Um pedaço da coragem
A cada três meses do ano, Úrsula, uma mulher extremamente religiosa, organizava o “Simplesmente Divida”, um projeto social que reunia pessoas que sentiam o desejo de compartilhar com os humildes o que lhes sobrava. Dividia-se um pouco de tudo. Desde cobertores, livros, alimentos, CDs, roupas velhas (e novas também), a órgãos, sangue ou até uma palavra de consolo. Com sua iniciativa, Úrsula conseguia abastecer em média cinqüenta mil pessoas de uma cidade que ela escolhia para o projeto.
Sempre bastante elogiada pelos órgãos que apenas a assistiam, ela mantinha a linha para não parecer diante deles alguém querendo promover-se. Isso, porque aos olhos do povo, ela era quase uma “santa”. E como era de se esperar, Úrsula não se considerava uma mulher assim. Sua meta era apenas dar um pouco de esperanças aos necessitados.
Como de costume, Úrsula religiosamente passava em frente ao Palácio Rum, um hotel luxuoso que ficava a dez minutos de um abrigo de idosos. Enquanto fazia seu percurso, pessoas vinham ao seu encontro saudando-a com respeito, que ela impunha sem dar-se conta. Exceto um homem assentado ali, com uma caneca de café no chão, onde pessoas teimavam em depositar moedas. Um homem de meia idade, olhos fundos, rosto pálido e corpo esquelético. Ao passar por ele, Úrsula sentiu aqueles olhos negros segui-la curiosos.
O homem que ali estava tinha nome, casa, família, amigos e uma grave doença. Úrsula sabia muito bem de quem se tratava. Mas faltava-lhe coragem para de alguma forma ajudá-lo. Então se perguntava como podia ajudar milhares de pessoas num único dia, mas negava-se a fitar aquele homem? Por que com ele era tão difícil? Ela não entendia. Talvez fosse por isso que o pobre doente apenas a olhava sem cobrança. É que bem no fundo, ele entendia que sua situação não era fácil nem para uma “santa”.
Três meses se passaram. A data do novo projeto social aproximava-se e Úrsula teve uma vontade incontrolável de ver aquele homem.
Ela foi à sua procura em frente ao hotel; então percebeu que ele não estava como de costume. Uma frustração nasceu no seu coração, cresceu quando ela soube que ele havia morrido no dia anterior.
No dia do “Simplesmente Divida”, Úrsula recebeu um cartão que dizia: “Hoje estou dividindo um pouco da minha coragem, para que você nunca deixe de dividir seu amor com as pessoas”. Depois de ter lido a mensagem, Úrsula olhava aqueles rabiscos escritos com muito esforço, mas sem assinatura. Então, chorou por não ter tido coragem para lhe pedir que dividisse sua dor, e ela em troca, dividisse o amor que tanto possuía.
Marciela Taylor ( Marciela Rodrigues dos Santos )
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Os textos aqui publicados, salvo indicação outra, são dedicados às amigas Juliana Lopes e Ângela Denise
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