Alucinações noturnas



As fileiras de garrafas assimétricas, dispostas nas prateleiras iluminadas atrás do balcão do bar, ofereciam um bizarro espetáculo de líquidos coloridos. O barman era um vulto saltitante indo de um lado a outro em movimentos rápidos e determinados. As pessoas sentadas em torno do balcão formavam uma só figura de sombras amalgamadas, cheia de braços e cabeças, num balé de gestos desconexos. Os que passavam em frente, vindo da porta de entrada à direita e atravessando o salão enfumaçado até onde ficavam as mesas, nada mais eram que espectros assombrando a paisagem. Tudo fazia parte de um conjunto de visões distorcidas que àquela altura brotavam dos etílicos efeitos de algumas doses a mais de gin. Pereira, ali sentado em uma mesa das mais recuadas, tentava alinhar as idéias que vagavam avulsas em seu pensamento. “Há tempos não tomava um pilequinho”, pensou, “quanto mais este pifão!” arrematou, quase orgulhoso desse feito. Na verdade ele estava entregue naquela noite.

O pequeno palco após o salão das mesas estava deserto, a não ser pelos pedestais ali esquecidos, órfãos de microfones e de vozes humanas que lhes dessem algum sentido no contexto. Mas havia música e ela vinha das caixas de som que ladeavam o palco exorcizado de almas vivas. Alguma parafernália eletrônica mal escondida trazia um classic jazz familiar aos ouvidos daquele triste embriagado. O título da obra estava na ponta da língua e o nome do autor rondava fugaz a um lampejo de memória. Mas tudo lhe fugia ao raciocínio e somente pela certeza da seqüência melódica, que se prenunciava a cada compasso, podia ele dizer que conhecia o que estava sendo tocado.

O garçom, um rapaz pardo acomodado num desbotado colete azul bem maior que seu manequim, já conhecia a figura de Pereira. Reminiscência de antigas e freqüentes visitas ao lugar, porém em circunstâncias que outrora eram bem diferentes. Solícito, vindo com uma bandeja cheia de copos recolhidos ao longo do caminho, perguntou:

Vai mais um dotô?

Sim – aquiesceu Pereira laconicamente, sem tirar os olhos hipnotizados no festival luminoso das garrafas do bar.

O garçom retirou o copo da mesa onde ele estava sentado, assim como um prato que, minutos antes, acolhia um engordurado tira-gosto qualquer. Recolheu tudo e passou um pano já muito sujo pela constante limpeza das mesas. Feito superficialmente esse trabalho, retirou-se em direção ao fundo para buscar novas provisões a serem distribuídas entre os fregueses.

Não posso continuar assim” pensou Pereira. “Vou ao banheiro lavar o rosto. A caminhada até lá e uma água fria na cara vão me pôr esperto de novo”. Levantou-se tentando não deixar transparecer os efeitos da bebedeira. Manteve o queixo erguido, o corpo rijo e, disfarçadamente, apoiou-se na mesa para poder ficar de pé. Tinha a impressão de que todos em volta o observavam. Porém, ao tentar pôr-se ereto é que notou o quanto estava zonzo. De repente, o chão parecia balançar em baixo de si. Incontinente, decidido a mostrar um mínimo da sobriedade, quase toda esquecida no fundo do copo, saiu caminhando a passos largos e pisando com força em direção aos banheiros.

Aqueles poucos segundos que separavam a mesa onde estava até a entrada dos reservados transcorreram em câmara lenta. Cada passo era um salto arriscado; cada movimento do caminhar um impulso motor que parecia destinado a lançar o corpo débil em direção ao chão. Ao longo do trajeto encontravam-se as concorridas banquetas que rodeavam o balcão do bar e, assim, foi roçando todos que nelas estavam sentados, tomando os corpos ali perfilados como um vetor seguro a indicar o alvo a ser alcançado.

Pouco antes de chegar ao seu destino ele esbarrou, quase trombando, com uma moça que vinha na direção contrária. Passou por ela sem parar e seu pedido de desculpas não foi mais que um aceno tíbio solto no ar. Sôfrego, lançou-se banheiro adentro. Seu objetivo inicial era o lavatório, mas a natureza o conclamou a dirigir-se ao vaso sanitário onde vomitou em golfadas o que bebera, o que comera e, pareceu-lhe ainda, parte de suas vísceras.

O alívio digestivo foi imediato – e uma formidável dor de cabeça também. Já em frente ao lavatório, diante do espelho trincado, enxaguou a boca do azedume nela instalado e lavou seguidamente o rosto, como se pretendesse arrancar as feições amarrotadas pela embriaguez. Refrescado pela água alinhou a camisa, ajeitou-se nas calças e, refeito o quanto pôde, tomou o rumo de volta. Logo à saída do banheiro vislumbrou, mais adiante na terceira banqueta em frente ao bar, a mesma moça com quem chocara-se na ida. Deteve-se por um momento perante ela com a sincera intenção de desculpar-se, justificando o involuntário incômodo de minutos antes. Porém, ela continuou conversando com a pessoa ao lado e pareceu, naquele instante, que Pereira lhe era totalmente invisível. Somente agora ele se dava conta que, havia pouco, abalroara sem pudor aquele corpo esguio dentro do bustiê vermelho. Ele pensou em anunciar-se com um toque naqueles ombros sardentos à mostra. Entretanto, diante da deliberada indiferença recebida, achou melhor não. “Ela que se foda! Fresca!”, sussurrou para si mesmo, enquanto retomava o caminho de volta.

Chegando à sua mesa, Pereira notou o copo de bebida reposto pelo garçom e só de pensar em sorver seu conteúdo quase vomitou de novo. Enquanto sentava, acenou para o garçom que rapidamente correu a atender-lhe:

Quer mais gelo dotô? – ofereceu o rapaz.

Não! Traga-me uma água tônica com limão. – esbravejou Pereira, como se seu mal-estar fosse evidente e sua pedida quase óbvia.

Enquanto aguardava o retorno do que pedira, sentia sua cabeça explodir em dores tremendas que faziam suas têmporas latejar. As garrafas do bar já não brilhavam luminosas; mas resguardavam líquidos indefinidos atrás de rótulos indecifráveis . O barman já não deslizava como antes; mas arrastava-se enfadado daquela lida pseudo-alquímica, de mesquinhas medidas de doses e repetidas misturas de coquetéis. As pessoas em torno do bar tinham reassumido seus vultos singulares, agora banalizadas na mesmice de suas roupas da moda. Tudo parecia voltar ao normal exceto a música no ambiente. A melodia de arranjo forte penetrava sinuosa em seus ouvidos como que tendo por propósito único dissolver seu cérebro.

Aqui está!”, disse sorridente o garçom pondo a garrafa na mesa e ao lado o copo com limão e gelo, enquanto Pereira agradecia automaticamente e sem o menor sentido de gratidão. Sentindo um persistente gosto acre na boca, ele despejou a bebida no copo e tomou de uma única vez enquanto ainda espumava. Esperava que surtisse o mesmo efeito de algum efervescente antiácido. Entretanto, afora os arrotos mal disfarçados que soltou, nenhum alívio concreto aquilo trouxe em seu estado. “Ao menos estou mais lúcido”, refletiu enquanto tornava a encher o copo, sob o olhar reprovador das pessoas na mesa ao lado, que temiam pela emissão de outros sons asquerosos. Resolveu então que comer algo talvez ajudasse. Chamou novamente o garçom que, dessa feita, não chegou sorridente como antes.

–  Pois não, dotô. – ofereceu-se lacônico o garçom.

Traga-me uma porção de... de... – iniciou Pereira seu pedido, enquanto tentava decidir por alguma coisa.

Quer outra porção de calabresa acebolada? – sugeriu o rapaz, tentando fazer seu serviço.

Não, obrigado. É muito ruim para vomitar depois. Me traga bolinhos de bacalhau. – respondeu Pereira, apontando a direção dos banheiros e esboçando um sorriso naquilo que pensou ser uma piada sobre os desastrosos efeitos que o assolaram havia pouco.

O garçom não achou nenhuma graça. Anotou o pedido e saiu balançando a cabeça negativamente enquanto resmungava alguma coisa que foi engolfada pelo som da música. Seu volume aumentara justamente naquele momento e a dor de cabeça de Pereira acusou rapidamente o golpe. A cada nota mais aguda de um solo de trompete que rompeu no ambiente, agulhas pareciam perfurar toda sua caixa encefálica. O repique floreado de baquetas, num trecho de percussão, parecia estourar em algum ponto qualquer na base de sua nuca.

Os bolinhos de bacalhau foram servidos com toda a pompa que um pequeno cesto de vime e alguns guardanapos engordurados poderiam dar a tal iguaria. Distraído, Pereira pôs o primeiro quitute entre os dentes e percebeu, já quando sua boca ardia, que ainda era cedo demais para serem saboreados. Enquanto os assoprava à distância, notou o ar decadente do lugar que cedera seu velho glamour aos efeitos de anos sem uma reforma adequada. A dor de cabeça instalara-se de vez e agora já reinava soberana perante os demais sentidos. Tentando distrair-se de sua sina, passou a examinar os fregueses alojados nas mesas em frente. Agora, já degustava os bolinhos de bacalhau que, não tão quentes, permitiam-se serem apreciados.

No canto, à direita, um casal de jovens enamorados fundia-se num beijo tão arreganhado que mais parecia que a mocinha procurava um chiclete seu perdido no fundo da boca do acompanhante. O rapazinho, de envergadura muito maior, praticamente estava deitado, visando alinhar as bocas naquela batalha salivar. Inevitável perceber o volume em suas calças. Suas longas pernas abertas na posição assumida apresentavam ao público o indomado epicentro de seus desejos. Talvez ninguém mais estivesse assistindo àquele espetáculo erótico além de Pereira que, perdido de inveja por aquela ereção, sentia-se tão capaz de igualá-la quanto de disputar uma prova de maratona.

Para que me torturar?”, consolou-se, redirecionando seu olhar para o lado oposto do salão, onde alojavam-se três mulheres bem produzidas, muito maquiadas, calculadamente alinhadas, parecendo acreditar que realmente se passavam por balzaquianas bem resolvidas. O sarcasmo de Pereira mostrou sua face enquanto pensava. “Quarentonas que imaginam disfarçar a idade são como carecas de peruca. A quem pensam enganar? Gentinha ridícula!” Uma delas, entretanto, percebeu que ele as olhava e lançou-lhe um sorriso convidativo. Ele, mais do que depressa, virou-se na cadeira num movimento disfarçadamente casual.

Não sei nem o que estou fazendo aqui” censurou-se. “Gostava tanto daqui antigamente. Pensei que pudesse aproveitar bons momentos voltando a este lugar. Acho melhor ir embora” decidiu enquanto degustava o último bolinho de bacalhau. Tragando o derradeiro gole de água tônica, acenou novamente ao garçom, gesticulando no ar como se escrevesse com uma caneta imaginária num invisível papel em sua outra mão. O garçom, lançando à frente um meneio de cabeça, acusou que havia entendido o recado e dirigiu-se ao caixa para pedir o fechamento da conta.

Abrindo a carteira, Pereira sacou o cartão de crédito já imaginando o que aconteceria se ele não fosse aceito. “Aqueles filhos da puta já devem ter cortado meu crédito” imaginou. “O dinheiro que tenho mal dá para abastecer o carro e não vou gastar folhas de cheque. Só tenho duas e o banco não vai me soltar mais nenhum talão até eu cobrir o saldo” relutou diante das opções.

O garçom trouxe-lhe a conta e Pereira sequer conferiu o consumo ou o total da despesa. Entregou o cartão de crédito enquanto, procurando disfarçar o nervosismo, acendia o último cigarro do maço já desfigurado. O rapaz recolheu o cartão juntamente com a conta e dirigiu-se novamente ao caixa onde entregou tudo a um senhor ruivo que cuidava das finanças do lugar.

Eu podia ter pedido um maço de cigarros”, lamentou Pereira, enquanto observava com o canto dos olhos, tentando vislumbrar algum gesto ou atitude do ruivo do caixa que indicasse um eventual vexame pelo qual teria de passar. Nesse instante, chegou ao local uma animada turma de cinco ou seis pessoas que se prostraram justamente em frente ao caixa. Eufóricos, miravam por sobre o mar de cabeças que recheava o salão, na busca de algum lugar vago. Assim, do ponto de vista em que se encontrava, não foi possível a Pereira sondar o que se passava com o exame de seu cartão de crédito. De repente, vindo de algum lugar, surgiu ao seu lado novamente o garçom.

Dá licença dotô!”, anunciou-se o garçom, causando um sobressalto em Pereira que recolheu a papeleta para assinatura enquanto guardava o cartão de crédito. Ele, com o coração disparado pelo susto, suando frio pela ansiedade da espera e trêmulo pela bebedeira, sacou a caneta do bolso e rabiscou seu nome na papeleta. Sem olhar para mais nada, levantou-se e saiu apressado em direção à porta. 

Já do lado de fora, Pereira percebeu uma brisa refrescando a noite e o ar ainda cheirando a chuva. Chovera a tarde inteira, alagando vários pontos da cidade. Transitar de um lugar para outro ficara impossível horas antes e por isso ele havia resolvido parar naquela região esperando que tudo se acalmasse. Lá estando, lembrou-se do bar que anos antes tanto freqüentara e resolveu visitá-lo novamente. Teria esperado no carro se imaginasse o quão ruim seria sua estada lá.

Agora é torcer para que o congestionamento tenha diminuído” refletiu, ainda parado do lado de fora do bar. “Vou abastecer o carro. Mas se o caminho não estiver livre, com a pouca gasolina que essa miséria que eu tenho dá para comprar, não sei nem se chego em casa” calculou. “Maldita a hora que escolhi vir para este lado da cidade, ainda mais, duro do jeito que estou” arrependeu-se. Passou a caminhar apressado pelas calçadas molhadas, atravessando ruas por entre o trânsito, pois havia deixado seu carro estacionado a duas quadras do bar. Pôs-se num passo ligeiro e, ofegante, já sentia as batidas do próprio coração. O bombeamento ritmado de fluxos sangüíneos insuflava a dor de cabeça a impulsos cada vez mais fortes.

Chegando à esquina da rua onde deixara seu veículo, Pereira percebeu que não mais se justificavam seus temores. Não havia mais o que ponderar naquela complexa equação matemática que envolvia a quantidade de combustível que seu dinheiro podia comprar, a distância do trajeto e as várias possibilidades de congestionamento na cidade. Certo era, numa aritmética bem simples, que havia menos um veículo no local onde estacionara . “Puta-que-o-pariu! Roubaram meu carro!”, gritou Pereira com as mãos à cabeça.

Atônito e rodopiando em torno de si mesmo, procurava à sua volta como que tentando encontrar algum indício do que acontecera. Ao longe, viu aproximando-se um carro policial e decidiu interceptá-lo para anunciar seu infortúnio. As luzes da viatura avançavam pela rua numa lentidão torturante e, quando estavam a uns cinqüenta metros do ponto onde encontrava-se Pereira, ele saltou no meio-fio, gesticulando os braços acima da cabeça, provocando a atenção dos policiais. Um ônibus vinha em sentido contrário e tudo aconteceu muito rápido. Os sons da buzina e dos pneus queimando o asfalto não permitiram a Pereira qualquer reação. O pedestre desprecavido foi lançado metros à frente com o impacto.

As luzes em cima da viatura, agora estacionada ao lado do corpo torcido e ensangüentado de Pereira, pareciam um bizarro caleidoscópio. O motorista do ônibus, em frente aos faróis altos do veículo com o motor ainda ligado, era um vulto saltitante indo de um lado a outro em movimentos rápidos e desesperados. Os policiais que se postaram em torno do acidentado formavam uma só figura de sombras amalgamadas, cheia de braços e cabeças, num balé de gestos desconexos. Os curiosos que se aglomeraram ao largo, nada mais eram que espectros assombrando a paisagem. Tudo fazia parte de um conjunto de visões distorcidas que àquela altura brotavam dos hipnóticos efeitos de algumas fraturas, outras tantas lacerações e, no mínimo, uma concussão. Pereira, ali deitado no meio da rua, tentava alinhar as idéias que vagavam avulsas em seu pensamento. “O dinheiro não vai dar para a gasolina... Meu carro foi roubado... O cartão de crédito estourou... Bolinhos de bacalhau são indigestos... Preciso de outra dose de gin...” . Na verdade ele estava entregue naquela noite.


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