IL ETAIS UNE FOIS UN PRINCE (Era uma vez um Príncipe) Homenagem a Saint-Exupéry

“Homens constroem a história,

os seus altruísmos uma sociedade”

A Saint-Exupéry, o Escritor dos Escritores

31 DE JULHO DE 1944.

A guerra aproxima-se rapidamente do seu fim.

A Leste os russos estão prestes a expulsar das repúblicas soviéticas o império negro, cuja duração era suposto ser de mil anos, mas que ao fim de 11 se aproxima de um fim pouco honroso, para os grandiosos planos tidos, até há bem pouco tempo; fim ainda mais inevitável pois, a Oeste, as forças anglo-americanas alargam rapidamente a testa de ponte estabelecida na Normandia, a pronunciar a queda naquele lado do continente. A tão temida guerra em duas frentes nazi, arriscada numa complicada, e quase bem sucedida, jogada de poker político-militar acabou por precipitar a catástrofe.

Hitler e os seus estão perdidos, sabem-no, era impensável e impossível não o saberem, mas resistem demencialmente, resistirão até ao fim, até ao holocausto em que a velha Europa, e uma parte da história perecerão.

Um pouco por todo o continente a força aérea aliada encarniça-se sobre a besta ferida de morte, e chacinam a indústria e população da auto-denominada “Nova Ordem”. Não há distinção entre material e homens, a era dos “conflitos cirúrgicos” ainda vem longe, é a guerra clássica total, brutal, porventura a última.

Borgo, Córsega, base da esquadrilha americana 2/33.

Perdida numa ilha esquecida pelo mundo, prossegue o seu trabalho de observação, quase anonimamente, uma entre muitas esquadrilhas deste género.

Aparentemente...

Entre os seus elementos contam-se vários franceses, de que a história raramente guarda o nome, havendo, no entanto, uma notável excepção à regra: entre eles sobressai um gigante, que já faz parte dos compêndios do século vinte, mercê das suas capacidades literárias. É uma figura de peso e personalidade: o invulgar metro e noventa tornam-no visível a boa distância, enquanto que a sua fama o faz notado além-fronteiras. Tinha praticamente tudo para estar a fazer a guerra nos hotéis e recepções, mas a teimosia fazem os seus quarenta e quatro anos, a idade da centúria, serem absolutamente únicos no ofício temporário que embirrou escolher: pilota um P-38 que, apesar de já ultrapassado, constitui uma das peças do arsenal aéreo aliado mais temidas. Tal milagre só foi possível, além da já referida vontade, à sua perícia, coragem, e impressionante currículo literário e aéreo, que acabou por “abrir as consciências” mais renitentes dos oficiais de carreira estado-unidenses.

Figura carismática, tal qual alguns mitos, encerra em si várias contradições: senhor de um enorme corpo, já calejado pela idade e numerosos acidentes, engana-o com o olhar de uma criança, e a determinação flutuante de um jovem “maluco das máquinas voadoras”. Começa, já começou desde o início, o caminho do mito, mas não das lendas, porque as lendas são corpos estanques, acabados, que, apesar dos acrescentos temporais, tendem para imobilidade, ao contrário dele, cuja tendência para as façanhas loucas e concretas parecem ir fazer correr ainda mais tinta do que todos os livros por si já escritos.

Não é um “às”, porque o seu corcel voador não dispões de armas para abater os cinco aviões necessários que conferem este estatuto, e talvez seja duvidoso que este pioneiro aéreo as quisesse ser, pois embora transpire acção, o seu percurso é de paz, tendo a guerra sido apenas um enorme e trágico contratempo no percurso deste escritor aventureiro, mas incontornável e vinculadora do seu destino.

Apesar da ausência de pólvora e de feitos bélicos visíveis será ele um herói? Deixamos este juízo de valor para os seus camaradas pois, apesar de raro, o caso está longe de ser único, sendo que, por todas as frentes, outros homens, com a idade de sentir a retaguarda combatem com afinco, tendo apenas o “pequeno senão” de não serem mediáticos, apesar da maioria o fazer mais ou menos “coercivamente”, ou pela pura necessidade, ao contrário dele, que o faz por puro idealismo.

Naquela manhã vai fazer a sua nona missão, uma das últimas, pois teme-se que a idade, aliada à sobejamente conhecida distracção, o conduzam ao desastre. Depois será o fim da invulgar cavalgada, com o aterrar numa boa leva de papéis até ao final das hostilidades e, por fim, o regresso à pátria amada e o definitivo reconhecimento público planetário.

Ele sabe-o, está a par deste destino improvisado nos bastidores, por alguns daqueles que o estimam demasiado ao ponto de o privar da sua mais louca e intensa paixão. Sim, sabe-o, mas prefere não saber, continuando na ilusão que voará até ao fim de tudo.

São 7h e, após a indispensável noite de descanso, dirige-se à base num jipe; sente-se bem, está optimista, se bem que mais pensativo que o normal.

Depois da breve e indispensável reunião no gabinete de operações, toma café, veste o equipamento de voo e vai ter com o seu Lightning, avião de desenho estranho, pesadote e criticavelmente ágil (é dos desenhos mais antigos em operações...), mas poderoso e invulgar, como se este piloto só pudesse comandar tal nave, cujas semelhanças, com alguma boa vontade das nossas imaginações..., tornariam os dois curiosamente compatíveis.

Informaram-no que iria voar até à costa francesa, perto de Saint-Raphael e Agay, local a tocar-lhe muito de perto, pois é a zona onde a sua família vive.

Cada passo que dá em direcção ao avião ressoa como uma memória...Dias loucos, prenunciadores, da sua infância, dias em que a aviação era tão pequena como ele, mais embalada nas asas frágeis da imaginação do que nas suas próprias, e ainda titubeantes, capacidades, apoiada numa técnica embrionária, e por isso mesmo incipiente, embora já segura; progressos que entusiasmam a criança obesa, ao ponto de a impelir na quimérica construção de uma bicicleta com asas, causadora de arranhões em si e de dores de cabeça à mãe; máquina fantástica, a ter o condão de o empurrar para o aeródromo mais próximo, onde a sua paixão seduziu os primeiros argonautas, que lhe conceberam um indescritível baptismo de voo, e uma permissão de entrada nas oficinas, local onde aprendeu que a camaradagem entre pilotos e mecânicos era o factor escondido que permitia a realização do sonho impossível, uma lição sagrada que o havia de marcar para sempre.

A silhueta do Pégaso metálico está cada vez mais nítida, e as recordações também...

1926, ano mágico em que entra para a Companhia Geral de Assuntos Aeronáuticos, ano da publicação do “Aviador”, uma curta novela. Vinte cinco anos, a idade em que se lançou, para depois a história avançar inexoravelmente....

1927, assegura os correios Touluse-Casablanca, depois Casablanca-Dakar; é nomeado chefe de gare e escreve o seu primeiro romance “Correio do sul”.

O caça de observação cada vez mais perto.

1930, é feito Cavaleiro da Legião de Honra, e parte em busca de um amigo perdido na cordilheira dos Andes, experiência e relato que transmite para “A terra dos homens”.

1931, o casamento com uma jovem argentina, laços sagrados que a natureza independente o aviador haveriam de desfazer. Neste ano, especialmente pródigo em acontecimentos, ele é premiado pelo “Voo nocturno”, adaptado a filme, e começa a fruir o dinheiro, muito dinheiro que a sua incorrigível boémia afoga na vertigem com que decidiu premiar a sua existência.

1933, na altura em que Hitler, um homem que haveria de tocar no seu destino, chega ao poder, ele quase que se fica pelos trinta e dois anos, depois de um grave acidente de aviação.

1936, é enviado para Espanha em reportagem sobre a guerra civil.

Já distingue os mecânicos, que tem o seu avião quase pronto.

1938, grave acidente, mais um..., na Guatemala, desta feita particularmente violento, pelo menos a atentar no resultado: sete fracturas de crânio, clavícula esquerda partida, pulso aberto e a conta - vários dias de coma, e o descanso em Nova-York, onde trabalha a “Terra dos homens”.

1939, a guerra, pronunciada em vários sussurros bélicos alemães, estala por fim, arrastando consigo o escritor, na qualidade de capitão de reserva, posto demasiado “calmo”, se bem que temporário, pois dentro em pouco ele está afecto ao grupo 2/33 de Grande Reconhecimento, “manobra” feita à custa de muitas “demarches”.

1940, é citado na ordem do exército após uma heróica missão. Não obstante os esforços aliados, a França capitula, e ele é desmobilizado, começando a trabalhar na “Citadela”. Provavelmente por não suportar ver a sua pátria ocupada, parte para os Estados-Unidos.

1941, começa a escrever “Piloto de Guerra”, êxito retumbante, retirado das prateleiras na sua França, a pedido dos nazis.

1942, escreve aquela que virá a ser a sua obra maior, “O Princepezinho”. Em paralelo envida esforços para se juntar à sua antiga esquadrilha 2/33, agora operacional devido à ocupação do norte de África francês colaboracionista pelos aliados.

1943, começa os treinos nos P-38 Lightning, máquina bem mais complicada do que tudo por si pilotado até ali, tornando-se operacional e traçando, sem o saber, a linha final do seu destino.

Um vento suave, um vento de maresia bate-lhe na cara.

Está por fim ao lado da sua magnífica aeronave verde-oliva. Sente-se a invadir por uma estranha sensação...há que acabar com esta confusão, a tempestade de memórias parecem enfraquece-lo...Quando regressar voltará a esta parte do seu mundo, agora há que voltar à realidade, à guerra.

São oito horas e vinte e cinco minutos, os motores estão ligados com tal potência que o seu ruído se assemelha a uma tempestade. Sinal divino? Poderoso arranque, a máquina vai desaparecendo no horizonte rapidamente, é a despedida.

13,30h.

14,30h

15,30h...A gasolina acabou, os apelos de rádio não encontram o eco desejado, tal como o radar.

Se calhar entrou para o painel de caça de um piloto inimigo, talvez se tivesse distraído e precipitado o fim (na memória de alguns, pelo menos uma aterragem sem o respectivo trem ainda estava apreensivamente presente).

O tempo passa, e a noticia que todos não queriam ler ou ter ocupa a realidade: Saint Exupéry morrera.

Naquele dia fatídico um príncipe bem terrestre deixara-se embalar pelo canto das sereias e uniu-se ao rei dos mares, onde o fogo da sua imaginação arrefeceu por fim, sem deixar qualquer vestígio àqueles que o amaram, iniciando finalmente o trilho da lenda.

Sim, Saint-Exupéry morrera.

É pura imaginação a funcionar, mas o que terá pensado este grande escritor nos seus últimos momentos?

Terá visto o seu Princepezinho a chamá-lo para juntos trilharem o caminho das lendas, da imortalidade?

Terá sentido o apelo da companheira do Princepezinho, a dizer-lhe para não partir, para ficar ali, no seu planeta onde todos ou quase todos que lidaram com ele ou que o leram o estimaram, para além do tempo e do espaço?

Pura especulação, pois a única coisa que sabemos é que naquele dia morreu um homem bom, um entre os milhões que a absurda guerra ceifou.

Desde o seu desaparecimento, há mais de meio século, e com meios cada vez mais avançados, várias equipas de mergulhadores procuraram o escritor e o seu avião, nas diferentes áreas em que se presume ter desaparecido.

Na primeira década do novo milénio, pedaços do seu avião foram encontrados, e um antigo piloto nazi saiu da vergonha do tempo e afirmou ter abatido o Escritor dos Escritores.

Mas o seu corpo dissolveu-se nas águas irmãs da terra que o viu nascer.

Por todo o lado existem diversos monumentos a honrar a sua memória, mas nenhum túmulo, talvez porque ele estivesse destinado ao mito, talvez porque o melhor local para o recordar sejam os seus livros, ou olhar simplesmente o céu numa noite com estrelas e imaginá-lo lado a lado com o Princepezinho a brincar com as estrelas e a trilhar os caminhos da Eternidade.

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História imaginada em 1992 e profundamente alterada em Setembro de 2009

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 03/09/2009
Reeditado em 31/07/2022
Código do texto: T1790795
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