Carta para o Fim

E tudo parecia tedioso. O mundo se tornou frio. Ele, taciturno e acabrunhante, seguia uma vida que muitos poderiam julgar agitada. Estava completamente envolvido com sua arte. Atuava, cantava, dançava, tocava instrumentos musicais, e ainda tinha tempo para farrear com amigos. Ele dizia que isso era sua vida, que nada mais justificaria sua existência nessa terra fétida, injusta e miserável.

Para Ele, tudo se tornou monótono. A arte havia se tornada monótona. Algo que realmente era improvável, já que Ele tanto comentava sobre sua arte, sua vida, sua razão.

O mundo havia se tornado frio.

Ele, tão sentimental, se envolvia fácil e rapidamente com pessoas novas, e sentia tanta falta, tanta saudade das pessoas antigas que conhecia há anos. Apegava-se demais a tudo.

Sua trajetória foi se tornando cada vez mais infame. Logo, Ele não via mais amigos, companhias, colegas que fossem. Não via mais nenhuma companhia.

Sentia-se só, no meio da multidão, só, em sua solidão.

Um sentimento demasiado infame, inexplicável, e que havia se tornado inquestionável.

Sua solidão, sua frieza, Ele sentia falta demais de tudo. Não havia motivação ou clareza em acordar em todas as manhãs para vivenciar mais um dia de experiências vazias. Uma vida vazia, cheia de nada.

Passou a não sentir falta de suas memórias, do passado que demonstrava uma ilusão de felicidade. Talvez uma ilusão de felicidade pelo fato de ser passado, e não atualidade.

Nada o motivava. Sua vontade existia, porém, alguma espécie de aura, de sombra infiel o deturpava, o impedia de reagir, de realizar suas prioridades artísticas.

Era um artista em crise. Decadente, miserável, não conseguia pensar em mais nada a não ser aguardar, contar os dias para que pudesse reencontrar seus companheiros de noite e extasiar-se com mais uma soturna noite solene, regada de ilusões e situações inusitadas, improvisadas, inesperadas.

Não conseguia mais se envolver, e estranhamente, não sentia falta desta sina emocional que o perseguiu dês de sempre.

Ele, não sentia falta de mais nada, vontade de mais nada.

Ele não queria mais nada, não sentia mais nada.

E, o único sentimento que restou foi à mágoa, por não sentir mais.

Triste por não sentir! É até irônico mencionar tamanha antítese.

Não havia porque viver!

Realmente não havia por que. Nem ilusões Ele possuía mais. Muito menos princípios.

Estava inerte ao mundo, robotizado, mecanicamente realizando suas obrigações cotidianas, e, depois, agindo como uma criatura desvairada, um animal praticamente, em suas noites infames.

Sentia-se só, além de tudo, só.

Miseravelmente só. E não buscaria novamente sua realização em um romance. Não. Não novamente.

O romance havia se tornado hipocrisia para Ele mesmo. Amar com o objetivo de completar uma lacuna que nem se sabia – nem nunca soube - como preencher.

O romance, que Ele tanto apreciava tanto se apegava, tanto significava para Ele, hoje não significava nada. Não sentia essa realização que sentia antes.

Não fazia mais sentido.

Nada mais significava nada. Ele considerava a idéia de suicídio diariamente. Mas uma gota de esperança ainda estava a gotejar no interior de seu ser, aonde tudo havia se congelado.

Seguia em frente, frio, cálido, taciturno como de costume.

E diariamente, estava a pensar em como tiraria a própria vida.

De que forma?

Dolorosa? Indolor? Lenta ou rapidamente?

O que escreveria em sua última carta?

Qual seria sua última mensagem para este mundo de miséria?

Não gostaria de ser mais um suicida clichê que se vê nos filmes e até na realidade, com frases como “adeus mundo cruel”, ou “essa vida não faz mais sentido”- frases que realmente se enquadravam em sua decadente situação-

Decadente. Fisicamente, emocionalmente, espiritualmente – mesmo sem credo algum – decadente.

As coisas mais simples e as complexas também não faziam sentido algum.

Nada fazia sentido algum. Miséria nenhuma descreveria sua situação.

Liberdade nenhuma descrevia o que ele buscava.

Talvez o fim.

Talvez fosse, realmente, o que Ele buscava.

O fim. Pois nada faria sentido, e Ele não possuía mais a empatia, a graça, o interesse e a curiosidade que possuía antes.

Vivia de vícios, frio, desvairado, extremista até.

Não havia virtudes para citar.

Não havia mais nada a dizer.

Ele tomou uma decisão. Ele, que não gostaria de sentir tanta dor, pensou e planejou tudo em seus mínimos detalhes, para que seu momento de realização divina não fosse interrompido na hora errada, no momento errado.

Não sabia que mensagem deixar para traz. Não iria embora silenciosamente, sem nada dizer. Não! Jamais!

Era vaidoso demais para não deixar o seu último charme nesse mundo.

E tentou escrever:

“Eu, que não sinto mais prazer nessa vida infame. Eu, que tanto vivi, tanto sofri, e por muitas vezes, até gostei de sofrer. Porque o sofrimento provava que eu estava vivo.

Hoje, não sofro mais, não amo mais, não odeio.

Não me interesso mais pelos mistérios que, hoje, parecem tão simples e planos.

Eu, que não sei mais o que dizer o que fazer e aonde fazer.

Eu, artista, que hoje, neste momento de libertação, de algo que não consigo expressar, não consigo mais ter empatia nem conhecimento sobre tudo que um dia vivi.

Eu, que amei tanto, e que amar tanto significava para mim. Este sentimento, hoje não existe.

E que o romance, as amizades, o coleguismo, as obrigações, os interesses, a arte nada mais significam.

Eu não gostaria de deixar o palco neste exato momento, porém, eu simplesmente não vejo mais motivos para atuar; pois minha personagem não significa mais nada para a platéia, nem para mim, ator, nem para o diretor, e muito menos para os companheiros que se mantém atrás das coxias.

Eu não gostaria de abandonar o posto tão importante nesta banda que significa tanto para mim. Não gostaria de deixar de cantar as músicas que escrevi, nem de tocar os acordes que compus. Mas estas músicas não entoam a melodia que um dia entoaram para mim. Estas músicas não significam mais nada.

Eu, que em palcos dancei, desesperadamente dancei, com minhas tão belas e nítidas companheiras. Estas bailarinas que estiveram ao meu lado, não somente nos palcos e bastidores, mas em minha vida, hoje, não significam nada para mim.

Eu, que de tantas poesias, poemas, crônicas e textos, de tantos pensamentos e filosofias, de tantos questionamentos e expressões, hoje, vejo que não existe mais nada dentro de meu pútrido ser que eu possa expressar.

Eu, que tanto festejei que tanto aprendi e ensinei que tanto me deleitei dos êxtases da vida noturna tão divertida que vivi, hoje, não vejo diversão em mais um trago, em mais uma dose, em mais um tiro, em mais uma queda.

Eu não sei para aonde vou, e sinceramente espero não ir a lugar algum. O objetivo dessa exasperada ação, é o de dar o fim a algo que não tem sentido. Não mais.

Pois seria hipocrisia viver, sendo que o fato de existir sem viver, é uma hipocrisia.

Eu cheiro as flores, e não sinto seu tão doce odor. Eu canto as canções, e não entendo suas letras e melodias. Eu ando pela rua, e não olho para frente, não olho para cima.

Eu beijo uma bela musa, e não sinto meu coração acelerar, não sinto a emoção fluir dentro de mim. Eu abraço um amigo, e não sinto a emoção fluir em mim, não sinto o prazer que um dia senti. Não me sinto seguro nos braços de ninguém. Não me sinto triste ou feliz. Não sinto cólera nem serenidade. Não sinto preguiça nem exaltação.

Não sinto excitação e tédio.

Eu não sinto!

E, eu só peço desculpas, por não conseguir dizer o nome de todos e todas e tudo que significou tanto para mim. Mas, para aqueles que estiveram ao meu lado, eu digo que significaram tanto para mim, que até me fazem entrar em dúvida neste momento, porém, tarde demais.

Mas, não quero existir numa vida na qual vocês não significam nada para mim.

Cheguei a certo ponto de que, posso dizer, francamente, que eu não consigo sentir mais nada por vocês. E por isso, não existe o porquê continuar aqui, somente em carne e osso, significando nada.

Eu sinto muito, mas para que tudo mude, eu preciso me retirar.

Uma vida sem prazer, sem emoção, sem cultura e arte, sem expressão, não é vida. Nem existência. Não é nada.

Não sou nada.

E por não ser, poupo o meu corpo de sofrer as restantes conseqüências.

E o devolvo a natureza de nossa vida.

O começo, o meio, o fim.

E que meu corpo sirva para algo afinal.

Que meu corpo seja o banquete mais doce, mais deleitoso para os vermes.

E que estes, degustem com o maior prazer de todos os espólios de minha guerra.

Pois, somente para eles, e para mais ninguém, deixo meu legado de miséria.

E no fim, todos são iguais a apodrecer.”

Terminou sua carta, e deixou-a aonde todos pudessem ver. Foi ao banheiro e tomou todas as cápsulas medicinais que encontrara.

Sentou na varanda do apartamento no qual vivera todos estes anos, e olhou para a paisagem, enquanto esta se embaçava, se distorcia.

Seus sentidos enfraqueciam aos poucos, seu corpo se tornava insensível e relaxado.

E olhou a paisagem evanescer, até que a escuridão tomasse conta de tudo que restou.

[02/10/2009]

Ironic
Enviado por Ironic em 05/10/2009
Código do texto: T1849947
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