O que vem a ser felicidade?

Era um casebre de um único cômodo, formado de pau a pique. Desde que a esposa morrera no parto do sétimo filho, João Severino ali vivia rodeado de crianças, muitas vezes olhando para o céu na vã esperança de que a esposa velasse por eles. Quando o conheci pareceu-me um homem supersticioso, que após ter sido quebrantado por tanto sofrimento, ainda mantinha a fé em crenças tão antigas quanto o mundo.

Trabalhava nas lavouras de cana. Antes do sol nascer acordava o filho mais velho para com ele andar por dois quilômetros até o açude, onde os dois tiravam duas latas de água e com muito esforço carregavam até o casebre. Após resfolegar o cansaço da caminhada, João Severino cozinhava a macaxeira que plantava nos poucos trechos de terra batida pelo vento, e preparava o café ralo para com os filhos abençoar a primeira refeição do dia. Depois, beijava a testa de cada uma das crianças e partia para a lida dentro do canavial. Assim tinha sido a vida de seu pai, de seu avô e provavelmente seria a vida de seus filhos.

Enquanto o pai estava na lida, as crianças se incumbiam da arrumação da casa e de acordo com as respectivas idades cuidavam uma das outras. Ivoneide, a mais velha entre as meninas cozinhava o feijão de corda como lhe ensinara o pai. No pouco tempo que sobrava das suas tarefas, brincava com as irmãs menores para relembrar um resquício de infância. Ivoneide tinha apenas seis anos quando cheguei no casebre, cansado de tanto andar pela árida paisagem, e lhe pedi um copo de água. Foi o primeiro contato que tive com a família de João Severino da Silva, um Silva como tantos anônimos que povoam a imensidão deste país continental e que contribui para a sua riqueza com o suor de suas mãos rugosas por árduos trabalhos.

Era hora do almoço quando cheguei ao casebre. A menina inicialmente pareceu desconfiada da minha pele clara e das minhas roupas americanizadas: tênis, bermuda, camiseta de malha, mochila nas costas, boné e óculos escuros. Seu instinto maternal colocou os irmãos menores para dentro de casa, revelando o senso de proteção que os seus únicos seis anos de vida exigiam. Depois saiu com um copo de uma água turva e quente, que em razão da sede não pude recusar, mas que posteriormente constatei tratar-se de água limpa, embora conservasse os sedimentos da terra. Em seguida o pai chegou, completamente negro de uma fuligem cinzenta, típica do fogo controlado para o corte da cana de açúcar. Assim que me viu levou as mãos ao chapéu de palha em atitude de cumprimento, e depois satisfeito viu que seus filhos cumpriram o protocolo diante de um estranho visitante.

- O que procura por essas terras moço! – foi a pergunta que me dirigiu com um sorriso sem dentes, mas como uma simpatia além da minha capacidade de compreensão.

Não lhe escondi a verdade. Estava em férias e enquanto minha família descansava no conforto de um resort, resolvi descobrir com meus próprios olhos a vida do sertão. Thiago, meu amigo e guia em Pernambuco me acompanhou até a entrada do território dos engenhos, mas como era muito conhecido pelos proprietários das terras, em razão da política, não se aventurou a entrar no território da seca para evitar desnecessários constrangimentos, que segundo ele eram comuns. Daquele ponto em diante, eu havia caminhado durante algumas horas debaixo de um sol salpicado de chagas e havia chegado até a casa, onde pedira um copo de água para a menina.

João Severino mandou o filho mais velho buscar duas cadeiras de palha e o garrafão de cachaça. Convidou-me para sentarmos no alpendre do casebre onde a sombra era uma benção dos céus e serviu-me a pinga em uma caneca de plástico. Eu sabia claramente que para o lavrador era uma honra receber um visitante, de modo que não aceitar a oferta da bebida poderia parecer uma ofensa grave. Mas, na medida em que a bebida forte era ingerida naquele calor sutural, minha alma se animou e passei a conversar com maior fluência sobre o assunto que me levara até aquele lugar ermo e rodeado pela miséria. Eu queria, em meu íntimo, saber se aquele homem era feliz e não hesitei em perguntar.

A verdadeira filosofia não está nos livros. Embora eu tivesse passado grande parte da vida lendo, foi João Severino que me revelou com a sua simplicidade cabocla a retórica de Sócrates, Aristóteles e Platão. Pareceu-lhe, naquela tarde, uma pergunta absurda demais e com seu sorriso desdentado convidou-me para almoçar, pois em sua visão simples, não se poderia falar em felicidade com a barriga vazia. Assenti, muito embora soubesse em meu íntimo que o feijão de corda preparado pelas mãos infantis de Ivoneide e os restos de macaxeira do café da manhã não alimentariam todos. João Severino me questionou se eu me incomodava em comer no alpendre, pois a casa era mais fresca para as crianças, e eu respondi que não, que ali estava ótimo. Novamente ele chamou o filho mais velho e lhe pediu que fosse até a casa da vizinha, eqüidistante cerca de um quilômetro, e lhe pedisse o favor de lhe ceder uma galinha para o jantar e que ele compensaria quando matasse o bode que estava sendo cevado.

- O doutor janta com a gente hoje!

Profundamente consternado eu não disse não. Aquela manifestação de hospitalidade ultrapassava as barreiras do bom senso naquele ambiente de extrema pobreza, mas o olhar de João Severino transmitia uma bondade que não era deste mundo, além do que na minha inexperiente visão da vida, aquelas crianças teriam oportunidade de comer alguma carne, o que me pareceu lógico diante das circunstâncias, ao mesmo tempo em que me pareceu um pensamento absolutamente imbecil, vindo de alguém que comia carne praticamente todos os dias.

No alpendre do casebre, após uma divisão igualitária da pouca comida que guarnecia as panelas de João Severino, almoçamos olhando um horizonte povoado de extensões enormes de cana de açúcar. Da minha posição, sentado na cadeira de palha próximo à porta eu enxergava as crianças comendo devagar, como se aquela fosse a última refeição de suas vidas, e perguntava-me o que poderia ser felicidade para um pobre homem como aquele. No entanto, João Severino já vivera dias piores, dias em que saia de casa muito cedo e retornava muito tarde, trazendo em suas mãos um único preá para a alimentação das crianças. Enquanto a mulher vivera, sua vida talvez fosse menos dura, pois com ela tinha com quem dividir as lágrimas dos “momentos de precisão”. Mas o que era mais curioso naquele ambiente era o fato que a tudo João Severino abençoava, pois em sua concepção suas mãos ainda eram fortes para trabalhar.

A minha pergunta poderia ser absurda para aquele homem, mas sua resposta surpreendeu meu coração e acalentou minha alma. Sua voz falava com didática sobre uma felicidade que eu nunca havia parado para ouvir, sentir, quanto mais pensar.

- O doutor me perguntou se sou feliz. Venha que quero lhe mostrar.

Acompanhei João Severino até um cantão de terras secas. João Severino indicou com orgulho que aquela terra seria sua após a colheita da cana, conforme compromisso com o dono do engenho. Ali poderia plantar o feijão e o milho, e com o auxílio do filho mais velho a terra logo produziria o necessário para o sustento da família e viveriam dias melhores. Depois me levou de volta para o casebre e me apresentou os filhos: Severino, o mais velho, seu braço direito, tinha doze anos de idade; Diocleciano, com dez, queria estudar para ser padre – o seu nome realmente era sacerdotal – e aos domingos ajudava a rezar o terço na casa da vizinha; Antonio, com nove, cuidava dos irmãos menores; Miguelino, com sete, era um menino doentil que brincava com tocos de madeira enquanto seu olhar perdido parecia querer desvendar um oceano de incertezas; Ivoneide, com seis, era responsável pela cozinha e ajudava na arrumação da casa, além de cuidar dos irmãos menores com a ferocidade de uma leoa; em seguida vinham Suzete, com três, e Nireide com um ano, e que ainda não aprendera a andar. João Severino disse-me que ali estava todo o seu tesouro na terra: os filhos.

Depois discursou sobre a felicidade de acordar todas as madrugadas, anunciando que era um milagre diário despertar do sono, contemplar as estrelas e saber que estava vivo para mais um dia de trabalho. Respondeu-me que quando estava no canavial, em meio à fumaça negra do fogo controlado, sentia suas mãos movimentarem o facão para o corte da cana, e sentir suas mãos, seu corpo, sua saúde, era uma benção sem comparação, pois muitos lavradores tinham mutilações em razão de acidentes no trabalho. Demonstrou que era feliz ao retornar para a casa, encontrar os filhos bem, dividir com eles o pouco que possuíam, e sonhar com dias melhores em uma terra onde os sonhos pareciam ter se escondido em algum buraco negro. Era feliz com tão pouco, uma alegria humilde e digna, pois João Severino não fora contaminado pelas promessas inúteis de uma felicidade ilusória que a mídia transmite em horário nobre através dos canais de televisão.

Fiquei hospedado com João Severino naquele único dia, mas quando me despedi com um abraço intenso, senti em meu peito a saudade de uma vida inteira. Retornei para a estrada dos engenhos e liguei para Thiago do meu celular, o aparelho que voluntariamente tornava minha vida um inferno, mas que por vício ou preguiça nunca deixei de lado. Ele chegou, uma hora depois, ansioso por saber se eu tinha encontrado o que viera buscar, provocando-me com a jocosidade e o ar inteligente do bom pernambucano. Pedi que me prometesse, sempre que possível, obter notícias daquela família tipicamente brasileira que me acolhera com uma cordialidade matuta de emocionar até pedra.

Dez dias depois do meu encontro com João Severino retornei para minha vida atribulada de emoções incertas: audiências, contestações, aulas, teses. Um pulsar incessante de atividades para driblar o tempo, um tempo que corre cada dia mais rápido. Em meio a tantos compromissos, aos poucos a imagem feliz e pacata de João Severino foi sendo esquecida e o hálito denso daquela felicidade humilde foi se liquefazendo em um caldo estressante de trabalho e corrida pela rentabilidade. Mas não me esqueci por completo, alguma coisa ficou em minha alma, como uma amálgama que se solidifica e restaura. Certo dia, três anos depois, encontrei Thiago em um congresso, ele advogado famoso em Pernambuco e eu um pesquisador da ciência da linguagem, perdido em minha sala às voltas com problemas de semiótica.

- Como está a família de João Severino?

Soube então que ele morrera sufocado quando atearam fogo para o corte da cana. Fora um fogo controlado, mas por infelicidade do destino João Severino estava atravessando o canavial e não tinha noção que estavam iniciando um fogo contrário. Os filhos foram levados por assistentes sociais para o Recife, alguns encaminhados para adoção e outros simplesmente ficaram em instituições de amparo. Miguelino morrera um ano antes, abatido por uma pneumonia. O mais velho ficara empregado no canavial, mas Thiago não soube me dizer se algum dia teria os irmãos de volta. Abateu-me uma tristeza, uma tristeza tão negra quanto ébano. Aquela família não merecia tamanho sofrimento. Thiago entregou-me uma folha de papel amassado e me deu um tapinha nos ombros:

- Não consegui deixar de ler, apesar de estar destinada a você!

O papel amassado dizia:

“Doutor. Aprendi a escrever a primeira carta e meu pai quis que fosse para o Senhor. Ele gostaria de saber se o Senhor encontrou a felicidade e sempre rezou a Deus para que o senhor encontrasse. Meu pai achou o senhor muito triste e desgostoso da vida e ele quis que eu escrevesse ao senhor para lhe dizer que sua vida seria feliz se o senhor pudesse olhar para ela com felicidade. Meu pai sempre disse que o senhor era a pessoa mais sábia que ele conheceu apesar de tê-lo visto um único dia. Com alegria, Diocleciano.”.

Marco Antonio Vasquez
Enviado por Marco Antonio Vasquez em 10/10/2009
Reeditado em 12/01/2010
Código do texto: T1858600
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