Constatação
CONSTATAÇÃO
Setembro/2009.
Newton Schner Jr.
Quando pequeno, ele tinha sonhos relacionados com a morte. Neles sempre se via como que dentro de um carro. Não tinha idade o suficiente para dirigir, mas era retratado conduzindo veículos em alta velocidade.
Não sabia o seu fundo, mas os sonhos desse gênero lhe eram constantes. De todos acordava assustado, perguntando-se: "Mas como? Eu sequer sei como um carro funciona!".
A primeira vez que o conduziu foi quando passava dos sete anos. Era domingo, no qual ele se encontrava com o seu pai. Alcoolizado, este colocara o garoto junto de si e o fizera assumir o volante. De cabelos bem claros e com certo entusiasmo, pois desconhecia o risco que corria naqueles momentos, ele seguia adiante tal qual um jogo. Divertido era assumir aquela direção. Deste modo, atravessou as ruas de seu bairro, o centro da cidade, sinaleiros e ruas movimentadas, até que chegasse à casa de sua mãe. "Ele veio conduzindo o carro... Apenas ele", dizia seu pai ao chegar, sem que pudesse disfarçar a embriaguez. "Olhe para o seu estado!", dizia a mãe, desesperada, que apanhara a criança com rapidez quando ouviu tais palavras, "Como você teve coragem? E se acaso um acidente tivesse ocorrido? Ele poderia ter morrido!", "Se o tivesse, seria simples... Bastaria enterrá-lo e tudo estaria resolvido!", respondera o pai, quase às gargalhadas.
Anos se passaram até que finalmente tomasse contato com um carro no qual fosse seu condutor verdadeiro. Pelos domingos seu pai o ensinava. Aproveitava o horário em que as ruas estavam desertas e, sendo assim, seguras para o aprendizado. Deste modo sucederam-se seus treinamentos, suas aulas de direção, por um ou dois anos. Não tinha idade o suficiente para aprender, se vista sob a ótica da lei, mas ele sentia quase que uma necessidade de independência. Queria, bem na verdade, usá-lo para encontrar amigos, sair e realizar o que por sua família não era permitido fazê-lo em casa.
Por mais que o usasse com uma freqüência quase que diária, conduzia-o de péssimo modo. Ele não o achava para tanto, mas era o que ouviu daqueles que o acompanhavam como seus passageiros. Dirigia com lentidão, sobretudo porque temia sua própria condução. Sonhava em viajar, em conhecer novos lugares, mas não se arriscava a ser o seu próprio condutor.
Até o fim de sua adolescência e o começo de uma nova fase, sofrera um único acidente. Não o provocara. Descia ele às escuras de uma rua inclinada, recém asfaltada, quando notou um carro que se aproximava da esquina. Com calma, indagou-se: "Ele irá me esperar, ou seguirá adiante?". Como era descida, estava ele na preferência, embora fosse ético o suficiente para burlar as regras de trânsito e permitir que outros ocupassem sua vez. Decidiu seguir. Para sua surpresa, o carro, que parara na esquina, avançou e bateu-lhe com violência na porta do passageiro. Além de dores na coluna, a experiência causara-lhe um impacto forte. Jamais se esquecera daquela noite.
Tempos depois ele acreditava que havia mudado. Perdera o pai, ganhara uma filha e se afastara de muitos que até então o acompanhavam. Não se sabe se era certo ou errado, mas ele, no interior de si, acreditava que as experiências fizeram-no melhor, como se o tivessem presenteado com um amadurecimento. Com o carro já não realizava as mesmas aventuras de outrora. Mas algo ainda o inquietava.
Banhava-se certa tarde. A figura de Jung veio à sua mente. Em uma conversa ocorrida dias antes, tivera, através de um amigo, o conhecimento da teoria do armazenamento de leituras e experiências no inconsciente que o célebre psicanalista suíço propõe, até o momento de um despertar, de uma revelação, uma constatação. De imediato um sorriso roubou-lhe o rosto: "De fato... Sim! Faz sentido! Eis o motivo pelo qual venho relembrando minhas experiências que tive em relação aos carros, quando menor, através dos sonhos. Às vezes é preciso que anos de manifestações inconscientes, até então incompreensíveis se passem, para que consigamos entender o destino que nos é escrito".
Ele acreditava que se aquele era o destino que lhe fora reservado, tinha, certamente, de aceitá-lo. Apenas esperava que não fosse logo, que não tão cedo se concretizasse. Não queria que a morte o visitasse de surpresa, interrompendo seus projetos em vida. E assim, chegou a uma explicação para as manifestações que desde os tempos de infância experienciara e que sempre reagia com espanto. Da água morna que corria sobre sua cabeça, também viera a resposta para as sensações ruins que tomavam conta de si ao adentrar e conduzir o seu carro.
Por vezes, anos de manifestações inconscientes são necessários para que saibamos o modo como chegaremos ao nosso fim. E diante de tudo, acreditou ele ter à sua disposição mais um grande motivo para tirar proveito de cada segundo de sua vida.