender-lhe a mão, percebendo que precisava mais do menino do que o menino dele. Levantou-se, seguiu seu curso, e apesar do coração abalado, o usineiro não olhou para trás. Tivesse olhado, ainda veria o sorriso acolhedor de Antonio, analfabeto, catador de papelão, que consertava brinquedos para proporcionar alegria aos irmãos, a criatura mais pura que talvez tivesse conhecido.

Comovido em seu espírito, o usineiro resolveu então empreender. Há muitos anos reciclava lixo, atirando no lixo famílias inteiras de catadores de papelão. Inspirado por aquele Antonio menino, gigante nas atitudes, resolveu então, dedicar seu tempo e fortuna para outra modalidade de reciclagem, iria reciclar vidas. No dia seguinte, levou um engenheiro às proximidades do aterro sanitário e nos meses que se passaram edificou uma escola. Aos catadores que deixassem seus filhos na escola durante o dia, o usineiro dobrava o valor do quilo, acrescentando ao final do mês uma cesta básica. Poderia parecer pouco, mas quando Antonio começou a formar suas primeiras frases na leitura, viu que o pouco representava muito.

Hoje, passados muitos anos, de aluno o pequeno Antonio tornou-se professor. De professor tornou-se braço direito do usineiro. Há quem diga que assumirá os negócios em breve, pois talento não lhe falta, quanto mais conhecimento no ramo. Era considerado lixo pela sociedade, mas foi reciclado. Reciclado por um gesto de amor.

Marco Antonio Vasquez
Enviado por Marco Antonio Vasquez em 12/10/2009
Reeditado em 28/11/2009
Código do texto: T1862871
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.