Migalhas de pão na praça
Na praça, um senhor solicitou-me atenção por seus calmos gestos e por sua bengala quase tão negra quanto as nuvens que se agrupavam acima. Semanalmente visitava minha mãe em Saudade, sempre aos Domingos, quando ela me preparava um apetitoso almoço. E sempre à tardinha, passeava sozinho nessa pracinha antes de retornar à minha moradia.
Sentado no banco, observava os passarinhos nos sombreiros cantando enquanto outros pediam algumas migalhas aos raros visitantes que freqüentavam aquela praça. O senhor de bengala era um deles. Sozinho com umas duas ou três sacolas e acompanhado de muitas rugas, jogava migalhas de pão às aves.
Enquanto observava de perto o alvoroço dos pombos com o velhinho, outras pessoas se afastavam aparentemente enojadas e desconfortáveis com o momento. Talvez nem fosse o comportamento dos pombos e suas fezes que ameaçavam as roupas domingueiras, mas a alegria do velhinho em alimentá-los.
Era visível naquele senhor o semblante feliz no sorriso aberto e nas palavras pra si que proferia baixinho. Estava próximo a ele, mas não tão perto à curiosidade de ouví - lo, pois uma figueira altíssima nos dividia.
No seu banco: somente ele, as duas ou três sacolas e os pombos que ali pousavam, ou então unidos ao chão desnudo a compartilhar os farelos de trigo.
Diferente do seu banco, no meu figurava uma sacola com o meu jantar, preparado por minha mãe com as sobras do almoço; além de mim, a ouvir o barulho das poucas crianças que por ali brincavam.
Eram quatro as crianças que se divertiam no ralo gramado no campinho próximo àquela pracinha. O tempo estava nublado e dava pra sentir um ventinho gelado.
Os três meninos e a menina pareciam não se importarem com a chuva prestes a cair, da mesma forma que parecia o velhinho naquele banco. A ventania levava a bola para longe, as crianças corriam e voltavam sorrindo, todas se divertindo. Elas nem pareciam notar a presença das outras pessoas: a minha e a do velhinho, tão pouco do frio que passariam naqueles trapinhos que lhes cobriam a pele. Deveriam ter em média oito anos, não carregavam identidade, nem chinelo aos pés.
Cerca de quinze minutos apreciei aquelas crianças a brincar, deixei aos pombos, o velhinho. E somente voltei os olhos para aquele homem solitário ao banco, quando dei - me conta que ele me olhava de soslaio, timidamente. Acho que me julgou, ou melhor, receou que fosse uma daquelas pessoas que chegando à praça a passeio, percorriam os olhos nas suas roupas, gestos e migalhas que distribuía aos pombos.
Lívido engano, pois me preocupava sua solidão àquele frio banco, apenas de concreto, e que me levaria a crer ser sua cama daqui algumas horas.
Em disfarce, procurei abrigo no jogo de futebol infantil, mas as crianças haviam sumido em busca da bola na ventania. Olhei aos lados, os outros cinco ou seis bancos todos vazios e fixos, apenas porque eram de concreto. Pois a ventania silvava fortemente nos arbustos das árvores, mesmo que poucas na praça.
Já tomado por constrangimento, corri os olhos no livro que tinha em mãos e refugiei-me à figueira da praça. Ela ficava bem na minha frente. Porém, o artifício durou pouco tempo, a ventania aumentou e folhas caíram ao chão, descortinando a minha imagem ao velhinho.
Nesse instante, pudemos nos ver intimamente, ambos sentados em lados opostos e sós naquela praça. Mal saberia o que ele pensava sobre mim. Fiquei pensando se ele tivesse lido durante toda aquela tarde minha inquieta indiscrição. Por que desde que chegara, meu passatempo fora apenas observá-lo, dar vigília àquele pobre senhor. Meu pensamento era a única coisa que não voava no vendaval.
Alguns pingos de chuva se precipitaram, juntamente com os olhos do velhinho que procuravam num relance as suas sacolas. Suas mãos agarraram o pacote de pão, provavelmente amanhecido, e o fechou rapidamente guardando-o dentro de uma das sacolas plásticas. Elas davam àquele velhinho uma aparência sôfrega, dum cristão a mendigar. Eram mãos enrugadas e calejadas que poderiam contar fielmente as lutas e batalhas por quais devam tê-las usado. Vi-as unidas fortemente à alça da sacola que continha os pães, as outras duas estavam ao seu lado, sem muita importância perdidas com algumas roupas e um cobertor.
Os pombos saíram em revoada, buscaram abrigo. As crianças não apareceram mais no campinho, mas vi a bola ao longe perdida.
A chuva caía fininha, quase nem molhava, mas já dava pra ver a areia da praça úmida, coberta em parte pelo verde das folhas. Continuei ali sentado, senti-me renovar a mente, a folhagem me reluzia à retina.
Agradou - me a chuva, sorri sem um porquê. Pensei nas coisas boas da minha vida, nos outros trinta e sete anos de brincadeiras, estudos e trabalhos, sem um tempinho como esse pra refletir. Parar e não fazer nada, para apenas contemplar, agradecer pela minha vida.
Olhei aos lados no intuito de encontrar um olhar amigo, um sorriso parecido com o que carregava. Encontrei no meio daquela praça, vazia, somente o velhinho. E apesar de não me retribuir, de não me ouvir, nem ao menos saber - lhe o nome... sua presença me agradava. Uma áurea parecia destoar do seu corpo esquecido, que há tempos não deveria ser banhado.
Agora com a chuva já contínua e caindo num ângulo similar do que as aves rasavam na areia, o rio próximo à praça aos pouco fazia desaparecer suas margens. Eu via aquele homem aos poucos também molhado. A água deveria estar lhe purificando o corpo, senão ao menos seus pensamentos. Pois algumas horas ele estava com a mesma postura naquele banco de concreto, esquecido. E estava ainda agarrado àquelas sacolas, como a conservar um tesouro. Mantinha-se a olhar fixamente num ponto, parecia distraído.
Imaginava o quanto àquele pobre senhor deveria estar com fome, com frio e com nada além daquelas migalhas de pão. Contemplava sua face pensativa e encantadora. Era bondoso, eu saberia. Imaginava.
Dei-me conta da noite eminente quando um raio clareou os céus e fez-me levantar do banco na mesma hora. Saí rapidamente com destino à minha moradia. Olhei pra trás o velhinho não se mexia, no mesmo banco e cada vez mais encolhido. Um ritual o envolvia... a água, o pão, as mãos unidas como se estivesse a rezar.
Notando que ele não sairia daquele temporal, abriguei-me na figueira, ponto central da praça para vê-lo. Mas por ali fique pouco tempo. Eram muitos pombos na figueira pousados tentando abrigar-se das gotas. E sem tentar contá-los, me obrigaram a ir embora pra minha casa. Antes da partida olhei pela uma última o pobre homem e rezei por sua alma... a única que me fizera companhia por todo aquele dia. Enfim, deixei Saudade.
A figueira e as demais árvores, sombreiros em maioria perderam muitas folhagens com a ventania. Desse modo, os galhos estremeciam assim como os relâmpagos ao céu. Nesses clarões, a imagem do velhinho se distinguiu bem pra mim e ainda pude ver seus pés nus, as calças rasgadas, e a barba já branca por cerrar, que guardei na memória sem muito esforço.
Durante todo o dia em que estive ali, sentado com o caro velhinho, e observando seu comportamento, por vezes nos confiamos ao silêncio. Sim, porque mesmo sem sabermos os nossos nomes, tão pouco nosso endereço, havia uma certa comunhão, talvez por mim tida quimérica.
Somente os pombos lhe provocavam emoção para ao menos se mexer. Eram as únicas criaturas que lhe podia fazer piscar, que lhe apontariam vida naquele corpo. Estava crente do homem que tinha visto, da partilha que tive com ele naquela praça. Deixou-me saudade.
Então voltei àquela mesma praça em todos os domingos após as visitas na casa de minha mãe. Nunca mais vi o velhinho. Somente as aves. Elas eram, além de mim, as únicas criaturas que visitavam aqueles bancos e embranqueciam o que aos olhos alheios parecia sujo. Deixou - me saudade o velhinho... mas deixou à praça por obséquio de uma doce alma, o que não quis somente pra si: as migalhas de pão. E que a cada domingo, quando voltava, podia vê-las multiplicadas nas tantas asas que cobriam a areia sempre úmida daquela praça.
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