A fila andava
Solidão compulsória num sábado à noite. Com tudo programado para um fim de semana a dois, fica difícil dividir certas coisas pela metade. Então, ela resolveu ir ao supermercado, comprar alguns ingredientes para acompanhar o DVD alugado e suprir sua carência. Porque do estômago à alma deve, sim, haver uma ponte.
A lente da solidão traz visões mais intimistas. Foi através dela que passou a olhar os rostos das pessoas que, como ela, se aventuravam a ir a um supermercado num sábado à noite, naquele horário em que as pessoas que frequentam supermercados em horários normais via de regra já se recolheram ao carinho de seus lares e de suas camas. Mas solidão é solidão. E mesmo assim nada via de diferente: um jovem casal, provavelmente a caminho de uma reunião de amigos, escolhendo petiscos; a mãe e seu pequeno filho insone na gôndola de frutas; o também solitário homem de meia idade pesquisando cervejas especiais.
Depois de muita análise pinçou um vinho de preço compatível à sua renda, o que equivalia dizer: qualquer um que não fosse dos que dão dor de cabeça. “A vida... Branco ou tinto, é o mesmo: é pra vomitar.”
Foi para o caixa. Não imaginava que, num sábado à noite, pudesse haver tanta gente comprando coisas. O tumulto era por conta de um bando de adolescentes e seus energéticos, preparando-se para a balada. A fila andava, mas ela resolveu sair e pegar algo para acompanhar o vinho. E sua alma.
Queijos! Uma amiga lhe havia dito que os queijos tem o mesmo tipo de substância que o chocolate, que nos proporciona um tipo de bem estar leve e translúcido como um véu. Buscou os tais queijos, que combinavam à perfeição com o vinho – economicamente falando - e voltou à fila.
A fila andava. Porém, mais tumulto: um senhor embriagado causava transtorno ao caixa por causa do peso de umas batatas. Ela se lembrou, ao revés, que seu transtorno afetivo recente havia modificado seu peso; e assim, cinco quilos mais magra, decidiu sair novamente da fila e pegar também um chocolate. Uma dose extra da tal substância, por via das dúvidas.
Novas pesquisas, nova demorada decisão – não tinha nada melhor a fazer mesmo, apenas o DVD a aguardava sem pressa em casa – e ela voltou à fila do caixa. Desta vez, sem contratempos. O jovem casal transbordava carinho, a criança fazia gracinhas, o homem das cervejas lançava-lhe olhares...
A fila andava.
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Citação: "Vilegiatura", poema de Fernando Pessoa.