OUTONO
OUTONO
Outono. Sento-me no banco da Praça Central e fico observando as folhas caírem devagar, carregadas por uma brisa leve. Olho ao meu redor e vejo crianças que brincam animadas e despercebidas, para elas essas folhas caindo por cima de suas cabeças não significam nada ainda. Mas para mim essas folhas representam o ciclo de vida. Absorto em meus pensamentos não percebo quando uma senhora sexagenária senta-se ao meu lado e abre um livro. Eu curiosamente passo os olhos pela página que ela lê avidamente e vejo que o livro é da Poeta da terra dos meus avós: Cora Coralina. E eu que já estava ali pensando na vida, agora começo a compará-la com aquele poema lindo que vejo a minha frente. Fico curioso em conhecer aquela mulher leitora. Me aproximo mais.
- Boa tarde, lindo poema, não?
- Não entendi. – Disse a mulher meio desconfiada de minha intromissão.
- Penso, que somos como o milho, que germinado, de início é só um canudinho enrolado, amarelado, pálido, frágil, depois se levanta, cria substância, liberta-se, enraíza, abre folhas espaldeiradas, encorpa.
- Calma rapaz, sei que tens o frescor da juventude, mas vamos mais devagar. Como é seu nome?
- Desculpa, senhora! Meu nome é Pedro. Sei que falo muito, mas ao ver esse poema não pude deixar de fazer essa comparação.
- Meu nome é Ana e eu carrego esse livro comigo como se fosse um talismã. Não tenho mais nada nessa vida. Sonhar, já sonhei demais, desejos, sim, mas todos fazem parte de um passado.
Olhei atentamente àquela senhora que agora parecia uma menina com uma lágrima a rolar em seus olhos. Senti uma vontade enorme de abraçá-la, como se a sua presença, lembrasse a minha mãezinha, que Deus havia levado.
- Você me fez lembrar, rapaz, da minha juventude, o quanto vivi, foi bom. Não posso reclamar do destino que Deus me deu. Tive uma vida simples no interior de Goiás e prá mim a Cora sempre foi minha inspiração, meu espelho, sempre me senti a Aninha sensível, vibrante, cheia de vida embalada pelo som do berrante.
- Como é bom termos exemplos tão bonitos de uma vida tão bem vivida,
cheia de entusiasmo, de sonhos e realizações. – Completei.
- Talvez ela me inspire, porque dentre todos os poetas, ela se destaca por sua simplicidade, por seu prazer, pelo cheiro da fazenda, da receita do doce caseiro, do pasto e do milharal. Tudo isso tem a ver com as minhas raízes, a minha história.
De repente ela fica absorta em seus pensamentos e eu por minha vez respeitando esse momento deixo-a nessa condição.
- Sabe, meu rapaz, o que ela passou na vida, a renuncia do seu sonho pelo amor do seu marido, a dedicação com a família é que fez dela essa pessoa especial. O meu destino não foi diferente. Olha esse caderno.
Tira de uma velha e surrada bolsa, um caderno amarelado, porém bem conservado. Observo em suas mãos as marcas de uma mulher sofrida.
- Aqui são os meus poemas que escrevia desde menina e quando me casei fui obrigada a esconder esse caderno, pois para meu marido, mulher que presta não fica escrevendo bobagem.
- Então a senhora teve uma vida como a de Cora, não é mesmo?
- Sim. Mas a Cora casou-se por amor, não realizou seu sonho de escrever, ainda jovem, porque seu amor por seu marido e seus filhos foi maior. Comigo foi bem diferente.
Enquanto ela falava, eu fiquei lendo o que estava ali naquele caderno e naquelas páginas estava marca de uma vida sofrida, estrangulada, ameaçada. Não sei porque senti que aquela mulher era mais do que apresentara até ali. Quem foi essa mulher no passado, quem foi seu amor, que história ela tem pra contar?
- Lembro-me meu rapaz, da casinha de taipas que eu morei na infância, minha mãe no parapeito da janela, olhando o sol se pondo a perguntar: - A luz do sol o céu manda e o pão de onde virá? Via-a, sempre naquela angústia da falta do que comer, e eu, uma menina sempre dizia: - Um dia, mãe, vai ser diferente, eu vou crescer, trabalhar e nós vamos embora daqui. Ela sempre me respondia que eu não sabia o que estava falando, que filha quando cresce, casa e vai embora. - Não comigo, dizia eu, eu não vou me casar, vou trabalhar e lhe ajudar – Você não sabe nada filha, vive tua primavera, não se preocupa, quem tem que se preocupar sou eu, que já vivi muitos janeiros. Isso me deixava ainda mais com vontade de sair daquele lugar, daquela situação. Mas como era bom quando chegava o inverno. O milharal esverdeando o nosso olhar, agora sim a mesa era farta, o cheiro do milho, a pamonha, o curau, como era bom, o bolo de milho nas tardes frias, as festas de São João. Quando completei quinze anos é que fui entender o que minha mãe dizia. Meu pai, como se eu fosse um objeto, me oferecia aos solteiros da cidade. Sempre me levava a feira, mas não era para acompanhá-lo, era para ele, literalmente, me oferecer. Me sentia como uma coisa, sem valor. Agora que em meu corpo eu me via mulher, eu tinha que me sentir coisa? Será que todas as mulheres um dia se sentiram assim? Casei-me, mesmo a contra gosto com um homem bem mais velho que eu. Ele não me deixava ler, falava que mulher que lia, tinha comunhão com o diabo, onde já se viu? Escrever era coisa pra homem, que lugar de mulher era cozinhando e servindo o marido. Vivi muitos anos de minha vida nessa situação, criei meus dois filhos, mas hoje estou aqui perdida sem ter ninguém. Nunca pude realizar meus sonhos, trabalhar, escrever. Só fui aquilo que eles quiseram que eu fosse.
- Sinto muito!
Mais uma vez percebo que ela está chorando e uma tristeza imensa invade meu coração. Sei o quanto deve ser difícil para uma mulher viver sobre os domínios de seu marido, foi assim que minha mãe viveu até Deus a levar.
Ana recolhe seu caderno, guarda-o na bolsa e se vai sem se despedir, sem dizer uma única palavra.
Fico ali, atônito, pensando de onde vinha essa mulher triste, porém com um sorriso tão lindo, pobre, mas de uma riqueza sem tamanho, tão aflita e ao mesmo tempo tão serena em seu olhar. Olhar de poeta, que a tudo observa e traduz a vida em versos. Versos como aqueles que li naquele velho caderno, que retratava a doçura daquela senhora tão sofrida e cicatrizada pela vida.
Inverno. Volto a praça outras vezes a procura de uma resposta para entender aquela senhora tão enigmática que me cativou. Olho a minha volta. Passo em frente a marquise de uma loja antiga, abandonada. Vejo um corpo, que a sombra da noite me revela ser de mulher. Chego mais perto. Ali está a resposta. Em suas mãos, o livro que outrora lia tão avidamente. Procuro a bolsa velha e surrada e retiro dali o caderno roto. Aperto-o contra o peito como se trouxesse Ana para junto de mim novamente.
Agora não terei mais que procurá-la. Ela estará sempre comigo.
Adeus, Ana!