O cinco
O cinco
Marcus Robson Costa
O causídico nem precisava sair do escritório de sua empresa de consultoria jurídica para saber o resultado do jogo de bichos. À porta, à hora de sempre, interrogava o pretinho cambista:
- Qual foi o bicho de hoje, “Neguinho”?
- Deu águia, Doutor. Águia na cabeça.
O “Doutor” François partia para conferir. Jogava diariamente, jogava alto: cinquenta, cem, duzentos reais. Não ganhava sempre, mas acontecia. E quando acontecia...
Como naquele dia. Acertara a milhar, a centena, a dezena, jogando “do primeiro ao quinto”. No todo, quase oito mil reais.
Foi dia de águia. Águia na cabeça.
Aquilo não era nada. O “Doutor” estava acostumado a ganhar muito mais. A perder também: “Um dia é do bicho; o outro, do jogador”. Vaidoso, seu maior orgulho (embora não rivalizasse em preço com outras jóias de sua coroa) era o plantel de meia dúzia de cães de raça, raças diversas, criados em sua casa de praia na Barra de São Miguel. Animais extremamente ferozes, aqueles, ganhos em apostas altas no carteado, ou comprados a peso de ouro dos fornecedores mais sofisticados. Magnânimo, o grande jogador arriscava:
- Meu “Rolex” no seu “Doberman”!
Assim ia aumentando o canil seleto e furibundo, ostentação de milionário e proteção da casa – uma miniforça de potenciais assassinos, a quem o dono às vezes oferecia coelhos vivos na refeição diária só para vê-los se lambuzar na carnificina e no sangue dos indefesos roedores.
- E hoje, qual foi o bicho, meu “nego”?
- Hoje deu 15, jacaré. Peguei na “Princesinha de Marechal”.
A mansão na Barra de São Miguel ficava distante do burburinho da cidade. Construção majestosa, de muros muito altos. O advogado gozava ali o merecido repouso, a folga de fim de semana.
Era justamente para lá que o “Doutor” se dirigia naquela sexta-feira, 13 – galo? – após o expediente no escritório.
- Qual foi o de hoje, “crioulo”?
- Bicho de ponta, “Doutor”.
- Touro?
- Veado...
- ???
- Veado galhudo, “Doutor”.
François foi conferir. Acertara todos os palpites, quase dez mil reais. Maravilha! Dia seguinte havia combinado ir a uma praia remota com a nova amante. Programa diferente, uma grande promessa de felicidade à beira mar.
Pegou o carro e partiu. No cruzamento de duas avenidas – passava das 18 horas – teve que parar diante do sinal vermelho. Foi aí que aconteceu.
- É um assalto! Rápido, ponha tudo aqui: a carteira, o relógio, a bolsa... Rápido! Passa a pasta, anda! Quer morrer, desgraçado? Rápido!
O cano do revólver apontado para sua cabeça e as palavras repetidas em sôfregos espasmos eram uma realidade implacável. Olhou num relance: o assaltante, um ruivo de olho e voz de gato, ainda novo, parecia ter tanto medo quanto ele, apesar da arrogância. Marinheiro de primeira viagem, na certa. François decidiu, num segundo dramático, correr o risco. “A vida é um jogo, ou tudo ou nada”. Tomando de um livro volumoso colocado no banco ao lado, lançou-o contra o bandido, com fúria, pensando em sair dali em disparada.
Foi um estampido curto e seco. A bala alvejou o advogado no olho esquerdo, vazando-o. Um mergulho no escuro... Uma cambalhota no vazio.
O “Doutor” François foi operado no mesmo dia. Perdera o olho, o bilhete de aposta do jogo de bicho e o fim de semana na praia, com direito a acompanhante.
Ao deixar o hospital, François amargou, do mais profundo do seu ódio, a desdita de saber que a polícia não encontrara nenhuma pista idônea para elucidar o roubo, com lesão corporal, de que fora vítima. Mais: o ladrão conseguira subtrair sua pasta de couro importada onde repousava, bem guardado, um rico colar de esmeraldas, destinado a exorrnar o colo alabastrino de sua mais recente paixão feminina. No cérebro ainda lhe repercutia, estridente, como o bater do martelo na bigorna, o timbre felino da voz do assaltante, estampado no resultado do jogo de bicho naquele dia:
- Deu 1456 na milhar, “Doutor”. Milhar de gato.
E a lembrança: “Miau! Dá a pasta, rápido!”
Desgraçado! É assim mesmo: um dia é do bicho, o outro... Naquele dia não tivera sorte: jogara alto, confiado no palpite do seu oráculo preferido que, em sonho, recomendara-lhe apostar forte no cachorro e, de leve, na cabra-cega.
O advogado chegou à porta do escritório e foi logo indagando do diligente cambista:
- E hoje, “Neguinho”?
O garoto já estava acostumado com os óculos escuros do “doutor”, um ano após o acidente com tiro que lhe roubara um olho. Na cavidade ocular fora implantada uma prótese, um olho postiço, quase igual ao verdadeiro – não fosse pela permanente e perturbadora imobilidade que obrigava o vaidoso conquistador a escondê-lo atrás dos óculos escuros, mesmo à noite.
- Deu tigre, “Excelência”.
Dia bom, aquele. Ganhara acima de três mil reais. Boa colheita, sem dúvida. Incomodava-lhe, porém, a lembrança que a imagem do grande felino suscitava em sua memória. Em todo caso, aproveitaria a sorte para ir ao pôquer na casa de um “bicheiro”, velho conhecido, no outro extremo da cidade.
Fez as recomendações de praxe à secretária, despediu-se.
Ia bem naquela terça-feira. A mesa tinha cinco jogadores, contando com François e o “banqueiro”.
- Cento e cinquenta pontos – jactou-se o advogado, proclamando mais uma vitória.
- Homem, estás com uma sorte dos diabos!
Neste momento, bateram à porta.
- Só pode ser “cambista” - anunciou o dono da casa.
O recém-chegado, um moço ruivo, levantou suspeita na memória do “doutor”, um olhar penetrante, livre, no momento, das inseparáveis lentes negras. Aqueles olhos de gato...
- Mandou chamar, patrão? Mande as ordens!
Não podia haver dúvida. A voz de gato rasgou os tímpanos de François como uma fina lâmina. Era ele: “Rápido! Rápido, a pasta!”
Levantou-se. Puxou o lenço para enxugar o suor do rosto. O rancor mordia-lhe as entranhas, uma sede incontrolável de vingança. Sentiu-se mal. Sentou-se.
- O que é que você tem, rapaz?
- Nada, nada. Um ligeiro mal-estar, problema do estômago.
Ficou ali, ouvindo a conversa entre o “bicheiro” e o empregado. Contas para todo lado, o advogado atento aos menores gestos do moço ruivo. A voz – ou o rosnar de gato - era inconfundível. O “doutor” fez questão de observar o outro bem de perto, o mais perto possível, para afastar qualquer tipo de dúvida. Depois desse minucioso exame, ficou convencido: era a segunda vez que se encontrava com o ruivo.
Negócios acertados, ia o moço de olho de gato retirar-se quando François o interpelou:
- Você é “cambista”, “Ruço”?
- Sou “chefe” de grupo. Trabalho aqui para o homem.
- Olha aqui, eu quero que você vá sábado à minha casa. Vou fazer o jogo do século, para tirar o seu patrão do ramo. Sábado de manhã. A casa é distante - vou lhe dar meu endereço - mas a comissão vai ser boa. Vou deixar a “grana” pra você ir de táxi e mais algum para o lanche. Vá cedo, o mais cedo possível, por volta das seis horas.
Ia falando e escrevendo.
- Aqui, aqui está o endereço. Não tem erro. Espero você o mais cedo possível. Nós vamos à praia por volta das sete da manhã, portanto, não demore.
E, virando-se em direção ao “bicheiro”:
- Lembra a ele na véspera, me faz o favor!
-Sossegue. Estou curioso pra ver o tal “jogo do século” - sorriu o contraventor, fazendo bochechas.
Fim do carteado, o advogado ganhara quantia razoável. Despediu-se com a sorte ao seu lado. Afinal, a vida é um jogo...
A família do “Dr.” François – mulher e filha - foi para Fortaleza na sexta-feira pela manhã. Viagem acertada de última hora. Por lá ficaria uma semana na casa de parentes. A esposa do advogado viajara com uma dúvida surda na cabeça: por que o marido recomendara que, naquele dia, os empregados não dessem comida aos cães? As feras estariam presas no canil como sempre, nervosas como sempre. Homessa! Coisa mais estranha...
À hora de sempre, a pergunta de sempre, variadas respostas.
- Hoje deu gato, doutor!
- Esqueça.
Sábado logo cedo, 6 horas da manhã. Sentado na varanda da casa de praia, o advogado ouviu a campainha soar. Sem se mexer, apertou um botão atrás de si e o portão se abriu.
A voz saiu como um miado profundo, acompanhada por uma salva de latidos roucos.
- Bom dia! – cumprimentou o ruço, com a voz fanhosa do mais tímido angorá. Os cachorros estão presos?
- Pode entrar. Os cachorros estão presos.
- Com licença!
Mal havia entrado, o do olho de gato viu o maçudo portão fechar-se às suas costas, automaticamente.
O advogado falou em tom de advertência:
- Não saia daí agora. Vou pôr comida para acalmar os animais. Um momento!
Entrando em casa , aduziu:
- Volto já!
O de olho de gato ficou perplexo, parado à entrada da mansão, como uma estátua. Em poucos segundos, seis imensos cães, ferozes por herança genética e ensandecidos por um longo e premeditado jejum, estavam sobre ele, com seus dentes terríveis, suas garras...
Pela luz refletida no ray-ban da porta, François observava, através da retina envidraçada de seu olho são, o espetáculo final: um corpo exviscerado, uma agitação canina, a grama vermelha e rútila...
Quem, afinal, sucumbiu à fúria avassaladora dos cães: um gato? Um homem? Um coelho?
- Qual o bicho de hoje, meu “nego?”
- Hoje deu cobra, doutor. Na milhar e na cabeça...