Sutura

A noite pareceu não ter fim, mas Helena conseguiu transpô-la. Tirou forças não soube de onde pra conseguir se levantar da cama e enfiar os pés nas Hawaianas rosa. Seu rosto desfigurado pelo flagelo noturno se resumia a duas olheiras gigantescas e indisfarçáveis.

Tinha que tomar um banho e se preparar pra mais um dia de trabalho na escola. Instantaneamente lhe veio a sala na qual daria aula e o rosto de Heitor, o aluno mais problemático da escola lhe sorria cinicamente.

Definitivamente se tudo que quisesse não fosse sair daquela cama onde passara as horas mais intermináveis de sua vida, preferiria se enfiar novamente nos lençóis e esperar quietinha por socorro.

O martírio da noite não tinha sido em vão, isso a consolava. Pensara e repensara em tudo o que ouvira e passara na noite anterior e nos últimos 2 anos, cinco meses e 3 dias. Agora sabia exatamente o que fazer diante da situação.

Sentou-se afundada no sofá com as pernas entreabertas e acendeu um Marlboro. Pensou mais um pouco, ficou olhando a fumacinha que subia, olhou pela janela e viu o dia ganhando força, tomou essa força para si e num gesto lento e solene estendeu o braço, alcançando o telefone e discou.

Do outro lado uma voz já conhecida atendeu rouca e sonolenta.

Helena apenas disse: "Pode fazer!" O silêncio reinou por alguns segundos e então desligou.

Em seu banho matutino, limpou-se de todo rancor, mágoa e ressentimento que a instantes atrás eram como camadas e camadas de fel lhe cobrindo o corpo. Menstruou também todo o verde amargo de suas veias.

Sentia-se agora pura, limpa, vazia de tudo que a afligia e estava em paz com sigo e com o mundo.

Nada. Nem Heitor, nem ninguém seriam capazes de lhe tirar a candura e o singelo sorriso dos lábios.

Secou-se demoradamente. Refletida no espelho do banheiro por entre os vapores do banho e mesmo com as indisfarçáveis, se viu mais bonita e mais preparada para a vida.

Voltou para o quarto e enquanto se vestia olhou para a cama onde Rodolfo dormia tranquilo.

Sem ressentimentos, ao sair beijou demoradamente seus lábios com peculiar doçura. Disse baixinho, “até logo amor” em seu ouvido e se dirigiu ao outro quanto onde alheio ao mundo dormia Pedro Otávio, seu filho. O abençoou com um beijo e foi pra escola.

No intervalo da aula, Neide, a babá de Pedro chama pelo celular: “Dona Helena, vieram aqui e prenderam o Seu Rodolfo. Eu não entendi nada, foram entra...”

“Eu sei “ interrompeu Helena. “Ele não paga a pensão do Pedrinho.”

“E eu criei vergonha na cara”, pensou.