PIRULITO - LIA LÚCIA DE SÁ LEITÃO. 10/09/09.
Pirulito... Pirulito, sabe de uma coisa? Gosto das memórias da fazenda Divina Graça, eu era ali a filha do Dr. e da Sinhazinha, lindo! Mas, também era uma criança muito mal comportada, muito escandalosa para a época, muito endiabrada aos olhos das tias solteironas e virgens que viviam rezando pelo meu Anjo da Guarda, imagine! Elas nunca rezavam para Ieratel, meu adorável protetor dos céus. Elas frustravam os sonhos da Sinhazinha ao se colocarem ferrenhas em relação ao meu estilo de vida. Minha mãe imaginava a filha única, manhosa, delicada, educada, sem ronxas nas pernas, sem cabeça quebrada de pedradas. Depois adulta vestida com um sóbrio vestido de linho, um carro modelo passeio fino ( será que existe?) Mas no fundo d´alma, a minha mãe sabia que nada daquilo seria original na minha vida. No mínimo teria um Jeepão vermelho bombeiro, andaria atolada num jeans, seria professora por profissão, continuação da avó que sempre dava os maiores incentivos para a cultura e escritora por ocasião.
Hoje quando li seu comentário no Recanto das Letras me emocionou muito tanto que resolvi escrever algo sobre o assunto.
Pirulito, uma vez fugi da casa grande numa camioneta velha largando a lataria pelo caminho e soltando baforadas de fumaça. Aquela tranqueira despertava tamanha curiosidade nas pessoas que ficaram sem palavras. Nem cogitavam quem dirigia, na verdade, só apareciam dois micoquinhos de cabeças, a minha no banco do carona e a do motorista, um primo pouco mais velho e amigo de todas as artes infanto juvenis.
Fugimos por pura rebeldia, pedimos humildemente a um e outro que nos levassem ao “Lê Grand Cirque du Rei Sol”. A cultura francesa ali, no chão longínquo da Zona da Mata Canavieira de Pernambuco, terras dos Barões do açúcar, mesmo falidos tinham nome.
Eu e meu primo não tínhamos um responsável que pudesse entender a importância daquele evento.
Todos alegavam, é um Circo de zona! O outro mas é coisa de mambembe, tem uma lona amarela circular e se chover não tem um toldo que proteja as cabeças desses dois tontos!Tem um leão pedindo pra morrer, magro, sem dentes que vive dormindo sem um banho no escondido da jaula. Dois pangarés brancos para a moça se equilibrar em cima dos bichos e amarrada com uma corda na cintura.
Começamos a chorar! Como todos sabiam disso se não foram lá?
Era pura implicância!
O circo era francês, o carro de som avisava para todos os lados do trapezista, da equilibrista em dois puros sangues árabes e dos palhaços, a fanfarra, e berravam sobre os animais capturados na África. Macacos vestidos que sabiam fazer contas no quadro de giz. Aquele circo era tudo de bom naquele momento.
Sentamos nos degraus da entrada principal da casa grande, colocamos a mão no queixo, e ficamos emburrados e choramingando as pitangas por causa de tamanho descaso cultural.
Olhei lá perto do Baobá, toda casa de fazenda que tem um Baobá no terreiro é indicação que ali foi rua de escravos, e que a árvore é mágica, guarda a coragem e a alma dos guerreiros negros africanos. Chamei o primo para dar uma volta e pensar, mas já estava bem intencionada, como os Baobás eram assombrados o primo nem queria chegar perto, mas eu lhes disse: larga de ser frouxo. Vamos! Acenderemos uma vela, como só tem cotocos, a gente acende as velas da Capela, aquelas bem grandona da Páscoa. Pirulito, corremos até a Capela, zelada pelas tias velhas, solteironas e virgens, trepei no banco, tirei a maior vela, o círio sagrado: nossa primeira contravenção familiar. Ele um pouco mais forte que eu. Segurou e levou a vela até o pé do Baobá. Acendemos ali e pedimos que iluminasse nossas idéias para assistir ao espetáculo circense.
A resposta foi imediata. Olhamos para o galpão e vimos a tranqueira estacionada, fomos brincar lá e por fim viramos a chave o bicho fumegou e pulou que nem um sapo, ficamos espantados daquilo estar funcionando e resolvemos dar uma voltinha. Ele deu ré, saímos e por onde passávamos todos riam e apontavam nhôzinho e a princesinha do Barão, pai, mãe, tios e tias não se deram conta do perigo, ao contrário, davam corda para nossas brincadeiras.
Conclusão, eu e o primo aproveitamos a ingenuidade de todos rirem das nossas falta de juízo e fugimos para a cidade. Fomos ao circo.
Eu e o primo falávamos muito e sobre tudo que era de nosso conhecimento, um dia perguntei, primo se o Padre Gera arruma mulher porque ele num vira cavalo sem cabeça? E o primo respondeu, larga de feiúra, o pecado não é do Padre é da mulher que foi se exibir pra o homem santo, é ela quem vira mula sem cabeça. Voltei a perguntar, e pra onde vai a cabeça da mula sem cabeça? Ele titubeou e disse assim: ara! A cabeça fica plantada na porta do cemitério. Como sou muito medrosa não quis saber mais de nada, a cabeça da mula degolada fica enterrada na porta do cemitério... é isso... por favor Pirulito não me faça mais perguntas difíceis, contudo quero terminar a minha história sobre o circo e o motivo de responder seu comentário.
Quando estacionamos a fobica por trás da Igreja, deparamos com Dona Florzinha a mulher que virava mula sem cabeça dia de sexta feira treze, mais uns passos topamos com o Prefeito que perguntou pelo meu pai, sempre que papai chegava da Capital o homem mandava implorar a visita do médico em sua casa, diziam que ele virava lobisomem, e era vero, a mão do prefeito tinha muitos pelos e as unhas eram mal cuidadas e grandes. Olhei o primo e segui em passos firmes de mãos dadas, mais na frente atravessamos a praça da Matriz e de cara encontramos o Juiz de Paz, aquele velho rude que vivia na fazenda tomando licores de tia Genu e discursando como se estivesse em brigas com o Vereador Sauvino. Diziam as más línguas que o Juiz era o velho papafigo. Pois, com tamanha diversidade cultural numa cidade só, aceite o corpo sem cabeça da mula e continue sem fazer perguntas difíceis.
Finalmente chegamos ao pátio do Circo, ali o espaço parecia menor que a propaganda do carro de som, mas entramos, sentamos na arquibancada com sacos de pipocas e duas coca colas com canudinhos mergulhados no líquido, atentos a tudo, a polícia, ao advogado com a família, e finalmente tam tam tam tam!
Um homem bem vestido de fraque azul brilhante anuncia com voz de locutor de rádio AM: agora vamos apresentar o quadro com os nossos palhaços os mais divertidos trazidos de Paris. Os palhaços adentraram ao picadeiro com mesuras e cambalhotas. O homem de azul aponta para o palhaço da esquerda e apresenta: esse é Bom bom, e do outro lado ele pede aplausos e berra: esse é PIRULITO o nosso mais conceituado artista da região Nordeste. Alguém sussurra ao ouvido e o homem repete: PIRULITO é o mais conceituado palhaço da região do Nordeste da França.