ERA UM SANHAÇO, SÓ !

ERA UM SANHAÇO, SÓ!

Plantei a semente. Germinou. Estendeu seus ramos para o alto. Recebeu a chuva. Fortaleceu-se com o humus da terra. Cresceu e frutificou algumas primaveras depois.

Tudo isso demanda tempo, cuidado e amor. Ano após ano lhe olhava o porte, até que, com alegria imensa, vi flores em seus ramos. Depois, os frutos pequeninos ganhando forma; vi sua pré-adolescência e a puberdade; o rosa vivo tingindo-lhe as faces, na maturidade.

Em pencas tomaram conta de todos os espaços da ainda jovem árvore. E esta, orgulhosamente, ostentava os frutos da terra, mal dando conta de sustentá-los em seus galhos arcados com o peso deles.

Foi a vitória da paciência, na espera do tempo certo da natureza. Mais alguns dias durou essa espera. Fiquei afastado durante bom tempo para vencer a tentação de apanhar os frutos ainda verdes. Quis deixá-los madurar no ciclo que a mãe natureza guardou em sua sábia doutrina. E, depois sim, saboreá-los, um a um, deliciando-me com o dulcíssimo sabor do fruto sadio e maduro. Era o prêmio de lhe ter plantado a semente e pela persistente espera em deixá-la crescer e frutificar.

Vencido pela curiosidade, finalmente, desci ao pomar. Aproximei-me da arvorezinha e, com grande tristeza, vi grande parte dos frutos madurando precocemente por causa dos beliscões que lhes perfurara a pele e a polpa. Alguns, já em vias de apodrecimento, por força dos ferimentos neles abertos, estavam caídos ao pé do arbusto. Fiquei indignado. Uma revolta surda apoderou-se de mim. Não muda, pois alguns palavrões xingando a mãe dos pássaros devem ter ecoado pomar afora. Senti-me como que encarnado na pequena árvore. E, com ela, sofrendo pelos frutos tão cuidadosamente preservados das intempéries, sendo agredidos por eles, que nada haviam feito para merecê-los. Retirei os frutos machucados para não contaminar os sãos.

No dia seguinte, mal o sol estendeu seu benévolo olhar sobre a terra, fui ao pomar e, de longe, descontraídos, alegres e felizes porque Deus lhes mandara alimento, observei um casal de sanhaços fazendo sua refeição matinal a fartas e firmes bicadas nos frutos da minha árvore. Beliscaram uns e outros, achando cada qual mais saboroso.

Tentei afugentá-los com meus xingamentos, mas mal lhes virara as costas, os dois endiabrados voadores tomaram novamente assento em sua mesa.

Dia após dia, sucessivas tentativas foram feitas para por em fuga esses amiguinhos do alheio. O espantalho, um pano vermelho amarrado a um galho, parece que lhes serviu de chamarisco. Simplesmente lhe não fizeram caso. Entre um namorico e outro, novos frutos sucumbiam à ação vandálica dos “pestinhas” alados, que sangravam como se lhes tinham enterrado no coração o bico pontiagudo.

Tanto teimaram os dois namoradinhos que conseguiram enervar-me de vez. Tomei da chumbeira e... zás. Um estampido fraco. Uma nuvenzinha de fumaça cortinando o espaço livre entre a espingarda e a árvore. Um passarinho cai do galho onde momentos antes pousara. Alguns suspiros e dois olhinhos simpaticamente inocentes que se fecham para sempre. Um bico fechado que nunca mais machucaria frutos. Penas que esvoaçam ao vento como se fora a alma do sanhaço diluindo-se na natureza.

Eram dois pássaros adultos que, alegres, voavam juntos; pousavam juntos; faziam seu ninho juntos. Naquela manhã o casal pousara no mesmo galho. A trajetória do chumbo fez com que um deles não mais alçasse vôo. Sucumbiu à voracidade da minha ira. Morte estúpida, quase criminosa. Morte levada a efeito pela mão de um ser humano que se diz inteligente. Para desculpar sua consciência, armou-se do pretexto de que essa morte fora em defesa da preservação da vida da mesma natureza, em outro plano. É o consolo que resta. O companheiro do desafortunado pássaro assustou-se com o estampido e voou. Voou sem despedida; voou sem parar; sem olhar para trás; voou sempre, até alcançar a orla da mata, onde se sentiu seguro.

Durante os dias seguintes foi visto um sanhaço triste pousando aqui e ali nos galhos de árvores vizinhas. Parecia estar procurando a companheira. Não podia entender porque ela não mais voltara para fazer-lhe companhia nas alegres revoadas matinais. Já não tinha mais a fiel companheira para quem fazia festa quando se dispunham fazer novo ninho.

Estava só. Uma solidão doída, injusta, tão absurda quanto lhe seria a vida daqui para frente. Uma solidão motivada pela mão do homem, que não soubera controlar seu mando absoluto sobre os bens da natureza. Sua companheira pagara com a própria morte o alimento que a natureza lhe dera para garantir a vida.

Ontem era um casal de sanhaços felizes que colhiam frutos no pomar para sobreviver à fome. Hoje é um sanhaço, só, que voltou ao pomar para tentar entender o sumiço da companheira, mãe dos seus filhotes! .

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 01/10/2009
Código do texto: T1841597
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