O MELHOR AMIGO DO HOMEM
Segunda. Seis da tarde. A cachorrinha correu para o canto da parede de sua nova morada e ficou lá com um grunhido apreensivo e tremendo-se quase convulsivamente. A sobrinha chegou de viagem e viu a cadelinha na sala. Chegou-se magneticamente para afagar o animal e, antes que alguém pudesse avisá-la, sua mão gotejava sangue.
Ela não sabia. Quem poderia imaginar?
Seis da tarde. O vizinho, cansado do trabalho, do trânsito, da vida enfim, adentra seu apartamento em busca de paz. Ele já há algum tempo não saía daquela rotina. Era um casa-trabalho-casa que minava seu ser, esgotava-o pouco a pouco. Não havia como escapar daquilo. Não havia por onde aquela angústia escapar. Não tinha mulher, filhos; irmãos e pais moravam longe e eram sempre tão maçantes. Só tinha um refúgio, uma companhia: Gorete, a cachorrinha – que deveria ficar com ele só por uns tempos, enquanto um amigo de bar se curava de uma alergia. Então ela foi ficando, e o amigo acabou mudando de cidade. Nunca mais deu notícias. Era bom ter uma companhia. Como diria um cronista de nosso tempo, um animal acaba suprindo nossas carências afetivas. E de carências afetivas aquele homem entendia.
A rotina é um monstro que nos devora homeopaticamente, desequilibrando-nos, pervertendo-nos, corrompendo-nos, desencaminhando-nos, aos poucos, como se se vingasse por não nos darmos conta de que o mundo é grande e de que a vida é mais do que ela – a rotina e seus sinônimos – pode nos oferecer. Era um homem angustiado este de quem falamos. Transtornado com as perturbações do trabalho e com a repressão, por si e por outrem, de seus arroubos, um dia parou num bar e não se deu conta de quantas tomou. Subiu cambaleante os três andares do bloco A do condomínio onde morava e, depois de algumas falhas tentativas, conseguiu abrir a porta de casa.
Gorete o recebeu.
Insanamente, movido pelas frustrações de sua vida e pelas doses alcoólicas que lhe percorriam o sangue, fez com Gorete o que há muito não fazia com alguém de sua espécie. Sua angústia, então, encontrou por onde escapar, e outro sentimento o preencheu no dia seguinte, embora ele não soubesse defini-lo. Pensou em denominá-lo remorso, mas concluiu que não se decide sentir, apenas se sente. É como sentir frio, fome, dor... não são sensações deliberadas. E assim forçou-se acreditar que era apenas ressaca.
Aquilo não poderia virar um costume, no entanto, ficou comum a parada no bar e, influenciado pela bebida, foi inevitável habituar-se àquela prática com sua companheira de apartamento.
E assim, todo dia, perto das seis da tarde, quando o dia começava a se render aos encantos da escuridão, a cadelinha se acelerava, se encolhia e aos prantos ouvia o barulho da chave dente a dente desvendando o segredo da fechadura e condenando o pequeno animal àquele suplício. Eram visivelmente angustiantes, nos movimentos de Gorete, os momentos que antecediam a chegada do homem. Cada passo de seu algoz-dono ecoava nos ouvidos do pequeno animal ensurdecendo-o. E sempre que violentada por seu dono, a cachorrinha rogava com seu choro bestial uma ajuda que nunca vinha, uma piedade que se perdeu entre a porta e a rua, entre a igreja e o céu.
A senhora do apartamento ao lado começou a estranhar aquela barulheira com hora marcada. “Será possível isso todo dia agora?”, pensava. Nunca tivera aquele homem em boa conta, porém jamais imaginaria o que acontecia.
Ela não sabia. Quem poderia imaginar?
Domingo. O homem acorda, meio em transe devido à ressaca e ao sono perdido, e vê a cachorrinha desfalecida no chão da sala, manchando com seu sangue inocente o tapete. Ele sai desesperado, aos gritos, talvez desmascarando o remorso e a vergonha pelo crime que vinha cometendo. A vizinha se alarma e abre a porta no intuito de entender de uma vez o que era aquilo. Encontra escancarada a porta do apartamento ao lado e se depara com aquela cena grotesca. Decide por recolher a cachorrinha e proceder de maneira a salvar a vida do animal.
A sobrinha nada presenciara, só chegaria no dia seguinte, segunda, trazendo a noite, sem sequer imaginar o que acontecera.
Afinal, quem poderia imaginar.