FOGO-FÁTUO

Edilson Landim

Aquelas férias, eu ia fazer 17 anos, resolvi passá-las com o meu avô, o Sr Antonio Português, dono de Padaria, num vilarejo perto da capital, chamado Guarani. Foi nestas férias que vim a saber o que era Fogo-fatuo. Como as vendas da Padaria eram pequenas por se situar num lugar pouco povoado, o negocio carecia de outros meios de renda. Por isso, o Sr Antonio Português sustentava uma tropa de l2 burros, com caçambas e engradados apropriados e mais quatro caboclos e, de dois em dois meses, partia para o interior, com produtos de padaria e de armazéns, atendendo a uma freguesia em lugares que nunca no vila se podia imaginar existissem. Era um safári, à moda caipira: havia cozinheiro, arrieiro, curandeiro, atirador para caça e defesa de animais selvagens e um belo cão Perdigueiro português.

Cavalgavam dias inteiros, viajando léguas e mais léguas sem avistar uma viva alma. O sol muito forte do sertão, que chegava a ponto de deixar em carne viva as costas de algum caboclo, obrigava muitas vezes a dormir de dia e caminhar à noite, à luz de lampião de gás acetileno, suspenso no primeiro animal da tropa, que iluminava o caminho. Na ida paravam em bodegas, onde se abrigavam e descansavam, entregando mercadorias. Eram recebidos com festa pelos moradores que tocavam tambor e berrante, e, na volta, recebiam em troca galinhas, bacu rins, ovos, muitos ovos, alguma carne de sol, doces, mel, enchendo os engradados, gaiolas, galinheiros e aramados.

A viagem era dura e penosa e a noite, na mata, gerava um verdadeiro pavor, com o silencio quente do sertão apenas entrecortado pelo piar das corujas, ouvindo-se espaçadamente gritos estranhos e o uivo lamentoso de cachorros selvagens, verdadeiros lobos, os temidos mãos peladas, assim conhecidos por terem as patas desse jeito de tanto procurem esfomeados tatu e preás nos buracos..

Entrei numa dessas expedições a contragosto de meus parentes.es. Por mais que dissessem que a viagem era perigosa e cansativa, sempre uma incógnita pelos imprevistos encontrados em cada caminhada não me demoveram de ir. Arrotava que não era mais menino, mas homem, não tinha medo. Argumentava que, se meu avô partia de dois em dois meses e voltava só mais queimado do sol, não era bicho de sete cabeças. O avô soltava gargalhadas gostosas e caçoava num linguajar luso-italianado para os familiares: - Deixa o nino provar que é homem. Agora, que sofri, sofri, e não desisti, porque aquela viagem tinha uma passagem que dizia que para voltar, tinha que ir até o final.

O único caminho que dava acesso ao interior do sertão, conhecido como Chorozinho, passava por baixo de um cajueiro enorme, cujo tronco tinha uns dois metros de largura, os galhos se espalhavam assustadoramente retorcidos pelo chão numa extensão de quase 10 metros. Era o famoso Cajueiro da Malhada. Nos galhos enormes do cajueiro, amarravam pelos chifres, como se fosse um matadouro, as rezes e com um instrumento de aço, tipo faca bem forte e afiada, com uma só estocada na cabeça, abatiam os quadrúpedes. Arrastavam os corpos para frente do cajueiro e faziam o trabalho de limpeza de tudo o que o animal possuía, até os chifres tinham valor, nem carcaça solta aparecia. Depois, enterravam os restos, as gorduras, e o que não prestava para ser vendido, num terreno esbranquiçado, meio cinzento, parecendo areia de praia suja, um pouco distante , sempre naquele local, que a terra era frouxa e não oferecia muita resistência às enxadas e picaretas, e fechavam as covas, se assim se pode dizer.

À noite, apareciam visagens em torno do Cajueiro, diziam que eram almas penadas de boiadeiros. Era um terror em todas as redondezas. Ninguém depois que a noite escurecia aquela estrada passaria por ali. Muitas pessoas preferiam dormir noutro lugar e esperar pela luz do dia. E as almas do outro mundo apareciam quase sempre às mesmas horas, como se tivessem feito um pacto, ou às 8 horas da noite, ou às l2 ( meia noite), hora do lobisomem, dos exus e pombas-gira, dos vampiros, das bruxas, dos duendes.

Foi na volta quando já estávamos próximos de casa, quase final da cansativa viagem, que um temporal nos apanhou. Eram umas quatro horas da tarde. O sol redondo e bêbado de luz como uma bola de fogo queimava desvairado o sertão. De repente uma ventania galopante envergava os galhos das arvores, começava um trovejar com estampidos tão fortes que estremeciam a terra, e se fez noite. Tinha-se a impressão de que o céu ia despegar-se, os raios faiscavam tão perto dos animais, como a persegui-los. Na mata escura, com a água a desabar como uma cachoeira de mil metros de altura, a situação era aterrorizante. O Sr. Antonio mandou parar, amarrou os animais nas arvores, as caçambas já haviam sido cobertas com grandes encerados. O lampião de acetileno espichava estrias de luz por baixo dos protetores para que a água não batesse no vidro e inutilize a camisa incandescente. As aves e animais não se mexiam, espantados. Armaram apressadamente, como era de costume, uma tenda onde todos se agasalhavam, acenderam uma fogueira para espantar algum animal mais selvagem, e aguardamos, tiritando de frio, o passar da tempestade.

Somente três horas depois, amainou o tempo, permitindo prosseguir. Mas o manto de sombras já cobria o sertão que adormecera saciado da sede de água. Sr Antonio mandou cangar os animais, reforçar as caçambas e verificar as aves e bichinhos trazidos, encolhidos e tristes. Ordenou por duas vezes e os caboclos olhavam uns para os outros e não se levantavam dos troncos onde estavam sentados. O português esbravejou:

- O que há Chico Preto?

O condutor – respondeu: - Desculpe, Sr Antonio, vamos dormir aqui.

– Estás doido. Depois desse aguaceiro, tudo que é bicho sai da toca. Vê como o cachorro está inquieto, andando de um lado para outro, já fareja coisas.

- É, sr Antonio, mas os homens não vão, nem eu – falou o Chico Preto

-Por que, rapaz?

-Porque vamos passar na hora das almas penadas no Cajueiro da Malhada.

Meu avô não agüentou:

- Como são ignorantes.

Eu apenas escutava, estava dolorido de medo, da cabeça até o dedo mínimo dos pés. O cajueiro ficava um pouco à frente, quase na chegada ao povoado.

- Ignorantes, gritava sr. Antonio, possesso, por atrasar a viagem. Ignorantes, não existem almas, seus bobos. Quem morre, não volta jamais. Ignorantes.

- E aquelas aparições, sr. Antonio, que todo mundo vê, o que sr. diz? Nós não passamos pelo Cajueiro hoje.

O vô se enfureceu, mas que podia fazer contra crendice popular. Até eu fiquei interessado e perguntei ao João Catolé que era considerado o mais instruído, que aparições eram essas.

- Galeguinho, vou te contar. – São almas penadas que fogem à noite do cajueiro, para pedir preces, almas dos criminosos condenados, e correm atrás das pessoas que passam. Sei de casos de algumas.

Eu, que sempre fui muito ligado à religião por parte dos meus pais, chegados a crendices, já começava a ter medo e pedi:

-Vô, atende ao pessoal, pela madrugada vamos embora.

- Ate tu, meu neto, estás com medo, tu que és da cidade e tens instrução.

- E o que são aquelas aparições?

- Aquilo não são aparições, aquilo é fogo-fátuo.

- Que é isso?

– Santa ignorância, nunca no colégio ouviste falar em fogo-fátuo?

- Nunca, vô.

– Meu Deus. Então, sua besta, vou te explicar. Naquele cajueiro, matam o gado e enterram as gorduras e os restos na terra, mas como são preguiçosos, quando terminam o trabalho, põem pouca terra por cima, o suficiente para que não deixem mau cheiro e os bichos do mato não venham a cavar. Isso fazem seguidamente. Como a terra é muito quente, em determinados dias, as gorduras são derretidas pelo calor do sol, como numa verdadeira caldeira, entram em combustão e queimam, os gases que saem do solo se misturam com o oxigênio do ar, se inflamam espontaneamente e correm no ar como nuvens de fogo azuladas para onde sopra o vento. Se surge alguém e corre com medo, o vento acompanha a pessoa e o fogo acompanha o vento. È que se chama de fogo-fátuo.

- E mesmo, vô.

–E não é bobão e, onde já viste alguma alma do outro mundo nas cidades. Só aparecem no mato, para os palermas. Em Portugal, em alguns cemitérios, quando os coveiros não cavam as sepulturas com sete palmos de fundura, e ficam mais à flor da terra, também aparecem essas almas do outro mundo, bestalhão. Quem morre, não volta mais.

E deu um conselho:

- Se tiveres medo, tenhas das almas vivas, porque as mortas não incomodam.

O Sr. Antonio, talvez tivesse sido mais indulgente com todos, se soubesse que os homens mais inteligentes da História Mundial não escondiam suas crendices,como Pasteur que acreditava em demônios, Arthur Conan Doyle, criador do personagem do raciocínio lógico, em fadas, e Isaac Newton, em alquimia.

Entendi as explicações do meu avô, mas os outros não estavam interessados em saber de nada, aferrados às suas crenças. Não houve quem os demovesse. Dormimos mal por ali mesmo, no chão ainda exalando cheiro de terra molhada.

Pela manhã, confortados pelo respeito ao cajueiro da malhada, com a proteção de suas entidades, os caboclos tangeram a tropa, num dia claro, tão alegre que os pássaros cantavam e trinavam na mata e o cão balançando o rabo fazia festas pelo caminho, perseguindo as nambus e rolinhas. Um dia tão lindo, capaz de desmoralizar qualquer alma do outro mundo.

Aquelas férias foram memoráveis e não me cansava de comentá-las no colégio.

Edilson Landim, 1928, de Russas – CE, cidade mencionada em

“Queima de Arquivo”, conto de Teresa Mangabeira em Novos

Escritores de Releituras, contador, Auditor Fiscal do M.F,

apósentado, sempre gostou de escrever e, na mocidade, foi redator do Jornal da terra natal.

Edilson Landim
Enviado por Edilson Landim em 03/09/2009
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