Camotim
Rúbia volteava, murmura palavras soltas, entrava e saía de ruelas ladeadas de folhas, gesticulava vagamente, sentava os olhos curtos na pracinha minúscula, e visionava o ‘tibum’ da madeira nobre que dera vida aos bancos do Trianon. Bichos, aves, árvores e o matagal cerrado nem parecia estar encravado no coração capitalista do mundo tupiniquim.
- Aí, gata, vou te estrupar, gata – de entre ramagens surgiam a voz e seu dono - mó rabão tu tem, heim, gata?! Tava aqui só te filmano, gata. Essa tua cara de tesão me deixa assim, gata. Aqui, ó... ? Saca a dureza, gata. É tudo pra você, mina turbinada. Tudo teu, eu sei que tu gosta...
Rúbia botou os olhos de águia a vasculhar o entorno e viu que o melhor seria facilitar a tarefa. Sair machucada seria muito pior, detestava violência; melhor ser estuprada e encurtar a situação. Chegasse em casa, lavar-se-ia. Esclareceu, então, que despir-se não ia, ele que se mexesse, mas que lhe não rasgasse nem estragasse sua calcinha, presente do namorado marombado e michê.
-Tu é gostosa , heim, mina? Puts... Puta delicia, mano... É tu que manda, puta gostosa, mano...
Rúbia esbaforiu-se, tentou esticar o rosto para longe do corpo e com repulsa verdadeira na fala, perguntou:
-Cê foi no churras esses dia?
- Firmeza, mina... Aí uma verdade. Posso saber por quê? – respondeu quase sem perceber, pois, estava concentradíssimo no ato que se iniciava.
-Nun dá pra sacar na minha cara?- Rúbia, irônica
-Mó vacilo, ai mina, nun dá não... Tu tem uma parada aí de boa de purtugues na ixcola... Tu quer ir um churras mais o bacana aqui, é? –Caio alucinado na execução da única coisa que aprendeu na vida e certamente jamais aprenderia outra.
- Não, é que tu tá com um quilo de carne pobre entre os dente... –Rúbia suprimiu o adjetivo ‘porco’, talvez lhe rendesse um soco e ela odiava violência física; intelectual tudo bem; com esta convivia pacificamente como se fosse possível dissociá-las 'a olho nu'.
-Pô, tá humilhano eu aí... Tô por drento de tuas parada, hein, mina... Quer dixconcentrar eu, é? –Caio esturrava e se mantinha firme no seu propósito pacífico de paz e bem.
-Socorro! Pulicia!
Em cima da pontinhola, passavam dois policiais, e, Rúbia lobrigara-os entre a densa ramagem, enquanto esticava o pescoço na tentativa de botar o nariz distante da sofreguidão de Caio.
-Cê agora vai ser preso, asqueroso – avisou Rúbia.
-Preso por quê? Tu permitiu, gata...
-Nun consenti nada não. Apenas não reagi. Sou menina... Olha seu braço e olha o meu. Eu ia reagir pra apanhar?! Tu vai se virar com os homi, troglodita xerém com leite.
Rúbia gritou novamente e teve o grito entrecortado pela violenta estocada de Caio; nada mais ele sabia fazer. Os policiais armados, escondendo-se, mostrando-se, faziam firulas entre as moitas na tentativa de encontrar o crime.
-Eu rodo, mas tu também roda, gata... Eu vi tudo. Tu e tua mãe mataro o véio... Eu ia te comer naquele dia... Eu já tava mocosado no telhado... Tava doidão por ti, gata. Ia dar geral na tua casa...
-Mãos na cabeça! – a polícia encontrava a cena.
Num átimo os policiais dominaram e algemaram Caio. Dissimulando, Rúbia gritou ‘ai que susto’ e iniciou desarma moral à polícia. Que não precisava ser tão truculentos com seu namorado! Prestar, Caio não prestava mesmo, pobre de caráter; mas daí a ser algemado, agredido e humilhado pela polícia, isso não, ela jamais aceitaria; que os policiais esperassem para ver do que ela era capaz, moveria mundos e fundos para que perdessem a farda; mera briguinha de namorados juvenis. Num esforço máximo de convencimento, abriu-se em desesperado pranto, fez-se ainda mais menina e encheu de soquinhos comoventes os policiais. Estes se olharam e se compreenderam: era final de expediente, precisavam se livrar da indumentária e do suor que lhes escorria e lhes colava a carne pelas ultimas doze horas:
-Tão liberado. Vaza! Mas se nóis pegar vocês por aqui de novo, nois prende e arrebenta.
Pegaram o rumo sul e logo chegariam em casa se não fosse o intrincado acerto entre vizinhos. Rúbia se dizia de boa linhagem, européia, e, se ele, Caio, não fosse tão cabecinha de aeroporto já teria sacado só pela sonoridade do sobrenome dela. Enquanto ele, Caio, coitado, um autêntico vira-lata, lá das bandas de cima. Este se defendia, dizendo-se não tão lá de cima assim, aqui chegara pirralho, coisa de menos de um ano. Mas seus pais venceram na vida, tinham casa bem localizada, carro até bom... Tanto que eram vizinhos:
-Nois tá na igualdade, mina. Eu e tu e tua coroa... Mor firmeza tua coroa, heim?
-Se tu se meter com minha mãe eu te mato, cara... Igualdade entre tu e eu? Viajô, cara, viajô...
-Tô falando assim nas parada, sacô?
-Nem assim, nem de jeito nenhum, Caio. Ai, vamo no Ibira.
-Vamos terminar, né, gata?
Rúbia desejava saber tudo o que Caio dizia saber. Não sabia bem porque, mas precisava. No Ibira achariam um escondido bom para voltar e aprofundar-se no assunto. Encontraram. Caio não perdeu tempo, nem se despiu nem despiu Rúbia. Perda de tempo; e recomeçou o que havia sido interrompido há pouco.
-Você e muita gostosa, gata!
-Tu me queria desde aquele dia, é?
-Tu ne fraca não... Esquartejou teu veio inteirinho, hein?
-Eu só cortei os dois braços que já tavam descarnado.
-Eu vi. Tua levava pra drento as baciada de picadinho. Pra fazer o quê com tanta carne?
-Jogava no vaso sanitário, espertão... Ai! Divagar com essa porra aí, mano...
-Tu é muito gostosa, mina... E perigosa...
-Eu não fiz nada. Só ajudei minha mãe despejar a panela de água quente no ouvido do papai...
-Ai, tu acha pouco, mina? Gostosa mermo, hein?
-Que mais tu viu?
-Vi tua coroa cavano... Deu mor medo... Depois tu jogando os osso na cova e enterrano a bagaça, mano... Depois lavano tudo... Deu mor coisa ruim...
-Devia ter ido ajudar a gente... Para de babar!
-Acabei, mina. Mor fermezona ai, ó...
Rúbia contou à mãe que o vizinho Caio sabia do segredo. A mãe, professora universitária, viúva do sábio reitor, propôs um ajuste baseado na solidariedade e liberdade, como se os homens nunca houvessem vivenciado a corrosão e a degradação capitalistas. Para a felicidade e liberdade dos três, os três se ajudariam. Os três ocupariam a mesma cama, Caio decidiria como e com quem transar. E avançaram para o século XXI prontos à felicidade, pois, o Brasil é um jarro fúnebre à disposição de todos, um camotim de imensas e infinitas dimensões...