A morte de Anselmo
Agora com Juarez caído, Mamuleque saiu de casa. Examinou o animal capturado. Tocou com a ponta do pé, para ver se ele reagia. Parecia que ele havia caçado a fera. Pedrão segurava a mão. Voce pensa que dar soco não dói? Dói pra cacete. O bicho tinha um queixo pontudo. E foi lá que os nós da mão acertaram. Foi bom assim: se pegasse no dente podia abrir um lanho dificil de fechar.
Melhor levar ele embora, botar no carrinho de mão e carregar para longe. Quando acordasse não ficaria por ali enchendo a paciência. Foi nessa hora, ajudando a levantar o corpo de Juarez, que Subuti sentiu sua perna estalar. Uma dor aguda, como um tostão na coxa, só que no lado de dentro. Não disse nada, porque não gostava de incomodar, e foi mancando devagar até a rede. Deitou para nunca mais levantar; quando tentou sair da rede, alguns minutos depois, viu que sua coxa direita estava dividida em duas partes que formavam um angulo obtuso unidas apenas pela carne frouxa que dificilmente as mantinha juntas. O que seria? Ficou quieto, na rede enquanto os outros se encarregavam do corpo de Juarez, levando o carrinho de mão para longe.
Então seria ali, naquela rede, olhando o terreiro que havia varrido e o forno caipira redondo que aconteceria o fim do mundo, o seu fim de mundo particular, pessoal e intransferível. Lembrou-se vagamente de que o médico havia falado de metátese na coxa, palavra que não entendia muito bem. Imaginava agora a metátese, roendo um ponto do seu osso, até não ficar nada, até o osso quebrar. E não havia mais como consertar.
Em pouco tempo se acostumou; parecia que aquela rede era o seu lugar natural, aonde poderia viver muito bem o resto dos seus dias. Até que não estava doendo muito; sentia uma ardência até agradável. Se divertiu com a idéia de que a perna quebrada poderia facilitar muito a posição de lótus, se quisesse meditar. E porque não meditar? Estava na condição ideal, com a cabeça no lugar, consciente do que estava acontecendo. O que não sabia é que era só o começo. Estava no começo do processo da morte, que é real e concreto. As pessoas pensam nela como algo abstrato, uma vaga figura desfocada. Mas ela quando vem é concreta. Um vaso entupido, um osso que quebra, o sangue que não é depurado; êmbolos de medula gordurosa obstruindo o fluxo de sangue; o oxigênio que não chega aos tecidos; o coração que simplesmente pára de bater. E aí, o saco de células está perdido. Sua comunidade fica inviabilizada; não poderá continuar existindo. Se desfará; devolverá os seus elementos à natureza, ao meio ambiente. O que é matéria retorna à matéria. O que é luz retorna à luz. O que é escuridão, para onde retorna?
Subuti, Anselmo-Subuti estava tranqüilo. Poderia morrer bem; a sua vida resolvida, os seus bens herdados, os seus pertences e as suas relações desfeitos. Sentia-se capaz de lidar com aquela tarefa difícil convenientemente. Mas, em algum lugar do seu ser persistia a convicção de que era imortal. O que seria? Ainda um preconceito que o acompanhou por toda a vida? Julgava estar livre de preconceitos, mas ainda deviam haver alguns. Imortal, o ser que pensa, raciocina, encontra explicações para tudo, mesmo que sejam absurdos? Imortal, a consciência que qualquer química altera, como o álcool, as drogas, a fome, a raiva, e que é capaz de cometer barbaridades e violências e assassinatos?
Não gostava de se sentir imortal. Queria assistir-se morrendo e ter a convicção de se estar desfazendo; sentir a consciência se diluir no infinito. Seria isso um preconceito também? Ter um fantasia sobre como seria a passagem para o outro lado?
- Ó vós que partistes para o outro lado!
Estou abandonando o maior de meus males, o corpo de carnes impermanentes. Estou chegando em casa.
Mas não seria tão fácil. Ainda ia ter que sorver um pouco do sofrimento que é parte do ar que se respira, que é tão natural de se absorver como o ar que se respira.
Ficou o dia todo na rede, sem que ninguém se lembrasse dele. Depois veio uma vontade insuperável de urinar. Não conseguia mais se levantar; agüentou o quanto pode, até deixar o fluxo escorrer entre suas pernas. Quentinho bom que depois ficou gelado. O liquido escorreu, empapou o seu manto, filtrou pelo tecido da rede, e fez uma poça no chão.
Ficou claro que Subuti não estava bem. Pedrão viu a poça, sentiu o cheiro da urina, e achou esquisito: o candidato a monge havia pirado de vez?
- E aí, mano velho, curtindo uma de solidão?
Subuti olhou de lado e mostrou os dentes num sorriso singelo. Se Pedrão tivesse a capacidade de ler sentimentos teria visto um pedido de socorro. Mas Mamuleque tinha, e viu, estampado em seu rosto, uma enorme expressão que significava: “me ajude “.
- O que foi, meu tio, está passando mal?
Passando mal é modo de dizer. Estou passando bem, acontece que estou morrendo. E pode-se morrer sem passar mal. É uma coisa natural, como nascer, como comer, como respirar, pensou Subuti. O que atrapalha é essa vontade de mijar.
- Quer ir ao banheiro, Anselmo? - disse Mamuleque, tentando levantá-lo - deixa ajudar.
Então viu a perna desconjuntada, como se fosse um amarrado de panos, uma perna de boneco de mamulengos, que não fazia mais parte de um corpo.
- O que foi, Anselmo, voce caiu?
Subuti não queria mais falar. Queria morrer sem ter que emitir nenhuma outra palavra. Mas teve que responder:
- Não. Ela quebrou sozinha. Tinha uma metástase do câncer nela. Ficou fraca e quebrou sozinha, quando estávamos levantando Juarez. Mas eu acho que posso passar sem ela. Fico aqui na rede, sem incomodar a ninguém. Faz um buraco na rede e bota uma lata em baixo, para eu fazer as minhas necessidades. Fico aqui até o fim.
Mamuleque pensou em levá-lo até um hospital. Quem sabe não tinha um jeito de curá-lo, botar uma perna nova em folha nele? Mas não era dado a iniciativas heróicas. Se Subuti havia determinado de um jeito, não seria ele a contrariá-lo. Mas foi chamar Jainito, o guru do moribundo. Cabia a ele decidir.
Jainito desceu das alturas em que se encontrava meditando e foi lá fora olhar. Não disse uma palavra. Apertou as mãos de Subuti, com uma espécie de olhar compreensivo de mútuo entendimento. Mas Mamuleque cobrou uma decisão. Jainito se afastou um pouco, para que Subuti não o ouvisse:
- Não adianta levá-lo para o hospital. Vai morrer de qualquer jeito. É um paciente terminal. No hospital vão dar remédio para ele dormir até a hora da morte, que não se sabe quando vai ocorrer. E ele vai perder o grande momento, que todos esperamos há tanto tempo. É melhor ele ficar consciente e assistir a tudo. Vamos deixá-lo ai mesmo.
Certo, chefe, ordens são ordens. Mas será que esse cara sabe o que está fazendo? Tão cheio de si. Mais senhor de si que o próprio médico. O quê que ele entende de câncer. Ele é médico? Será que não tem um jeito? Que a ciência não evoluiu, que não inventaram um novo remédio, uma perna artificial? Será que não vale a pena qualquer esforço para continuar vivo mais um pouco? Mamuleque pensava, enquanto fazia o furo na rede. Arrumou uma lata de margarina de vinte litros e colocou em baixo, calculando a trajetória futura dos dejetos. Já estava fedendo. Daí a poucas horas o fedor seria ainda maior. Já podia ver as moscas voando e os urubus rondando a casa a espera de uma carcaça boa para comer. E o corpo, o que fariam com o corpo? Será que não vai dar problema com a polícia? E a família dele? Será que não iria encrencar?
Subuti olhou e sorriu, como sempre fazia para as pessoas. Era a sua característica: o irmão sorriso. Não se sentia mal, apesar do cheiro de urina, que era a única coisa que poderia atrapalhar um pouco a sua pretensão de morrer em paz. De vez em quando sentia uma onda de calor subindo pelo meio da barriga, como um susto sem motivo. Mas o motivo era óbvio: a morte, espreitando, ou a sensação do momento dela. O coração disparava um pouco, e logo voltava a se acalmar. Até agora estava indo bem. Achava que ia morrer logo. Mas esse logo poderia demorar muito. De noite, Mamuleque veio trazer um pouco de canja. Por essa ele não esperava. Achava que não se pode comer quando se está morrendo. Ainda mais canja, feita com a carne de um animal. Mas estava com um pouquinho de fome. E comeu.
No dia seguinte, Subuti ficou a manhã inteira dormindo. Quando acordou sentia-se bem. Tentou levantar e, de repente, uma realidade pesada caiu sobre ele: lembrou da perna quebrada e de que estava morrendo. Que pena, queria tanto varrer o terreiro. Viu algumas folhas caídas, o pó ajuntado, a desordem se instalando; e não podia fazer mais nada. Mijou e escutou o ruído do liquido caindo na lata. Estaria cheia? Não fosse pela perna, diria que estava normal, o mesmo Subuti de sempre. Mas o cheiro estava cada vez pior. Urina, fezes, suor, uma inhaca de amargar.
Pedrão lembrou de que tinha uma outra rede guardada na casa de um amigo, um dos poucos amigos que ainda restou. Foi la pegar. Com Mamuleque, tirou Subuti com cuidado, após terem lavado seu corpo do jeito que foi possivel. passaram uns perfumes, uns repelentes de mosquito, um pouco de talco, e o trocaram de rede. Um alívio, sentir-se limpo. O corpo ainda quer comodidades, mesmo que esteja morrendo. Pedrão lavou a rede e botou para secar ao sol. Daí em diante trocariam a rede, e banhariam Subuti, todos os dias, enquanto Jainito permaneceria imerso em suas viagens etéreas por outros mundos. Esse guru esta precisando pegar no pesado, pensou Pedrão. Por exemplo, despejar a lata com as urinas e as fezes de Subuti, no buraco de cocôs de Mamuleque. É, vou colocá-lo para trabalhar amanhã.
Jainito aceitou trabalhar sem problemas. Tinha um quê de pernóstico, mas sabia que esse era o seu defeito, e lutava para combatê-lo. Carregava a lata de dejetos com toda a humildade. Ajudava a limpar o corpo de Subuti. Passou a varrer o terreiro para que o velho admirasse a limpeza e o domínio do homem sobre a desorganização. Era um prazer ajuntar todas aquelas folhas e carregá-las para o monte que haveria de fornecer um bom adubo no futuro. Meditava trabalhando, porque um trabalho compassivo, qualquer que seja ele, permite a meditação; e Jainito era escolado nisso. Podia desligar a cabeça em qualquer lugar, fazendo qualquer coisa. Esse era o grande segredo; fazer qualquer coisa como se não estivesse fazendo nada, sem expectativas. Passou também a cozinhar, preparando uma papa de arroz quase sem gosto que o doente comia sem reclamar, ou sem elogiar.
- Um arroz honesto - era o comentário.
Tomai o seu alimentos como se fosse remédio. Não se deixai levar pelos exageros dos cinco sabores, monges. Sê comedidos em tudo. Aceitai apenas o que precisardes. Não lamentais, nem choreis; deixo pra trás o maior dos meus males; o corpo e suas necessidades.
Não existe maior dádiva do que essa: morrer cercado de amigos, sem pendências na vida, com tudo resolvido. Podia encarar o futuro com tranqüilidade. A dor é suportável, a dor tem que ser suportável; o sofrimento físico serve para mostrar os limites do corpo e da alma. Um dia bom pode ser passado mesmo com dor. Seria assim Subuti, estaria tudo resolvido? Vagas recordações da sua vida passada vieram de um buraco escuro, para questionar os seus pressentimentos. Filhos, filhos, pra que tê-los? Em algum lugar sua filha estaria pensando nele. Estaria? Precisaria vê-la uma outra vez? Dúvidas, dúvidas; não poderia fraquejar agora. Ter mais um momento, mais um, apenas mais um, por favor, por favor, senhor. Não poderia fraquejar agora, na hora de subir ao patíbulo, que crime eu cometi, que crime, para que seja eliminado, sem dó, tenha piedade, estou acabado, acabado, senhor.
Mas é um sentimento humano. A dúvida, o medo do desconhecido. Subuti, é humano, aceite, seja humano. Chore, lamente, se cubra de cinzas. Não se cubra só com xixi. Eu não te abandonei, Subuti, eu estou aqui.
- Jainito, posso gemer? - perguntou.
Pode, pode, tudo é lícito, tudo é maravilhoso.
E Subuti passou a emitir um “ai”, baixo, conformado, resignado, que se repetiu a cada dois minutos, pelo resto do dia. Depois entrou em sono profundo. Já não se movia nem gemia. Urinava, mesmo dormindo, o barulho do líquido caindo na lata. Teria chegado a hora?
Não. No dia seguinte, permaneceu dormindo, com um movimento respiratório regular, o xixi caindo na lata. Não havia como alimentá-lo. É parece que vai ser assim. Vai definhar até morrer, sem comer ou beber água. Jainito pensou em levá-lo para um hospital. Sabia que lá enfiariam uns tubos em suas veias e o manteriam alimentado, pelo menos com água. Não ia adiantar nada; ia apenas adiar o momento final. Pensou que calhordamente estava querendo se livrar dele, levá-lo para longe de si, para que não desse mais trabalho, no momento da morte, livrar-se da responsabilidade. Mas esse era o seu trabalho: cuidar da passagem do seu discípulo, Anselmo rebatizado de Subuti. Não poderia se omitir.
Mas Pedrão falou com Aldo e com Weslêi, e estes vieram com o médico. Chegaram a pé, porque não havia outro jeito, a não ser o lombo de cavalo, com o médico suado e contrariado, carregando uma maleta enorme.
- Voce tem certeza que é câncer? - disse o médico.
Jainito foi buscar um grosso rolo de papel. Radiografias, relatórios, laudos, que o médico dissecou rapidamente.
- É câncer mesmo. Do pulmão, com metástases em tudo quanto é lugar. O homem está perdido. Só não sei quanto tempo pode durar.
- E ele vai ficar inconsciente?
- Se já tiver alguma alteração no cérebro, vai. Mas pode ser tambem insuficiência hepática ou renal. O melhor é levá-lo para o hospital, para verificar a sua condição.
Nesse exato momento, Subuti abriu os olhos e disse:
- Hospital não - com uma voz tremula e cavernosa.
- Ô meu filho, doente não manda, não. Doente fica quietinho.
Pedrão estava admirado com aquela demonstrarão de segurança do doutor das gonorréias da baixada. Pensou que era muito sofrimento. Melhor levar um tiro na cabeça, e acabar rapidamente. Não sabia que era exatamente o que iria acontecer com ele, na fuga da Bolívia.
- Vou ficar quietinho. Mas hospital não. Eu não vou.
Pode parecer muito lógico que se tenha que morrer sempre no hospital. Antigamente as pessoas morriam em casa, com a família. Mas hoje há muita formas de se prolongar a vida. Uma pessoa pode permanecer meses inconsciente, com máquinas provendo as suas necessidades. E a vida tem que continuar. As famílias tem que continuar trabalhando, estudando, fazendo as suas tão necessárias atividades. Não se pode ficar cuidando de doentes. Muito menos doentes terminais. Preocupação, trabalho, dar remédios, lavar e banhar os doentes, manuseá-los adequadamente, é tarefa para especialistas. Depois, quando a morte sobrevier, o corpo deve ser preparado para o enterro, que é também coisa de especialistas. Jainito pretendia simplesmente juntar um monte de lenha e fazer uma pira mortuária, como se faz na Índia. Nada de enterros pomposos ou de cremações caríssimas. Mas há todo um monte de procedimentos e de documentações importantes, sem as quais não se pode dar um destino aos restos mortais de um ser humano. Sábios protocolos gerados pelo tempo, pela prática, correta e eficiente da nossa civilização. Jainito poderia ter sérios problemas se queimasse o futuro defunto. Não se podia admitir que alguém pudesse desaparecer da face da terra sem deixar rastros, sinais, registros de sua passagem. E de preferencia que saísse um belo obituário no jornal; “Faleceu hoje, Anselmo “Subuti” Mendonça, antigo auditor fiscal, convertido ao budismo. Doou toda a sua fortuna em vida. Redigiu um livro sobre contabilidade. Deixa filhas e netos, sendo viuvo de dona Amélia Mendonça. Aos sessenta e oito anos, no ashram de Jainito, em Sete foiçadas, na Baixada Fluminense. De câncer”. O médico prometeu voltar com uma ambulância; mas só se fosse puxada por burros, porque ali ela não poderia chegar.
Subuti viu o doutor indo embora e ficou aliviado: poderia voltar a gemer. Não entendia o que havia acontecido. estivera dormindo? Foi um sono maravilhoso. Não se lembrava de nada. Apenas uma escuridão, um véu negro, um manto negro. Se a morte era assim, não havia motivos para preocupação. Tudo escuro e nada para sentir e nem se lamentar; o fim das culpas e dos ressentimentos, o cessar das necessidades e das precisões. O fim. Só que agora ele estava de volta. Ali estava o seu corpo preso a uma armadilha, animal aprisionado na arapuca; como um cavalo atolado no lamaçal, se debatendo para respirar. A vaca que foi pro brejo. Nem trator pode tirar. Ou pode? Ali estava o seu corpo que ele já não sentia mais como seu. Braços, pernas, barriga, objetos estranhos ao seu ser. Via luzes faiscantes, azuis e amarelas passando rápido. Pediu água e só pode molhar os lábios. Não conseguia engolir: faltavam forças.
Pediu a Jainito para varrer o pátio, mais uma vez. Era bom escutar o barulho da vassoura de galhos raspando no chão, as folhas sendo amontoadas. Uma pedrinha impulsionada pela vassoura foi se chocar de encontro à cerca de bambu emitindo um ruído grave mais alto, por trás do mar de barulho da vassoura. Um monge antigo havia se iluminado dessa forma, ouvindo uma pedrinha batendo contra um bambu. É maravilhoso. Assim, subitamente. Então é assim, a iluminação. “Ó vós que fostes! Ó vós que fostes para a Outra Margem! Ó vós que fostes todos para a Outra Margem! Ó iluminação! Salve!” A outra margem não era o lado de lá da morte; era o mundo da libertação e da iluminação. E o lado de cá, o mundo da ignorância e da ilusão.
Subuti não sabia como ia morrer, o que deixaria de funcionar em seu corpo. Mas a morte é sempre concreta. Um vaso entupido, umas gotas de gordura, uns amontoados de células cancerosas navegando pelo sangue, e a coisa está feita. Sem que percebesse a sua respiração foi ficando dificil. Fazia força para botar o ar para dentro, e tinha que soprar para conseguir expulsar o ar dos pulmões. E não se sentia aliviado. Parecia que o ar não chegava lá, onde ele é importante. Depois, passou a tossir muito, como se aquilo pudesse ajudar. Fazia sinais de que estava com falta de ar, e fez meneios de aprovação com a cabeça quando Mamuleque pegou um papelão e começou a abaná-lo, como fazia com o fogão de lenha ao acender o fogo.
Abanou, abanou muito, abanou ate ficar com os braços cansados; e nada do fogo se manter. Revezou com Pedrão, que abanou tão forte que rasgou o papelão. Depois foi a vez de Jainito, que abanava suavemente, enquanto entoava um mantra. E ele ofegava e continuava ofegando, sem tempo para pensar em nada, apenas na dificil tarefa de respirar: aquilo é que era meditação! Sem tempo para pensar em nada, inteiramente concentrado no que estava fazendo, escutando ainda o eco da pedra batendo no bambu.
“Deveis saber que no mundo nada existe de permanente. Tudo o que se reúne não escapa à separação. Não vós entristeçais, pois assim é o mundo, lugar perigoso e incerto, sem nada de estável. Eu agora alcançarei a extinção como aquele que se livra de uma moléstia maléfica. Vou deitar fora o pior dos males, aquilo que se chama corpo e se encontra mergulhado no oceano da doença, da velhice e da morte. Todas as leis imutáveis e mutáveis deste mundo são isentas de garantia e estabilidade. Alcançai a Libertação”.
Jainito estava tranqüilo. Estava fazendo pelo amigo aquilo que gostaria que fizessem com ele. Cuidar, providenciar o enterro ou a cremação. Não precisamos de filhos para nos enterrar. Estava, no entanto, um pouco ameaçado pela experiência da morte concreta à sua frente. Imaginava a morte ideal assim: consciente até o último momento, para que se pudesse acompanhar cada sentimento, cada emoção, cada pensamento que surgisse. A possibilidade de uma morte inconsciente, mergulhado em sono profundo não havia passado por sua cabeça. Ao ver Subuti inconsciente, umas horas antes, percebeu que a sua morte poderia ter ocorrido sem que ele pudesse testemunhá-la. Uma experiência perdida. Então, temos que estar preparados para a morte o tempo todo. Porque pode ocorrer à qualquer momento, mesmo sem aviso prévio. Atenção, atenção o tempo todo, sem perder um minuto.
Tinha medo que Subuti se amedrontasse, que se saísse com rezas ou orações como, Senhor porque me abandonaste. Mas ele foi valente até o fim. Ou não teve tempo, porque se esforçava para respirar. Até que parou. De repente, deixou de lutar. Cessaram os movimentos; a rede ficou quase imóvel. Balançava ainda um pouco, junto com a brisa que espalhou as folhas.
Permanecei em silêncio. O tempo passa e é chegada a hora da extinção.
Mas o corpo continuava ali, junto com umas redes mijadas. Jainito se decidiu pela pira. Juntar um alta pilha de lenha e tocar fogo. A extinção total. Carregaram o corpo com rede e tudo e acenderam. Jainito havia lido que pessoas divertidas da antigüidade, escondiam fogos de artifício nas roupas por ocasião de suas cremações, para alegrar os amigos e lembrá-los como eles eram divertidos. Fez o mesmo. Tinha alguns foguetes, alguns desses fogos que soltam luzes coloridas, e esperou um momento propício para escondê-los.
Acenderam o fogo quando já estava escuro.
Quando o doutor chegou, com dois homens de branco carregando uma padiola, os primeiros fogos estavam estourando, com luzes a assobios. A fogueira queimou por duas horas, mas o doutor não teve tempo de esperar; chamou Jainito num canto para informar:
- Quero que voce saiba que vou ter que relatar o ocorrido para a polícia - e foi embora.
Mas que se dane! Jainito ficou olhando ele se afastar com os homens da padiola que vieram inutilmente. Deveria ter pago a consulta ao doutor. Amanhã o faria, sem falta.
(da novela Aqueles que devem morrer)