DOS CONTOS DO VILAREJO-"Seu Francisco"
Em Vilarejo, quando a noite desce o vermelhão do sol é comum ver-se a figura gorducha,ombros largos, olhos arregalados,lábios caídos cabelo de algodão, cadeira posta na calçada alta - bem no fim da rua Grande –arranhando um violão surrado pelo tempo, acompanhando a voz rouca mal impostada de barítono, sonando valsas antigas,toadas sertanejas, reconstituindo imagens idas e revividas de encanto e saudade.
- Boa noite, seu Francisco!
- Boa noite, meu rapaz.
- Como passa o senhor?
- Eu... vou levando esta vida de rato, masturbando as cordas deste violão velho – último amigo do meu tempo de criança! É...!Porque é o que me resta com segurança e precisão – no qual, posso dedilhar o resto da minha existência; ele até escuta sem reclamar as minhas ranzinzices – esta voz rouca –repensando o passado sem afago –rosnando o destempero dos meus dedos mochos.
- Não...não queira agradar-me... o que canto, não encanta a meiguice de tais cabrochas; basta ver, que o Vilarejo não é mais aquele, daquelas noites canoras, sacudindo beleza, vertendo Arte...para mim, perdeu-se na infinidade das águas que se quedaram nas mudanças atmosféricas.
-Muito bonito! O senhor é mesmo um poeta dos bons escondido por aqui, enclausurado neste desconhecido mundo soberbo, invisível! Belas são as poesias que jorram de suas canções inebriantes! ... Mesmo o tempo tendo passado, isto não conta, porque a Arte é sempre bela e a beleza anestesia; quem ama a Arte, sem dúvida, tem uma ótima companheira! Os sons que o senhor constrói neste violãozinho , embevecem de amor, embalam corações, ressuscitam poetas e desbaratam o sobrosso incontido, despertando o subconsciente dos sonhos.
- Se assim os vê, nesta minha grotesca figura sedimentada – sente-se ao meu lado e cantemos o passado do Vilarejo! Da formosura! Do tempo dos coretos nas praças, das reentrâncias e contornos dos encaracolados casais bordejantes pelas vilelas: volteando a praça e os circundantes trajetos em volta da Igreja – mil afagos – mil trejeitos!
As turbulências de hoje, não condizem com o ar de alegria eternizado nos olhares límpidos das lindas moçoilas ... atualmente, apenas retratadas em imagens passadas, acumulando saudade itinerante.- Vilarejo, fiel sofredora; qual "Sodoma e Gomorra," necessitada de carinho e apreço, à beira da total falência, povoada por estranhos dirigentes – seres que vagam de casa em casa, oferecendo a chave da maldade a quem queira se apresentar como salvador do mínimo que resta das loucuras dos “Domingos”.
-Mas... conte seu Francisco! Já que o senhor continua poeta...tanto mais poeta do que sonhador... qual é a sua impressão, quanto às últimas cartadas do Vilarejo:Badaladas do “sino”! Queda dos “Domingos”! Romaria! Milagre! Eleições! A morte de Paulinho! - Diga-me! agora quero dar uma de jornalista; quero a sua opinião a respeito dessa minha impáfia!
-Ora moço! Há poucos dias atrás, não se podia respirar por aqui; vivia-se atabalhoado, incorreto e amedrontado...até certo ponto me recuso a acreditar no milagre do sino ou nas conseqüências dos seu badalos. Mas... coincidentemente, um tufão passou por aqui em arrastão, levando de quebra o marasmo dos “Domingos”que detonavam poder e arrogância, pelos quatro cantos de Vilarejo – cidade acabrunhada, tímida, sem cor, dessoberbada, contrariada, desprestigiada, e como não dizer – morta e não enterrada. O pavor fremia desde o primeiro minuto do dia e da noite; as mocinhas primeiro passavam pelos instintos deles, para logo mais, se tornarem “raparigas”, no recanto das “triscas”...mas,uma tempestade virou tudo;tirou dos escombros uma força tal, jamais posta nos meus olhos em todo o meu trajeto de vida: “Os Domingos”, viraram "estátuas de sal", nem um, se quer, sobrou para remédio ou para contar a história do que aconteceu em Vilarejo recentemente. É evidente, que chegou o dia da caça, oficializada a morte do caçador! Por enquanto, respiramos esperança e euforia... que nunca mais se estabeleça entre nós, um no-
vo império dominante e feroz quanto foi este!
-Muito bem, seu Francisco; isto depende apenas de nós; da nossa força e união! “O povo é que manda, é só querer!” A força que tivemos agora, vinha à muito se erguendo na vontade firme dos filhos legítimos de Vilarejo – aqueles que realmente tinham este desejo, conquistar a paz, ainda que lamentavelmente, pela perda de um de nossos maiores defensores- que foi Paulinho. Queríamos que fosse diferente, entretanto, nos abateu este infortúnio, que nos deu mais força ainda, e nos tornou uma só pessoa, um só corpo,na conquista da vontade geral: -“O fim da tirania dos "Domingos”! “O sofrimento de tantos anos não pode morrer nestes poucos dias”.Creio que ainda vive, sem querer despedir-se os resquícios do desprazer que todos os habitantes de Vilarejo carregam nas rugas; porém, estes momentos estão prestes à condenação. Olhemos para a frente!...muito temos o que fazer na reconstrução de um futuro para nossos filhos, que viverão a nova face dos novos tempos, com maior equilíbrio e brilho nos olhos! Eu entendo assim; “Nós temos a força porque somos o povo.”em outros tempos os maiorais o escravizavam, mas somente, enquanto este, alimentou seus eufóricos desejos e vaidades.Hoje manda o povo e sempre será assim, porque dele é que vem tudo: a miséria dos pequenos que sustenta a vaidade dos grandes, quando se sentem estabelecidos. É do povo que vem o prazer, a miséria, a paz, aguerra!
Eu creio na força do povo unido, de braços dados e mãos entrelaçadas fazendo barreira, bramindo energia, emitindo sinais vivos de poder e liberdade sem elos demagógicos. Fizemos uma guerra, resta-nos reconstruir o que ruiu, sem entregar fácil o resultado das nossas aspirações. afinal, seu Francisco. Devemos até agradecer a insolências dos “Jordão”, pois foi lá que começou tudo. – O desmazelo de Raimundo com as filhas de Letícia e a desgraça que caiu sobre ele, Zilá e Zilca! As badaladas do sino;a superstição...
-Ô deixe-me interromper-lhe...não é justo um povo viver sob jugo por tanto tempo, é? Tenho quase setenta... minha mulher, meus dois filhos, desceram nesta enxurrada a perseguição rondou o meu recanto e deixou calos na alma-eternamente condoída. O que plantei perdi- toda a semente foi para o bico do corvo, contudo, sou daqueles que gosta da vida; entre a vida e a morte, se ainda me é dada a escolha, prefiro a vida, apesar de ter enterrado muitos deles, pretendo continuar lutando dentro da minha moral. Vou contar-lhe uma verdade: - “Quando fui fechar a sepultura do satanás Raimundo, irmão de Domingos, deixei todo mundo sair, depois abri o caixão para ter a certeza se ele realmente estava morto. Como eu estava cheio de dúvida, bati com a pá na cabeça dele até esbugalhar os olhos; em seguida virei-lhe de bruços e enfiei-lhe uma faca no cu, bati com uma pedra, até entrar o cabo todo... era o que eu tinha vontade de fazer em vida! assim, ele foi enterrado com uma faca enfiada onde devia. Como coveiro foi a melhor obra que já .realizei.”
-Mas...Seu Francisco!...Eu quero sempre estar em paz como o senhor... isto não foi maldade?
- Ora... ele merecia muito mais do que isso; que vivam os netos de Letícia que demonstraram coragem e bravura, mandando na hora certa aquele infeliz para as entranhas do inferno! Aquele peste era tão mau que estuprou mais de trinta meninas, sem sofrer qualquer punição pelas atuais “autoridades”. Era um ladrão perverso: Matava com sorriso nos lábios e enxugava o sangue nas folhas das árvores. Você não viu o caso do delegado?... Foi ele o autor das facadas e do bilhete(legenda) junto ao corpo. Agora ele está levando fumo nas labaredas de satanás. Era acobertado pelo irmão covarde, que só se locomovia protegido por quatro capangas e seus dois filhos que o diabo em breve os levará. Dois deles foram despachados na cadeia: Girau e “sem dedo”;
os demais, não perderão por esperar, mesmo sendo transferidos para a cadeia de Cipoal. Há veneno pra todos. Para a vida melhorar por aqui, precisamos acabar com os focos de perdição ainda existentes, ao contrário, vacilaremos, sujeitando-nos a um mau pior.
Devemos cortar o mau pela raiz. Por aqui não sobrará nem a cor destes pestes. Não serão enterrados; serão queimados e as cinzas soltas em terreiro de macumba. Foi exatamente o que aconteceu com os corpos destes dois: à meia-noite, os desenterramos, os levamos para Tabatinga, lá executamos o serviço, mesmo assim, nos deram muito trabalho... nem o fogo os queria; suamos para tosta-los, porque eles são assim mesmo:
nem o diabo faz conta deles.
O “Domingos” vai morrer na cadeia e será queimado aqui em Vilarejo, na presença de todos, e este dia ficará gravado na memória – certeza absoluta da total libertação do povo de Vilarejo.
-Seu Francisco, o senhor está mostrando o seu lado cruel ou a sua revolta confinada no “ego”?
-" Se você tivesse perdido mulher e dois filhos nas mãos destes baitolas... em vez de lágrimas, verti azeite fervente... passou a tempestade, mas ainda falta muito para reinar a bonança; só em pensar que algum deles está vivo, me dá arrepio e nó no peito."
- Francamente, o senhor desabafou tanto, que enconteve a minha ira. Não há um só vivente nesta cidade, que não deseje o pior para essa gente! Na minha opinião a Justiça refloresceu em Vilarejo e o povo em união estabeleceu os critérios: ‘Quem faz o mal, um
dia pagará.” O Dr. Girão, até o Pe. João... sumiram todos; esperamos, nunca mais ponham os pés aqui; nem o bispo sabe dele: fugiu com Zelma e o louco Rubens lobisomem.
- Pois é meu rapaz, não sobrou um. Andam falando por aí que o Administrador vai marcar eleições para daqui á seis meses; antes vai pôr ordem na bagunça e ressarcir os bens roubados da Prefeitura. Regularizar a situação dos funcionários, pagar as contas que forem realmente da Prefeitura, organizar tudo, posteriormente, tratar da escolha dos candidatos, que deverão sair de um consenso da população.
-Estão falando de você, meu caro; não descarte essa possibilidade...você tem preparo, caráter, amor pela terra, coração bom, humanismo, pulso forte; tem tudo para ser o nosso prefeito. Você e sua família têm demonstrado espírito de serviço à população e agora é justo que você providencie o final do expurgo!
-Não, seu Francisco. Eu prefiro passar a bola para outro e me manter longe das influências dos políticos de caras sujas. O povo fará o prefeito e continuará imaculado.
-Vamos criar uma organização que controle as rédeas do poder. Esta organização mostrará o caminho a seguir e indicará o que for melhor para todos nós, sem prejuízo para ninguém. Não quero carregar a marca da desgraça implantada na Prefeitura durante quase meio século por essa maldita família de irresponsáveis, que sob nossos auspícios governou o Vilarejo. Todos carregam no peito as feridas epidêmicas destas gerações. Candidato para nós não será impecílio. Que Deus esteja conosco seu Francisco!
- E para sempre com você, Sebastião.